Gláucia e João são casados há duas décadas. Os dois se conheceram quando tinham 20 anos e logo se apaixonaram. Gláucia era uma jovem muito alegre e bonita que trabalhava como assistente em um restaurante próximo de onde morava.
João era um jovem estudante de administração que estava começando a carreira em um escritório. Após um ano de namoro, os dois decidiram se casar. No começo, foi só alegria e companheirismo.
Nos primeiros anos, João continuou trabalhando como assistente administrativo em um escritório. Quanto a Gláucia, ela aceitou a sugestão do marido de trabalhar com artesanato. Ela produzia panos de prato decorados em casa e vendia para as pessoas do bairro.
Embora fosse um tipo de artesanato trabalhoso, dava bons rendimentos para Gláucia. Sendo só ela e o marido em casa, não havia grandes dificuldades financeiras. Ao descobrirem que esperavam o primeiro filho, um menino chamado Renan, decidiram investir na abertura de um negócio próprio.
Gláucia sempre gostou de cozinhar e tinha experiência de ter sido assistente em um restaurante. Assim, os dois concluíram que a melhor opção para iniciar a vida de empreendedores seria ter um restaurante. Gláucia estava realmente muito empolgada com a ideia de ter um restaurante e começou a desenvolver receitas exclusivas.
Nos primeiros meses, o casal decidiu que João permaneceria no emprego fixo para que eles tivessem mais segurança. Mesmo grávida, Gláucia se dedicou a cada detalhe para que o negócio estivesse pronto para receber os primeiros clientes. Quando Renan nasceu, faltava um mês para a inauguração do empreendimento.
Ainda que soubesse que seria muito difícil conciliar os cuidados com o bebê e o restaurante, Gláucia decidiu que não se deixaria abater. O filho tinha apenas um mês quando passou a acompanhar a mãe em sua jornada de trabalho no restaurante. A rotina de mãe e cozinheira era puxada, mas ela contava com o apoio de João.
Percebendo o quanto estava difícil para Gláucia fazer tudo sozinha, o marido deixou seu emprego no escritório. Na verdade, João também desejava mais liberdade em sua rotina de trabalho. O homem acreditava que teria uma vida mais tranquila sendo seu próprio chefe.
Além disso, a parte mais pesada do trabalho, que era cuidar da cozinha, ficaria por conta de Gláucia. Contudo, conforme os meses foram passando, João foi percebendo que ser dono do próprio negócio podia ser muito mais cansativo do que parece. Ainda que a cozinha fosse comandada por Gláucia, cabia a ele negociar com os fornecedores, cuidar do salão e ainda gerenciar o dinheiro que entrava e saía do empreendimento.
Sentindo-se estressado por ter que lidar com os choros do filho e a correria vinda da cozinha, João passou a inventar pretextos para sair do restaurante durante os horários de pico. Gláucia passou a acumular a função de gerente quando o marido estava fora, tendo apenas dois assistentes, Mari e Bruno, na cozinha. A mulher começou a se sentir sobrecarregada, percebendo o quanto aquela rotina pesada de trabalho era extenuante.
Mariana e Bruno ajudavam em tudo que podiam; contudo, havia atribuições que somente Gláucia, como dona do restaurante, poderia resolver. Quando Renan já tinha quase um ano de idade, Gláucia o colocou em uma creche para conseguir dar conta de tudo. Até aquele momento, a mulher não se incomodava com as ausências do marido; ele saía de vez em quando, dizendo que ia visitar um fornecedor ou que precisava simplesmente tomar um ar.
Embora não soubesse exatamente o que o marido estava fazendo, Gláucia imaginava que ele ia beber em algum bar. Tornou-se frequente ele chegar ao restaurante falando um pouco enrolado e, algumas vezes, parecendo confuso. Apesar de não ser o estado ideal para atender os clientes e ficar no caixa, Gláucia relevava.
João costumava ser simpático com os clientes quando estava nesse estado. Alegre, Gláucia viu duas ou três vezes o marido abrir o caixa, pegar dinheiro e sair. Talvez fosse um pouco mais do que o necessário para beber, mas ela não queria arrumar confusão com o marido, então não perguntou.
Aos poucos, aquelas retiradas que João fazia do caixa começaram a fazer falta para o casal e o seu lar. Quando tudo parecia estar funcionando mais ou menos bem na rotina do casal, Gláucia engravidou novamente. Júlia nasceu com saúde.
