Tem coisa que a gente guarda por anos, como se esconder a dor fosse um jeito de sobreviver. Mas chega uma hora em que o silêncio começa a pesar mais que a lembrança. Eu levei muito tempo para entender isso, muito tempo mesmo. Hoje, com 70 anos, eu olho para trás e vejo tudo que engoli calada, tudo que vivi por alguém esquecendo de mim. E é por isso que agora eu resolvi contar, não para me vitimizar, mas porque talvez você que está ouvindo já tenha sentido o que eu senti. Quando tudo aconteceu, eu tinha 58 anos. Trabalhava
de sol a sol, como sempre fiz. Naquela época eu achava que estava no auge do meu propósito, mas mal sabia que a vida ainda ia me virar do avesso. Meu nome é Marta, tenho 70 anos e moro na zona oeste do Rio de Janeiro. Trabalhei a vida inteira como faxineira, lavando roupa, cuidando de idoso, fazendo o que aparecesse. Nunca me aposentei porque nunca tive escolha de parar. Quem me conhece me chama de dona Marta, ou só Marta mesmo, com aquele tom de quem confia. Sou dessas que fala baixo, mas sente tudo por dentro. Das que
seguram o mundo com o corpo cansado e o coração cheio. E se você já passou por alguma dor calada, se já se sentiu esquecida mesmo estando presente, então fica aqui comigo, porque a história que eu vou contar talvez encontre um pedacinho da sua também. E antes da gente começar, aproveita para se inscrever aqui no canal. Isso me ajuda a continuar dividindo essas histórias com você e faz toda a diferença para que mais pessoas também possam ouvir. Tem coisas que a gente faz uma vez e nunca mais esquece. Como colocar uma criança no colo pela primeira
vez? Segurar o choro para não parecer fraca ou fingir que não ouviu o que doeu? Minha vida foi cheia desses momentos e por mais que o tempo passe, o corpo reclame, a alma canse, tem algo que nunca mudou. Eu vivi pela minha filha. Ana Júlia era só uma menininha de três anos quando o pai dela morreu. Um acidente de moto que levou tudo embora num estalo. Daquele dia em diante, eu não tive tempo para mim, nem para chorar, nem para pensar no que seria do meu futuro. Só sabia que precisava trabalhar, cuidar dela, criar essa
menina do melhor jeito que eu pudesse, mesmo sem saber direito como. O despertador mais tarde virou só enfeite. Meu corpo já se acostumava a levantar antes dele. Eu me sentava na beira da cama, ainda escuro lá fora, e deixava os pés tocarem o chão gelado. Era assim quase todo dia. O colchão onde a Ana dormia ficava logo ali do lado. Coberta até o pescoço, ela parecia tão tranquila, tão distante de tudo que eu passava para manter aquela paz. Comia uma banana ou um pão dormido com café preto e saía. A mochila nas costas. A sacola
de limpeza numa mão e o cansaço já agarrado nas costas. O tênis velho machucava meu calcanhar, mas ainda era melhor do que ir de chinelo. Tinha orgulho de não aparecer desleixada na casa das patroas. Uma vez uma delas disse que pelo menos eu tinha um certo capricho. Não era elogio, mas fingi que era. Tinha dias com três, quatro faxinas. Nas primeiras casas ninguém me cumprimentava direito. Às vezes o dinheiro ficava num envelope em cima da pia. Outras vezes só um bilhete apressado com instruções. Na última do dia, uma senhora viúva me oferecia café e perguntava
