Estamos lendo a primeira carta de São João. Nesses dias, hoje lemos um trecho especialmente importante. Ele diz: "Caríssimos, qualquer coisa que pedimos recebemos dele, de Cristo, porque guardamos os seus mandamentos e fazemos o que é do seu agrado.
Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu. " Esse versículo é central para entendermos os escritos de São João, porque os escritos de São João estão, digamos assim, baseados nessa dupla coluna: o mandamento de Deus consiste em crer no nome do seu filho, Jesus Cristo, e em amar-nos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu. Nesse sentido, nós podemos dizer que há uma diferença entre a concepção do mandamento da caridade dos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e o evangelho de São João.
Os Evangelhos sinóticos partem daquela estrutura dupla: amar o próximo como a si mesmo, mas amar a Deus sobre todas as coisas em primeiro lugar. Ora, aqui não é assim. O que São João chama de crer no nome do seu filho, Jesus Cristo, é unir-se de tal modo ao Verbo encarnado, mergulhar de tal modo no Verbo encarnado que nós já ficamos saturados do seu amor.
Por exemplo, quando Jesus conversa com Nicodemos no capítulo 3 do Evangelho de São João, ele diz: "Quem crê no Filho tem a vida; quem crê no Filho será salvo; quem não crê já está condenado, porque não creu no nome daquele que Deus enviou. " Mas, antes disso, ele diz: "Deus amou de tal modo o mundo que enviou seu Filho unigênito, a fim de que todo que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna. " Quem nele crê será salvo; quem não crê já está condenado.
Crê no quê? Na sentença completa: "De tal modo Deus amou o mundo que enviou o seu Filho unigênito. " Ou seja, eu preciso crer no amor; eu preciso mergulhar na realidade de que Deus é amor.
Crer na perspectiva de São João é mergulhar de cabeça em Deus, através de Jesus Cristo. E, uma vez que nós fazemos isso, a consequência mais radical - inclusive até mais óbvia - é que nós vamos amar o próximo, transbordando do amor de Deus. Nós nos amaremos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu.
Quem guarda os seus mandamentos permanece com Deus, e Deus permanece com ele. Ou outra tradução poderia dizer: "Permanece em Deus, e Deus permanece nele. " Ou seja, essa mútua permanência - eu em Deus, Deus em mim - é o que caracteriza a vida espiritual.
Essa mútua permanência, de fato, é realizada pela união entre a fé e a caridade. Ou seja, quando eu realmente me lanço em Cristo e, por assim dizer, bebo dessa linfa divina que é a caridade, o amor de Deus passa a circular em nós. Então, o segredo da vida espiritual é permanecer em Deus.
Isso é muito importante, porque a maior parte das pessoas não entende isso. A maior parte das pessoas pensa que a vida espiritual consiste num aprimoramento, então, eu vou me embelezar espiritualmente. Eu vou rezar para ficar melhor, vou fazer tudo certinho, vou impressionar a Deus, estudar moral para saber o que eu faço, o que eu não faço, o que é certo, o que é errado, etc.
E fica todo mundo numa espécie de vaidade espiritual, que quanto mais, digamos, se embeleza, tanto mais se afasta do ideal da espiritualidade. É interessante que, na sequência, São João diz: "Ele permanece conosco, sabemo-lo pelo Espírito que ele nos deu. Caríssimos, não acreditem em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus; pois muitos falsos profetas vieram ao mundo.
" Este é o critério para saber se uma inspiração, se um espírito, vem de Deus: todo espírito que leva a professar que Jesus Cristo veio na carne é de Deus, e todo espírito que não professa a fé em Jesus não é de Deus. É o espírito do Anticristo. Ouvistes dizer que o Anticristo virá?
Pois bem, ele já está no mundo. O que São João está dizendo aqui é que a comprovação de que nós permanecemos na fé e na caridade, que nós permanecemos em Deus e Deus permanece em nós, é a atuação do Espírito Santo em nós. Uma atuação que nos leva ao Verbo encarnado, nos leva a morar no Verbo encarnado e a permitir que o Verbo encarnado more em nós.
E isso é absolutamente transformador. Por quê? Nós temos muitas escolas de espiritualidade não cristãs, por exemplo, todas aquelas escolas de espiritualidade de matriz hindu-budista que depois produziram a yoga, a meditação transcendental e essas coisas.