Duas semanas depois do parto, a mulher já estava novamente trabalhando no restaurante. João se mostrava cada vez mais desanimado com a vida que estava construindo com Gláucia. As saídas inexplicáveis começaram a aumentar em frequência, e mais vezes a esposa viu o marido colocar dinheiro no bolso da calça antes de sair.
Sozinha, quase que o tempo todo no restaurante, Gláucia precisou se inteirar ainda mais da gerência do negócio. Ao se debruçar sobre os registros financeiros, ela percebeu algo alarmante: havia uma diferença considerável entre o valor que o restaurante lucrava e o valor que estava no caixa. Como explicar aquele rombo?
Será que as retiradas feitas pelo marido eram maiores do que ela imaginava? Claro que Gláucia percebia que eles tinham menos dinheiro para fazer as compras do mês no mercado, mas ainda assim não imaginava o quanto as ações de João prejudicavam o restaurante. Somente olhando para o livro caixa, a mulher entendeu que aquilo não estava normal e que, infelizmente, ela teria que conversar com o marido a respeito.
Naquela noite, após fechar o restaurante, Gláucia confrontou o marido, que parecia mais bêbado do que o normal. Muito irritado, João gritou para a mulher que ele era o dono e o gerente daquele restaurante, que era por causa dele que o negócio era um sucesso. Então, se ele queria pegar parte do dinheiro para se divertir um pouco e tornar a sua vida menos infernal, ela não podia reclamar.
Magoada, Gláucia perguntou se a vida infernal de que ele falava era a companhia dela e dos dois filhos. Pela primeira vez, Gláucia viu nos olhos de João um grande desprezo. Ele lhe respondeu que, quando os dois se conheceram, Gláucia era uma mulher linda e alegre; hoje em dia, ela era.
. . Uma mulher feia, gorda, mal vestida e que, ainda por cima, vivia fedendo a gordura, ouvir aquelas palavras do marido fez com que Gláucia sentisse que estava sendo apunhalada no coração.
Ele ainda prosseguiu, dizendo que sair para beber com os amigos pelos bares da cidade era o mínimo que ele podia fazer. Segundo João, Gláucia ia ficar feliz que ele escolheu extravasar dessa forma, pois, caso contrário, já a teria deixado. Que homem gostaria de viver ao lado de uma mulher tão horrorosa quanto ela?
Será que ela não tinha um espelho bem grande em casa? Ele disse que recomendava que Gláucia passasse a se olhar mais naquele espelho. Se ela fizesse isso, seria a primeira a incentivar que ele bebesse.
Talvez, bêbado, ele ainda pudesse se interessar por ela algum dia, mas que ela não interpretasse aquilo errado: ele não queria mais nenhum filho. Para finalizar, João disse que tinha muita raiva de Gláucia por ela ter o obrigado a ter filhos. A mulher se pegou pensando em como exatamente ela o tinha obrigado a ser pai.
Que João a tratasse era uma coisa, mas dizer essas coisas sobre os filhos era demais. O pior era que Renan e Júlia ouviram o pai dizendo aquelas coisas. Sem dizer mais nada, João saiu, deixando a esposa e os dois filhos para trás.
Gláucia foi a pé para casa com as duas crianças, que estavam assustadas. A mulher que havia passado o dia todo dentro da cozinha trabalhando começou a cheirar o próprio cabelo. Só de imaginar que o marido associava seu cheiro com o de gordura fez com que Gláucia chorasse profundamente de tristeza.
Ela, então, se dedicou à tarefa de lavar o cabelo com um shampoo cheiroso. Era uma forma de camuflar o cheiro de gordura que o marido dizia sentir nela. Mesmo estando muito cansada, a mulher passou a noite em claro, esperando o marido voltar.
As horas passaram lentamente, e João não apareceu. Pensando que havia sido abandonada, a mulher foi ao restaurante para trabalhar. De repente, ela atendeu uma ligação no telefone do restaurante e ficou em choque.
Um homem com uma voz estranha disse para Gláucia que seu marido estava trancado no porão de um bar. Sem entender nada, Gláucia perguntou ao homem se aquilo se tratava de um sequestro e se a ligação era um pedido de resgate. O homem, então, gargalhou ao dizer que ela era uma mulher muito inocente, que não merecia ter um traste como aquele de marido.