da Ana. Era o único momento que eu lembrava que ainda era gente. O cheiro de Cândida grudava na roupa, na pele, nas mãos. Tinha vezes que eu sentia gosto de desinfetante no almoço, mas nunca reclamei. Enquanto esfregava chão, pensava na Ana Júlia, nos cadernos dela, nos sonhos dela. Aquilo era minha força. No fim do dia, eu passava na feira, comprava fruta machucada, tomate mais barato e chegava em casa com as pernas pedindo cama. Mas encontrava Ana na mesa, livros espalhados, a testa franzida, a caneta entre os dedos finos. "Como foi a prova de ciências?", perguntei
uma vez, largando a sacola no chão. "9:30", ela respondeu, sem tirar os olhos do caderno. Sorri por dentro. Senti como se tivesse recebido um prêmio e falei quase num sussurro: "Você vai ser médica, minha filha?" "Vai sim." Ela deu um risinho envergonhado. A professora Helena falou que se eu continuar estudando assim, posso até tentar a federal. Tenta, tenta que a gente dá um jeito. Eu não sabia como, mas essa parte era comigo. Ela só precisava sonhar. Nos domingos, eu lavava a roupa no tanque da frente. O barulho da escova na roupa era música de fundo
para as fofocas da vizinhança. E entre todas tinha uma voz que se destacava: "Dona Nels". Essa tua mãe vive no tanque, hein, Ana Júlia? Quando você for médica, leva ela para morar num lugar decente", dizia com aquele tom de riso venenoso. No começo, Ana ria. Depois só ficava quieta. Eu fingia que não escutava, mas cada palavra daquela mulher entrava feito farpa. A comida era simples. Arroz, feijão, ovo frito, às vezes salsicha. Ana gostava do alho torrado que eu colocava por cima. Ela dizia que só eu fazia daquele jeito e eu achava bonito ela notar essas
pequenas coisas. À noite, depois de tudo, eu passava um creme barato nas pernas e me sentava no canto da cama. Conversava sozinha. Dizia para mim mesma que faltava pouco, que a Ana ia vencer, que eu não podia desistir agora. Escrevia uns bilhetes e colava na parede. Você tá indo bem. Não chora, só respira. Ela vai ser tudo o que você sonhou. Teve uma vez que ela chegou com um certificado da escola. Tinha ficado em segundo lugar num concurso de redação. Escrevi sobre a senhora disse entregando o papel. Sobre mim, sobre ser filha de mãe solo.
Deu um aperto no peito, uma mistura de medo e orgulho. E você falou o quê? que a senhora é a mulher mais forte que eu conheço. Fui pro banheiro para não chorar na frente dela. Me olhei no espelho e vi uma mulher exausta, com olheiras fundas e os dedos duros de tanto esfregar. Mas me senti bonita por dentro. Por um segundo, me senti inteira. A sensação durou pouco. No dia seguinte, dona Nels veio com mais uma. Ouvi dizer que tua filha me está escrevendo sobre a mãe faxineira. Espero que não esteja com vergonha de dizer
que mora num barraco. Ana o viu, fingiu que não, e naquela noite não quis jantar. De uns tempos para cá, ela também parou de querer que eu fosse nas reuniões da escola. Dizia que não precisava, que a professora já sabia que ela ia bem. É muita correria pra senhora. Pode deixar que eu resolvo. Dizia. Eu engolia seco e dizia: "Tá certo, mas queria estar lá. Queria ver a menina que eu criei sendo elogiada. As dores começaram a aumentar, as mãos rachadas, as costas travando. Algumas patroas começaram a me dispensar. Diziam que eu estava mais lenta.