Todas elas estão fundamentadas numa realidade que é constitutiva de todos nós, que é o cansaço de nós sermos nós mesmos. Ou seja, quando eu digo "eu", eu me contraio para dizer "eu". Eu preciso fazer uma contração psicológica, isso é cansativo.
Então, todas essas escolas de espiritualidade ensinam, no fundo, ao homem se esvaziar e se diluir no nada. E aí ele encontrará o verdadeiro repouso, a verdadeira iluminação. No cristianismo não é assim.
Eu também tenho a experiência do cansaço de ser eu mesmo, só que já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Ou seja, eu troco a relação de esvaziamento pela relação de alteridade, de uma alteridade divina. Deus não é alguém indeterminado, ele tem uma identidade.
Isso é essencial tanto no Antigo como no Novo Testamento. E não apenas isso, ele se fez homem para que eu pudesse pegá-lo, tocá-lo, tangê-lo, para que eu pudesse, de alguma maneira, me encher dele. É por isso que, no Novo Testamento, diferentemente do Antigo, depois da Encarnação, nós temos a imagem do crucificado, as imagens de Jesus e dos Santos.
Fez carne justamente para afetar o nosso ser por inteiro: os nossos sentidos, o nosso corpo, a nossa alma, para que nós descansemos de nós mesmos no Cristo, sendo levados para o Verbo encarnado até o ponto em que, encharcados da vida de Cristo, Ele seja a alma da nossa alma, e aí nós percebamos Cristo agindo em nós como agiu na vida dos Santos. Todos nós somos doentes; nós nascemos como seres precários. A doutrina da Igreja no pecado original não é apenas uma doutrina bíblica, mas é uma doutrina que tem raiz na nossa experiência humana.
Nós todos nascemos inclinados ao mal, propensos ao mal; nós somos por dentro quebrados, há uma fratura no nosso interior. A gente quer e não quer; a gente sabe o que quer e não quer o que a gente sabe. E a nossa vida vai, meio que sempre, caminhando em sentido um pouco oposto.
A nossa psique é fendida; isso não tem solução. Só existe uma solução para isso: o Verbo encarnado. Ou seja, eu deixar a vida do Cristo penetrar na minha; deixar que Ele produza virtude onde existe fraqueza; deixar que Ele produza a luz da sabedoria onde existem as trevas da ignorância; deixar que Ele produza uma vontade assertiva onde existe uma vontade totalmente desencaixada, e que, inclusive, é meio doida, porque ela é escrava de pulsões que sempre a levam em sentidos antagônicos.
E nós vemos isso na vida dos Santos, como aqueles homens e mulheres que mergulharam de verdade no Cristo conseguiram deixar de ser eles mesmos para serem eles mesmos em Cristo, ou para deixarem que Cristo fosse neles de tal modo que toda a sua personalidade, sem perder a sua individualidade, fosse afetada por esse novo fator chamado Cristo. Jesus é aí que está o Espírito Santo. O que é contrário a isso é o espírito do Anticristo, é o espírito do mundo.
Filhinhos, vós sois de Deus, e vós vencestes o Anticristo, pois convosco está Quem é maior do que aquele que está no mundo. Os vossos adversários são do mundo; por isso, há um forma o mundo, e o mundo lhes presta ouvidos. Nós somos de Deus; quem conhece a Deus nos escuta, quem não é de Deus não nos escuta.
Nisto reconhecemos o espírito da Verdade e o espírito do erro. Ou seja, é muito claro quem vive em Cristo ou quem em Cristo vive e quem vive de acordo com suas tendências naturais, todas elas descompassadas, todas elas desconstrutivistas da nossa pessoa. Vamos pedir ao Senhor que nos leve a uma união mais profunda com o Verbo encarnado, com Jesus Cristo, pela água e pelo sangue, pela fé e pela caridade.
Praticando esses dois mandamentos, não tem como um cristão se santificar sem praticar a fé e a caridade; isso é, sem a oração e os sacramentos, pelos quais ele pega o Cristo e o ama e o envolve com o seu amor. Vamos pedir ao Senhor que nos faça crescer em espírito de oração, porque por nós mesmos somos perdidos; não há esperança, não tem jeito. A melhor das hipóteses é nós encararmos as nossas incongruências e aprendermos a conviver com elas.
O que é o inferno? Ou nos deixarmos afetar pelo Senhor e, desse modo, sermos transformados pelo poder sobrenatural da sua divina graça.