O homem esclareceu para Gláucia que João tinha uma dívida de jogo que precisava pagar. A esposa finalmente entendeu por que ele saía do restaurante com dinheiro escondido nos bolsos: ele apostava em todo tipo de jogo, tanto os de máquinas até os de cartas contra outros oponentes. Num desses jogos de cartas, ele perdeu muito mais do que tinha no bolso, e o procedimento nesses casos é prender o devedor no bar enquanto um parente vai até lá para pagar a dívida.
Foi assim que a mulher descobriu que, além de beber, João fazia apostas. Com medo do que aquelas pessoas poderiam fazer com seu marido, ela perguntou de quanto era a dívida. O valor era muito alto, mas ela não tinha escolha; se não pagasse, poderiam machucar João.
Assim, ela vendeu um dos equipamentos do restaurante e foi resgatar o marido. Mariana, a assistente de Gláucia, se aproximou assim que a chefe desligou o telefone. Ela já tinha passado por algo parecido; seu pai era viciado em jogo.
A moça tentou conversar e aconselhar Gláucia, lhe dizendo que era bom tirar João daquele porão, mas talvez fosse melhor repensar o casamento. Gláucia sabia que Mariana tinha boa intenção ao lhe dizer aquelas coisas, mas, sendo uma moça tão nova, não podia entender o peso de ser uma mãe com duas crianças, ainda que o marido pouco colaborasse. Na prática, ele era importante para manter a estrutura familiar.
Gláucia imaginou que o susto faria João repensar tudo o que estava fazendo, mas a situação teve efeito contrário. Quando chegaram em casa, João passou a gritar com a esposa, dizendo que ela era um inútil e que não podia ficar olhando para ele com aquela cara de superior. Chorando, Gláucia disse ao marido que estava muito decepcionada por ter descoberto que ele jogava e que, ainda por cima, era viciado.
Ao ouvir a palavra "viciado", João ficou louco e partiu para cima da esposa com toda a força. Ele estava muito irritado e bateu em Gláucia sem se importar que os filhos estivessem em casa, assistindo àquela cena horrível. Enquanto agredia, João dizia que nunca foi viciado em jogo, que ele apenas jogava para esquecer aquela mulher horrorosa que o esperava em casa.
João sacudia Gláucia e lhe dizia o quanto ela havia engordado e ficado feia. A culpa dele jogar e ter perdido tanto na mesa de cartas era de Gláucia, que era uma péssima esposa e, ainda por cima, era uma estúpida inútil que demorou muito para ir buscá-lo. Ela deveria ter saído correndo assim que foi avisada que ele estava preso no bar, mas, ao invés disso, levou horas.
Gláucia tentava se justificar, dizendo que precisou ir ao banco para tirar parte do dinheiro da poupança e ir atrás de um comprador para o equipamento do restaurante. O marido respondeu dizendo que não dava para esperar grande coisa de uma mulher como ela. Parecia que João estava descontando toda a raiva que sentia das pessoas que o aprisionaram na sua esposa.
Ao perceber que Gláucia estava machucada, João parou de agredi-la e lhe disse que esperava que ela não se fizesse de vítima para não trabalhar. Alguns hematomas e inchaços não eram o bastante para impedi-la de se impregnar com gordura e cozinhar. Gláucia trabalhou com grande dificuldade naquele dia.
Além de estar fisicamente machucada, também estava muito decepcionada com o marido. Situações como aquela se repetiram diversas vezes ao longo dos anos que se passaram. Agora, o casal tinha 20 anos de casados.
É uma história muito dura e difícil. Quando Mariana viu Gláucia, percebeu que algo muito ruim tinha acontecido. A jovem assistente se aproximou da chefe e perguntou como poderia ajudá-la.
Gláucia respondeu que estava tudo bem e que aquilo não era nada difícil. Mesmo assim, seria trabalhar sem o moedor de carne, o equipamento que ela vendeu para comprar a liberdade do marido. Mariana sorriu para a chefe e disse que ajudaria a encontrar uma solução.