Uma até falou: "Vou chamar uma moça mais nova". Eu só agradeci. Saí com a cabeça erguida e o coração em migalhas. Em casa, continuei lavando os uniformes da Ana, passando as camisas, deixando tudo dobrado. Ainda assim, ela começou a se afastar. Comecei a notar um silêncio que não existia antes, um cuidado exagerado com as palavras, como se eu tivesse virado alguém que ela precisava esconder. Mas eu seguia porque acreditava, porque achava que se minha filha conseguisse ser médica, tudo ia fazer sentido. Até as noites sem jantar, até as vezes que me senti um peso, até
as palavras venenosas que fincavam sem ninguém perceber, porque ela era tudo o que eu tinha. E naquela altura da vida, eu já não sabia mais quem eu era sem ela. Aquela semana começou como qualquer outra. Eu já estava acostumada com o som dos chinelos no corredor, com o cheiro do feijão na panela de pressão e com as contas espalhadas pela mesa da cozinha, esperando um milagre. Mas naquela tarde, quando cheguei da faxina, a Ana Júlia estava sentada com o celular na mão, os olhos arregalados, os dedos tremendo. Ela não falou nada logo de cara, só
me olhou. Foi o cizu, mãe. Eu larguei a sacola no chão. O quê? Passei medicina federal. O coração bateu tão forte que eu achei que ia cair sentada. Senti as pernas fracas, como se o chão tivesse sumido debaixo de mim. Fiquei olhando para ela, esperando ela rir e dizer que era brincadeira, mas os olhos dela brilhavam de verdade, a boca entreaberta, como se ela mesma não acreditasse: "Medicina?" Repeti, como se a palavra fosse mágica. Medicina na Universidade Federal, em São Cristóvão. Abracei ela com tanta força que ela até reclamou. O rosto dela se enfiou no
meu ombro e eu deixei que ela não visse o choro que descia controle. Foi como se naquele instante tudo tivesse valido a pena. Cada dia de trabalho em silêncio, cada roupa lavada no frio, cada humilhação engolida, tudo ganhou sentido. Passamos a noite acordadas, fazendo planos. Ela pegou o notebook emprestado da escola e começou a olhar onde era a faculdade, os bairros ao redor, valores de aluguel. A empolgação dela me fazia esquecer do cansaço. Eu só pensava. Ela conseguiu. No dia seguinte, falei com três patroas e pedi adiantamento. Peguei emprestado com uma conhecida da igreja, cortei
tudo que podia cortar até o plano do celular. Ana precisava de tudo. Agora a gente ia mudar de cidade, recomeçar. Ela mesma disse: "Eu não conseguiria sem você, mãe. Ouvir aquilo me deu mais força. Fui até o banco ver se dava para financiar algum apartamento pequeno. A moça olhou meu nome, fez careta e balançou a cabeça. Nome negativado, dona Marta. Complicado. Respirei fundo. E se eu colocar no nome da minha filha? Ela tem 18 anos. Tem. A mulher deu um sorriso fraco. Então podemos tentar. Foi assim que dias depois assinamos o contrato do aluguel com
o nome dela. Era um apartamento bem simples, dois cômodos apertados, mas limpo, com uma janelinha que dava para a rua e ficava a uns 20 minutos da universidade. Eu agradeci como se tivesse ganhado uma casa de verdade. No caminho da mudança, dentro do ônibus lotado com as malas no colo e o calor sufocando, Ana me contou de novo sobre a professora Helena. Ela foi a primeira pessoa que me falou que menina da periferia também podia ser médica. Lembro de você voltando da escola empolgada, falando dos hospitais, das médicas negras. Foi aquela visita, né? Ana sorriu.
