Capítulo 3.3 - Ensinar Exige Compreender que a Educação é uma Forma de Intervenção no Mundo

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Prof. André Azevedo da Fonseca
Não posso ser professor se não percebo que minha prática exige de mim uma definição. Não posso ser p...
Video Transcript:
Uma das qualidades definidoras do ser humano é precisamente a sua capacidade de transformar o mundo. Nós nos humanizamos justamente porque somos capazes de cooperar em larga escala para intervir no mundo com criatividade. E é por isso que, se a educação é uma atividade especificamente humana, a prática educativa é, necessariamente, uma forma de intervenção no mundo.
E é por isso que a reflexão crítica sobre o  modo como estamos fazendo isso é indispensável. Além dos conteúdos da disciplina, que bem ou mal a gente pode ensinar e aprender com os alunos, é preciso observar uma dinâmica que sempre se mostra presente no ato de educar. Ao mesmo tempo em que nos esforçamos para desmascarar as ideologias dominantes, é preciso ficar claro que nós também somos, conscientemente ou não, agentes da reprodução dessas ideologias.
Resolver essa contradição não é tão simples como gostaríamos que fosse. A prática educativa é dialética. Dialética no sentido de que as ideias contraditórias estão em permanente movimento e não se anulam.
Ao contrário: uma dimensão só existe em função da outra. Por isso que devemos entender a  escola como uma instituição que simultaneamente reproduz e desmascara a ideologia hegemônica. A educação nunca foi neutra, indiferente a qualquer uma dessas hipóteses: a da reprodução da ideologia dominante ou a de sua contestação.
Agora, é um erro também dizer que a escola apenas reproduz a ideologia dominante, assim como é um erro dizer que a escola só oferece saberes que desvendam as ideologias. Para Paulo Freire, qualquer uma dessas visões é simplista e equivocada. Tanto a visão mecanicista da história, aquela que reduz a humanidade a um reflexo das condições materiais e das relações econômicas entre as classes; mas também a visão idealista e subjetiva, que supõe um poder exagerado do papel das ideias e do indivíduo isolado na história, as duas visões são, no mínimo, incompletas.
Nós não somos nem determinados por forças inevitáveis, e nem livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe e de gênero. Mas voltando ao problema da reprodução e  da contestação das ideologias na escola, é óbvio que, do ponto de vista dos interesses das pessoas, dos grupos e das classes bem-sucedidas que estão confortáveis no mundo, tal como ele é, e que, evidentemente, são as minorias que controlam ou que são influentes na economia, na política, na mídia e nas instituições, para essas pessoas é conveniente que a educação se torne prioritariamente um recurso para manter essa ordem que os favorece. E é claro, os esforços concretos, os discursos e a ideologia que orienta as políticas de educação caminham nesse sentido.
Agora, como o mundo está em transformação, toda vez que conjuntura exige, a educação  dominante também pode se tornar progressista, à sua maneira, progressista pela metade. Às vezes rupturas são necessárias para manter a ordem, para manter o sistema. Mas é progressista pela metade no sentido de que as forças dominantes estimulam e materializam avanços técnicos, tecnológicos e às vezes até humanísticos, mas de modo a resolver os problemas que ameaçam justamente aquela ordem que os favorece.
Ninguém imagina, por exemplo, a bancada ruralista aceitando quieta uma ampla discussão nas escolas rurais sobre reforma agrária ou sobre a incorporação, no currículo, de temas ligados à cidadania, aos direitos humanos e à discussão de alternativas sobre um projeto de desenvolvimento social que, ao lado da produção, privilegiasse as crianças e as suas famílias, moradores de áreas rurais, fortalecendo o mercado interno, em vez de  sustentar esse modelo rural de economia que privilegia a concentração de renda nas mãos de poucos grandes proprietários. Mas o empresariado urbano, por outro lado, pode ter alguma sintonia com essa pauta. Os interesses na expansão do mercado consumidor fazem os empresários "progressistas" em relação aos ruralistas.
Mas ainda assim, são progressistas pela metade porque é um progressismo esvaziado de humanismo, no sentido de que no confronto entre os interesses humanos e os interesses do mercado, os humanos perdem. É por isso que, para Paulo Freire, a consciência de que ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo, é um saber tão importante. Para ele, é uma imoralidade quando a escola sobrepõe os interesses do mercado às necessidades humanas.
E pela primeira vez no livro, ele menciona Marx, que advertia sobre a necessidade de se manter atento a tudo o que diz respeito aos interesses humanos. Interesses superiores aos interesses  de grupos ou interesses de classe. Daí a recusa de Paulo Freire em admitir uma escola antiética, cujo projeto político-pedagógico sustenta práticas que menosprezam os seres humanos, que impõem obstáculos à humanização dos estudantes entendendo humanização como a ampla capacidade de intervir no mundo e de se reinventar.
E daí também a recusa permanente de Paulo Freire em relação aos discursos fatalistas, aqueles que dizem que as coisas são assim mesmo, não tem como mudar, e que acabam se submetendo às práticas  antiéticas vigentes, em vez de condená-las. Paulo Freire sustenta que não é ético educar em nome de um tipo de ordem social em que a maioria sofre e só a minoria desfruta o direito de ter oportunidades. Toda a sociedade se desumaniza, porque assim a gente desperdiça vida, desperdiça inteligência e desperdiça potencialidades.