Bruno, o outro assistente, ouviu parte da conversa e disse que resolveria a questão; ele tinha um moedor de carne em casa que quase não usava e poderia emprestar para o restaurante. Gláucia percebeu que, mesmo tendo o marido que agredia e era viciado em jogo, ainda podia contar com pessoas queridas, como os assistentes e os filhos. João nem se preocupava mais em fingir que trabalhava; ele dizia para todo mundo que era gerente do seu restaurante, mas, na prática, nunca estava no negócio.
O restaurante ficou totalmente sob os cuidados de Gláucia. Ela cozinhava, limpava e gerenciava; também era ela quem cuidava dos filhos e da casa do casal. João saía no final da tarde para beber e voltava apenas no começo da tarde do dia seguinte.
Para piorar as coisas, ele havia ficado ainda mais viciado em jogo e apostava quase todo o lucro do restaurante. Certa vez, ele chegou até mesmo a tirar do caixa do restaurante o dinheiro que estava separado para pagar o fornecedor de carne. Ele sabia que aquele valor era destinado para a compra de carne que Gláucia não teria para repor; contudo, ele não se importava que a esposa resolvesse a situação.
Quando o fornecedor chegou, Gláucia se deu conta de que não teria como pagar e que o empreendimento ficaria sem vários pratos importantes. A sorte de Gláucia foi que o dono da empresa fornecedora a conhecia há anos e deixou que ela pagasse dentro de duas semanas. Naquele dia, ela teve certeza de que o marido não se importava nem com ela, nem com os filhos e nem com o restaurante.
Mais uma vez, Gláucia estava sendo ajudada por alguém que não fazia parte de sua família. Como os estranhos podiam ser mais carinhosos e bondosos com ela do que o próprio marido? Há meses que Gláucia não sabia como fecharia o mês.
As retiradas de João prejudicavam muito o empreendimento. Quando a situação apertava, ela voltava a fazer seus panos de prato decorados e a vender para as pessoas do bairro; porém, a rotina no restaurante já era muito puxada e só sobrava madrugada para fazer o artesanato. Ela andava muito cansada e quase queimou o arroz algumas vezes.
A sorte era que Mariana e Bruno estavam sempre atentos. Eles gostavam muito da chefe e sabiam o quanto ela sofria com aquele marido insuportável. O estresse e a falta de tempo para cuidar de si fizeram com que a mulher engordasse no decorrer dos anos.
Gláucia, que sempre gostou de se exercitar, não tinha tempo nem para lavar o cabelo. Inclusive, essa era outra queixa do marido, que dizia que, com o cabelo oleoso de Gláucia, seria possível fritar um monte de batatas. Gláucia, que quando estava fora da cozinha adorava usar o cabelo solto, agora só usava os fios presos em um coque.
Sempre que tinha uma chance, João dizia para a esposa quanto ela estava gorda e que era uma vergonha que ela fosse tão preguiçosa a ponto de não fazer nada para mudar. O homem apontava para a esposa, dizendo que ver aquele cabelo sujo, as roupas feias e o desleixo com o peso era realmente muito incômodo. Numa noite, surpreendeu-se ao ver o marido entrando no restaurante.
Ele costumava passar as noites pelos bares. De repente, ela percebeu que ele não estava sozinho; havia alguns amigos junto. Após instalar os amigos em uma mesa, João se aproximou do balcão e disse para Gláucia que ele levou aquelas pessoas para comer no restaurante, mas que não era para ela se aproximar da mesa.
Quando a mulher perguntou por quê, João olhou para ela de cima para baixo e, com um sorriso maldoso, disse que teria muita vergonha se soubessem que ela era a esposa dele. Imagina os amigos sabendo que era para aquela mulher que ele voltava toda manhã! Gláucia observou João se dirigir para a mesa dos amigos e, quando um deles perguntou se a mulher do caixa era sua esposa, ele riu alto e perguntou se o amigo era maluco; como ele seria casado com uma mulher tão feia como aquela?
Todos riram na mesa enquanto olhavam para Gláucia com os olhos cheios d'água. A mulher foi para a cozinha; ao retornar para o caixa, Gláucia viu João e seus amigos comendo os pratos mais caros do restaurante. Certamente, ninguém daquela mesa pagaria por nada.
Olhando para aquela cena, ela se lembrou que, pela manhã, precisou servir bolachas secas para os filhos, com os ingredientes contados para as receitas do restaurante. Ela não podia levar muitos itens para casa; o dinheiro que sobrava após as retiradas de João mal dava para pagar as contas. Algumas vezes, as crianças iam para o restaurante com Mariana preparar uma versão mais modesta dos pratos vendidos; assim, Renan e Júlia podiam comer bem e não havia problemas com falta de insumos.
Contudo, nem sempre os pequenos podiam ir ficar com a mãe no restaurante. Gláucia sofria em ver eles sem ter algo bom para comer. As idas dos amigos de João ao restaurante para jantar sem pagar se tornaram mais frequentes e começaram a representar um rombo enorme.
Gláucia chamou o marido para conversar a respeito. Assim que ela começou a falar, ele gritou que ela era mesquinha; como podia negar uma simples refeição para algumas pessoas se tinha um restaurante? Além do mais, ela talvez não se lembrasse, mas o empreendimento também era dele.
Gláucia tentou explicar de forma educada que um restaurante não consegue se manter se fornecer seus pratos de graça todas as noites. João lhe disse que comer de graça era o mínimo que ele poderia fazer por seus amigos. Graça no restaurante era uma forma de economizar; assim, sobrava mais dinheiro para ele apostar mais tarde.
Após dizer isso, ele virou as costas e saiu. Gláucia ficou chorando por algum tempo e, então, se levantou e foi para o trabalho. Enquanto organizava tudo no restaurante, ela recebeu uma ligação de João.
Ele parecia muito nervoso e dizia para a mulher levar uma quantia em dinheiro em um bar, numa região perigosa da cidade. Gláucia ficou preocupada e perguntou se ele estava bem. Ele gritou com ela ao telefone, dizendo para ela parar de ser lerda e ir logo ajudá-lo.
Mais uma vez, Gláucia teria que arrumar um dinheiro que não tinha, deixar o trabalho e se arriscar num lugar perigoso pelo marido que só a maltratava. Ao longo do caminho, Gláucia ficou nervosa, pois o bar ficava realmente em uma região perigosa. Muito assustada, ela chegou ao bar indicado pelo marido.
Por lá, soube que ele havia perdido uma aposta e precisava pagar para poder ir embora. Todo o lucro do mês do restaurante foi perdido em uma única noite de apostas. Gláucia imaginou que o marido iria embora dali com ela, mas não foi isso que aconteceu.
Ao perceber que ela o estava esperando, João olhou para ela e disse para que sumisse da sua frente; a única função dela era levar o dinheiro, e ainda assim conseguiu demorar uma eternidade. Ele ainda fez questão de perguntar por que a mulher estava tão mal vestida. Agora, todos naquele bar comentaram que ele era casado com uma gorda imunda.
Um dos homens que estava no bar saiu para fumar e, ao ver Gláucia com lágrimas nos olhos, lhe disse que ela deveria ir embora dali e colocar o marido para fora de casa. Ele, assim como João, era um viciado em jogo, mas, diferente dele, não tinha família. Talvez se tivesse alguém para quem voltar, ele conseguisse deixar aquilo para trás.
Um homem que tinha esposa e filhos e ainda assim preferia apostar e perder não merecia o que tinha. As pessoas que estavam em volta dos dois riram, e um dos homens até comentou que João era um homem muito corajoso. Afinal, para encarar aquela mulher, era preciso ser forte.
João riu e disse que era necessário porque tinha dois filhos com ela. Assim, ele dispensou a esposa e retornou para a mesa de apostas, decidido a tentar virar a sua sorte. Gláucia fez o caminho de volta daquele bar até o seu restaurante com muita tristeza pelas ofensas e apreensiva, porque era um lugar perigoso.
Chegando novamente ao seu estabelecimento, ela se pôs a fazer as contas e percebeu que, depois de pagar a dívida de jogo do marido, seu negócio fecharia no vermelho. O restaurante sobrevivia duramente às retiradas constantes que João fazia; contudo, pela primeira vez, não haveria dinheiro suficiente para pagar as contas. Talvez ela nem conseguisse pagar os salários dos funcionários.
Talvez a única solução fosse tentar um empréstimo. Como dizer para Mariana e Bruno, as pessoas que sempre ajudaram, que talvez ela atrasasse o pagamento deles naquele mês? E pior que não havia certeza de que o empreendimento continuaria existindo em longo prazo.