Assim como não é ético sustentar que as causas dessa ordem são forças imponderáveis, inevitáveis. Essa é apenas uma forma de fugir da responsabilidade que todos temos, por sermos humanos. “Não junto a minha voz às dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação.
Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da 'justa ira' dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas.
” Paulo Freire novamente faz a crítica  ao neoliberalismo, que para ele, é a ideologia hegemômica nas escolas. Se alguém tiver duvida, basta conferir os sonhos dos alunos. É transformar o mundo?
É conquistar autonomia? Ou é se tornar mão de obra? Ou é consumir?
Comprar uma moto? O que é que eles sonham? A gente não imagina um empresário  moderno concordando que seria direito de seu operário discutir, em um curso  de alfabetização oferecido pela empresa, ou em alguma iniciativa de formação técnica, em um convênio com alguma escola, discutir questões ligadas à ideologia, questionar essa realidade que os leva a viajar quatro horas por dias para ir e voltar de ônibus ao trabalho, a ficar endividado com juros altíssimos no cheque especial, a ser pressionado a pagar um plano de  saúde caro, porque a saúde pública não funciona; e ter que pagar caro pela escola do filho,  porque a educação pública não tem qualidade.
Nada disso. Formação técnica é para que ele funcione melhor e mantenha o sistema. Mesmo se o sistema é prejudicial à sua vida.
Um sistema, que ideologicamente, lhe é apresentado como um fatalismo. "O mundo é assim mesmo. Paciência.
. . " "Isso não tem nada a ver com a escola.
. . Se os economistas neoliberais dizem que um certo nível de desemprego é normal, uma fatalidade, isso, para eles, não deve ser questionado.
O papel do indivíduo é se submeter à realidade e ajudar a girar a engrenagem. Mas se fosse assim, porque que a reforma agrária, por exemplo, não seria também uma fatalidade? Por que acabar com a fome e a miséria não seriam também fatalidades de que não poderíamos fugir?
Para Paulo Freire, é reacionária a afirmação de que o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficiência técnica e não perder tempo com debates ideológicos que "não levam a nada". Ao contrário, o operário não pode deixar de assumir o direito de exercitar, a partir de seu próprio trabalho, a sua cidadania, que não se constrói apenas com a sua eficácia técnica, mas também com a sua luta política por uma sociedade mais justa. Para que ele, sua família, sua comunidade e a sociedade como um todo tenham o direito de ter oportunidades.
Então é preciso ficar atento. Ao mesmo tempo em que o empresário moderno aceita, estimula e patrocina o ensino técnico do seu operário, ele recusa a sua formação, aquela que envolvendo o saber técnico e científico indispensável, fala também de sua própria presença humana no mundo. O treinamento destituído de humanismo é aquele que busca transformar um ser humano em uma máquina, em um instrumento, em um objeto funcional, passivo e meramente utilitário.
“Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão.
Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o que.
” Não é possível ser professor a favor de algo tão vago, imaterial. E se o professor ensina a favor de alguma coisa, ele ensina contra o que? Nós mencionamos esse problema nos vídeos anteriores, mas vale a pena aprofundar.
Paulo Freire ensina a favor da liberdade e contra o autoritarismo, a favor da autoridade e contra a  licenciosidade, a favor da democracia e contra a ditadura de direita ou de esquerda, ele faz questão de ressaltar. Ele ensina contra qualquer forma de  discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Contra essa ordem capitalista vigente que permite e provoca essa verdadeira aberração, que é a miséria de muitos na fartura de poucos.
Ele ensina a favor da esperança e contra  a resignação que imobiliza. Ele ensina a favor da dignidade do próprio ato de ensinar, dignidade que desaparece quando o professor não cuida de sua própria formação, não luta pelas condições materiais necessárias à sua prática ou quando se torna arrogante e passa a desprezar os saberes dos alunos. Assim como, para ser um bom professor, é preciso estar plenamente capacitado para ensinar bem e de forma correta os conteúdos da disciplina, é preciso saber que não se deve reduzir a prática docente a isso.
Tão importante quanto o ensino dos  conteúdos é o testemunho ético do professor e da professora ao ensiná-los. É a formação científica que se revela na curiosidade permanente do professor que sabe que tem muito a aprender,  junto com os alunos. Tão importante quanto o ensino dos conteúdos por si só é a forma como esses conteúdos são ensinados.
É a pedagogia. “É importante que os alunos percebam  o esforço que faz o professor ou a professora procurando sua coerência. ” E é preciso também que este esforço seja discutido em classe, para que os alunos tomem consciência de que os conhecimentos estão em transformação e que cabe a eles também, como estudantes, participar do movimento do conhecimento com seus questionamentos, com a sua curiosidade, que gera pesquisa, que oferece descobertas inesperadas e que forma, com tudo isso, um sujeito capaz de pensar a partir do conteúdo, não só para passar de ano, mas para intervir no mundo de forma crítica e criativa.
No próximo vídeo vamos discutir a  necessidade de aliar autoridade e liberdade nas práticas educativas. Inscreva-se no canal. E se você já está inscrito, não se esqueça de clicar neste ícone, que parece um sininho, para que você possa receber as notificações quando os novos vídeos forem publicados.
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