Gláucia sabia que solicitar um empréstimo significava iniciar uma dívida com o banco, algo que poderia ser bastante difícil de administrar com o passar do tempo. Muito preocupada, ela pensou em mais uma vez ter uma conversa com João. O marido precisava diminuir o ritmo das suas apostas, pois, caso contrário, eles acabariam sem nada; poderiam até perder o restaurante.
Ela esperou até que o marido estivesse mais ou menos sóbrio para falar com ele a respeito. Porém, para maltratá-la, não era preciso que ele tivesse bebido. Assim que percebeu qual era o objetivo da conversa, ele se levantou da mesa do café e bateu na esposa.
João lhe disse que estava cansado das reclamações dela e, ao dizer isso, fez questão de mencionar o quanto ela era gorda e chata. Parecia não ser mais o bastante; então, talvez se ele batesse nela com mais frequência, ela se tornasse mais maleável e ele pudesse suportá-la por mais tempo. Assim que terminou de agredi-la, ele olhou para ela e disse que se levantasse e se preparasse para o trabalho; afinal, ele precisava de dinheiro para poder fazer as suas apostas, como se nada houvesse acontecido.
João disse que sabia que a sorte finalmente sorrira para ele naquele dia, então era necessário ter com o que apostar. Ele tinha planos grandiosos para a mesa de cartas naquele dia, algo que mudaria a sua vida para sempre. Ao ouvir aquelas palavras do marido, Gláucia estremeceu; ela pressentiu que algo muito ruim aconteceria, porém não podia nem imaginar o que a esperava.
João saiu, como sempre fazia, e não deu notícias. Tudo caminhava normalmente no restaurante. Ela estava ocupada preparando alguns pratos quando foi informada por um funcionário que havia um homem querendo falar com ela.
Gláucia recebeu um documento que estava assinado por João, em que o restaurante deles era dado como garantia de uma aposta. O marido, não satisfeito em perder o lucro do estabelecimento, apostou no próprio restaurante. Gláucia ficou confusa, pois o restaurante era dos dois.
Como ele poderia ter apostado algo sem o seu consentimento? Porém, essa dúvida logo foi sanada: João tinha uma procuração assinada pela esposa. Pensando bem, ela realmente se lembrava de ter assinado alguns documentos para o marido, mas jamais poderia imaginar que ele estava planejando algo assim: tirar a única fonte de lucros dela e dos filhos.
Gláucia precisava conversar com o marido e descobrir como desfazer isso; eles não podiam perder o restaurante. O que seria dela e dos filhos? Suas pernas amoleceram.
Ela foi amparada por Mariana e Bruno, que viram quando a chefe foi chamada; eles ouviram a conversa. Infelizmente, Mariana já tinha vivido algo assim: seu pai uma vez apostou a casa da família na mesa de cartas e perdeu. Ela, a mãe e os três irmãos foram obrigados.
A sair da casa onde moraram a vida toda, mas isso foi em outros tempos, Mariana disse que Gláucia não deveria desistir tão fácil do que era seu. Não demorou até que João chegasse ao restaurante; ele estava muito bêbado. D estava bem nervosa; ela tentava entender se aquele documento assinado pelo marido realmente tinha valor legal.
João já chegou gritando com a esposa, perguntando se ela era louca de não entregar o restaurante para o cobrador da dívida de jogo. Qual era o problema de Gláucia que era incapaz de só fazer o que lhe diziam? Chorando e com muita vergonha dos clientes que estavam no restaurante, Gláucia disse que não iria entregar o seu empreendimento para um estranho.
João gritava com a esposa, dizendo que ela era muito burra e que, se não entregasse o restaurante, ele estaria acabado. O homem para quem ele perdeu a aposta era muito perigoso e conhecido por usar violência para cobrar as dívidas. Gláucia perguntava para João por que ele fazia essas coisas, por que ele estava o tempo todo bebendo e procurando confusão.
A resposta dele foi que era impossível ser feliz ao lado da mulher mais feia do mundo e com aqueles dois filhos insuportáveis. Foram muitos anos de uma vida medíocre ao lado de uma mulher que não se cuidava e só ficava mais feia ao longo dos anos. Percebendo que todos os presentes no restaurante olhavam para ele, João gritou o mais alto que pôde: "Você é uma gorda suja e burra!
Entregue logo o restaurante ou eu vou te deixar! " Mesmo que estivesse acostumada aos maus-tratos do marido, Gláucia se sentiu humilhada de uma forma como nunca antes. Ele estava gritando para todos aqueles estranhos que ela era uma gorda suja e burra, justo ela, a mulher casada com ele há 20 anos e que sempre se dedicou a ajudá-lo, até quando ele só sabia maltratá-la.
Gláucia estava paralisada diante de João e ele continuou a discussão, perguntando se ela era surda ou só muito burra mesmo, o que ela estava esperando para tirar as suas coisas do restaurante e entregar tudo para o novo dono. O cobrador chegaria em uma hora e já havia avisado a João que ele devia pagar o que devia. O homem estava indignado pela recusa de Gláucia em entregar o restaurante quando solicitado.
Como se estivesse dentro de um pesadelo, Gláucia virou-se e se dirigiu até a cozinha; aparentemente, ela iria fazer o que o marido a estava mandando. No entanto, ao chegar na cozinha, Gláucia usou seu celular para ligar para um primo advogado. No telefone, ela contou resumidamente o que estava acontecendo e seu primo a aconselhou a não sair do restaurante e a chamar a polícia.
Apostas como aquela que João havia feito eram ilegais e ele não podia apostar em endividamento familiar. Mesmo que tivesse uma procuração, contudo, o primo de Gláucia explicou para ela que uma das consequências de chamar a polícia seria a prisão de João. Tanto ele quanto o homem que estava cobrando a dívida haviam agido contra a lei.
Pensando em seus dois filhos, que muitas vezes não tinham nem o que comer em casa, e em como ela havia lutado para erguer aquele restaurante, Gláucia ligou para a polícia. Mariana ficou ao lado de Gláucia enquanto ela fazia a ligação; lhe deu força e disse que ela e os irmãos teriam tido uma vida muito melhor se a mãe deles também tivesse tido essa coragem. Ouvir aquelas palavras confortou Gláucia, pois era difícil saber que ela estava entregando o próprio marido para a polícia.
Quando o credor da dívida de jogo de João estava estacionando o carro em frente ao restaurante, foi surpreendido pelas viaturas. Os policiais anunciaram a prisão do homem, que não resistiu, pois entendeu que foi pego em flagrante, já tendo tido outros problemas com a justiça. Aquele homem sabia que não era bom resistir.
João ficou muito surpreso quando percebeu o que acontecia do lado de fora do restaurante. Ele então correu para a cozinha, muito irritado, e perguntou para Gláucia se ela tinha algo a ver com isso. Muito calmamente, enquanto mexia uma panela de molho, a mulher disse que sim; afinal, foi ela quem chamou a polícia.
Sem acreditar, João perguntou para a esposa se ela entendia o que significava aquilo. Novamente, Gláucia lhe respondeu com bastante calma que entendia muito bem. Dois criminosos foram presos naquela noite.
João então lhe perguntou o que ela queria dizer com "dois". A esposa sorriu assim que viu os policiais entrando na cozinha para anunciar a prisão de João. João ficou descontrolado ao ver os policiais prontos para prendê-lo e, então, olhando para a esposa mais uma vez, gritou para ela o quanto a achava horrorosa.
Ele lhe disse que ela se arrependeria amargamente do que estava fazendo, pois ele era o único homem louco o suficiente para se manter casado com uma mulher tão feia por tanto tempo. Com uma expressão séria e decidida, Gláucia disse ao marido que era uma pena que ele pensasse dessa forma e que, a partir do momento em que ele estava deixando claro que não a queria mais, ela não moveria um dedo para tirá-lo da prisão. Até aquele momento, ela ainda considerava a possibilidade de pagar um advogado para ajudá-lo; no entanto, não sendo mais a sua esposa, não tinha por que fazer isso.
Desesperado, João disse que ela não podia fazer isso; afinal, ele era o pai dos filhos dela. Gláucia não seria doida de deixá-lo preso; enquanto João estava ali, Gláucia tentou se manter forte, porém, assim que os policiais o levaram, ela chorou muito. Era terrível imaginar que seus filhos ficariam sem ver o pai por um longo período e que ela precisaria seguir sozinha.
Porém, Gláucia também sabia que tinha coragem para tocar aquele restaurante e fazê-lo ser um sucesso novamente. Mariana e Bruno abraçaram-na e disseram que ajudariam a resolver os problemas do mais do que um trabalho. Aquele restaurante era como um lar, e Gláucia era como uma família para os dois.
Novamente, Gláucia se deu conta de que, mesmo com um casamento tão ruim, ela ainda era uma pessoa muito querida por todos que conviviam com ela. Os meses seguintes foram de grande trabalho; Gláucia conseguiu um empréstimo em um banco e reformou o restaurante. O cardápio ganhou novos pratos, muitos criados pela própria Gláucia, sem a interferência negativa de João.
A mulher mantinha o empreendimento dando lucro. Mariana se tornou seu braço direito e logo assumiu um cargo mais alto na cozinha; inclusive, agora havia mais funcionários trabalhando, tanto no preparo dos pratos quanto no salão. Gláucia finalmente podia se concentrar apenas em ser a estrela da cozinha.
Ela contratou um gerente experiente para colocar os livros de finanças da empresa em dia; não precisar contornar as vultosas retiradas de dinheiro que João fazia para beber e jogar foi decisivo para que Gláucia e os filhos tivessem uma vida muito melhor. A tranquilidade de não ter um jogador compulsivo como sócio tornou Gláucia muito mais alegre e pronta para enfrentar os desafios. Era muito fácil perceber como o restaurante havia crescido e evoluído.
Gláucia era uma pessoa muito mais radiante sem a presença de João. João ficou preso por alguns anos, e quando finalmente cumpriu a sua pena, foi atrás da ex-esposa e dos filhos. Ao longe, ele observou Gláucia muito feliz em frente ao restaurante, junto aos filhos e ao novo marido, com quem ela se casara recentemente.
Inclusive, Gláucia esperava com ansiedade a chegada do terceiro filho, que já era muito amado pelos irmãos e pelo pai. Renan e Júlia também se tornaram mais felizes; não viviam mais com medo das explosões do pai e sabiam que sua mãe estava realmente feliz. Ao longo dos anos em que o pai esteve preso, Renan passou a ajudar a mãe no restaurante e descobriu que tinha grande afinidade com números.
Agora, ele já sabe que quer ser contador quando for mais velho. Júlia, por sua vez, se tornou uma criança menos introspectiva e passou a ter mais amigos na escola. Houve momentos em que Gláucia se questionou se agiu certo ao denunciar o marido.
Nesses momentos, ela pôde contar com a mão amiga de Mariana. A moça sempre disse para a chefe que teve uma vida muito sofrida porque sua mãe não teve coragem de fazer o que Gláucia fez. Talvez ela não entendesse naquele instante, mas no futuro poderia ver que aquilo garantiu uma infância feliz para seus filhos e a salvação do próprio ex-marido.
Mariana e Bruno continuaram ajudando Gláucia no restaurante; os dois foram recompensados, podendo fazer cursos pagos pela chefe. Eles se tornaram profissionais ainda mais qualificados. Era incrível como todos tiveram sua vida melhorada depois que João saiu de cena.
Ninguém mais precisava se dividir entre cumprir a sua função no restaurante e vigiar o que João estava fazendo. Não houve mais ligações fora de hora para anunciar que o marido de Gláucia estava sendo feito prisioneiro em algum porão de bar. Poder se concentrar no trabalho e no aperfeiçoamento profissional fez com que Mariana e Bruno descobrissem que tinham mais afinidades além do gosto pela cozinha.
Os dois começaram a namorar. Há um ano e dois dias, tinham anunciado que se casariam, e claro que a madrinha seria Gláucia. A vida parecia sorrir e ser generosa com todos os que haviam passado tanto tempo reféns do vício de João.
Ver Gláucia reunida com sua nova família fez com que João percebesse qual foi a maior aposta que ele perdeu. Aquele homem tão feliz brincando com seus filhos e sorrindo para Gláucia poderia ser ele. A frustração dele o impediu de ver que ele sempre teve o que havia de melhor.
Sabendo quanto havia magoado seus familiares, ele decidiu que ainda não falaria com eles, mas quem sabe um dia. Primeiro, ele precisava se reerguer, encontrar um trabalho, permanecer sóbrio, pedir o perdão de Gláucia. Quando João estivesse estabilizado, ele procuraria sua família e pediria para fazer parte, de alguma forma, daquela felicidade.
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Um grande beijo e até o próximo vídeo!