Foi. A professora Helena era doce e firme. Sempre acreditou nela. Eu também sempre fui grata por aquilo. Uma faísca bem acesa pode iluminar uma vida inteira. No primeiro dia na cidade nova, a Ana já queria organizar tudo do jeito dela. Quis escolher onde ia a escrivaninha, onde ficavam os livros. Eu deixei. Me contentei com um cantinho da sala, onde coloquei meu colchonete e uns poucos pertences. A casa era dela agora e eu fazia questão de lembrar disso para mim mesma. Passei a buscar trabalhos na vizinhança. Perguntei nos mercadinhos, nas igrejas. Algumas senhoras aceitaram que eu
limpasse para elas uma vez por semana. Era menos do que antes, mas dava para sobreviver. O importante era que Ana tivesse paz para estudar. Ela saía cedo com a mochila pesada nas costas e os olhos brilhando de expectativa. Quando voltava, contava histórias do campus, das aulas de anatomia, dos professores. Eu ouvia tudo com atenção, mesmo sem entender metade das palavras. Teve um dia que ela chegou contando que tinha conhecido um colega chamado Rafael. Falou dele com um sorriso que não aparecia com qualquer pessoa. Ele é filho de médicos, já sabia tudo sobre o curso antes
de começar, disse. Eu senti uma pontada no peito, mas disfarcei. Só cuidado, filha. Essas famílias mais ricas às vezes não entendem a nossa vida. Ele é legal, mãe. Não é como os outros. Eu não quis estragar o momento, só guardei aquilo. No sábado seguinte, levantei antes do sol, como sempre, fiz café e preparei um pão com ovo para ela. Deixei na mesa com bilhetinho. Bom dia, minha médica. Ela sempre ria desses bilhetes, pelo menos no começo. Na hora do almoço, ela comentou que ia ter uma apresentação no laboratório. Falei que podia ir, que queria assistir,
mas ela hesitou. Não precisa, mãe. Vai ser rapidinho, só para a turma. Eu entendi ou tentei entender. Lavei a louça com mais força do que o necessário naquele dia. A espuma quase escapava da pia. Passei a notar que com o tempo ela falava menos sobre os colegas. Quando falava era sempre sobre as roupas deles, os relógios, os carros. Eles têm uma vida tão diferente da nossa mãe, tipo, parece filme. Mas você é igual a eles, Ana. Tá fazendo o mesmo curso na mesma universidade. Ela olhou para mim e forçou um sorriso. É verdade. Naquela noite
escrevi mais um bilhete para mim. Você tá aqui para lembrar ela de onde veio. E isso não é vergonha. Nosso apartamento era pequeno, mas dava para viver. Eu ajeitava tudo para ela se sentir bem. Tentava manter o cheiro de limpeza, deixava as toalhas dobradas, o café pronto. Me sentia útil, mesmo quando ela não dizia nada. Um dia cheguei da rua e encontrei ela no telefone. Quando me viu, abaixou o volume, virou de costas. Achei estranho, mas não disse nada. Mais tarde ouvi ela comentando com alguém que morava sozinha. Fiquei parada em silêncio. Respirei fundo e
fui dobrar roupa. O coração de mãe sente as rachaduras antes delas virarem abismo, mas a gente finge que não. Acredita que é só impressão, que é só fase. Eu repetia para mim mesma. Ela tá nervosa com o curso, tá tentando se adaptar. Ela vai voltar a ser aquela menina do sofá com o caderno no colo, sorrindo com as notas boas. Mas no fundo, bem lá no fundo, algo dentro de mim já sabia que o mundo dela estava mudando e que eu aos poucos começava a não caber mais nele. No começo era só o silêncio, coisa
pequena, como um comentário que ela não fazia mais. Antes, Ana chegava em casa contando até o nome do cachorro do colega. Depois começou a resumir os dias em tudo certo. Eu perguntava se tinha comido, se precisava de dinheiro pro xerox, se estava cansada. Ela respondia rápido, sem levantar os olhos do celular. Dizia que estava ocupada com os trabalhos em grupo, com as aulas práticas e eu fingia acreditar. Aos poucos, a faculdade dela virou um lugar de onde eu só ouvia falar, mas onde não era mais convidada a entrar. Teve um evento com os pais de
alunos. uma espécie de palestra com os professores. Ela chegou em casa meio sem jeito, sentou ao meu lado e falou com aquele tom que disfarça as intenções. Mãe, acho que nem vale a pena a senhora ir nesse negócio da faculdade. É só gente metida, sabe? Ficam falando difícil, vai ser chato. Eu balancei a cabeça devagar. Se você acha melhor assim, é melhor. E tem a roupa também, né? Lá é tudo social. Vai por mim. Vai ser perda de tempo. Ela se levantou logo depois, fingindo que ia pegar água. Fiquei ali sentada, com as mãos entrelaçadas
no colo, tentando entender porque meu coração estava tão apertado, se eu mesma tinha dito que estava tudo bem. No domingo, enquanto estendia as roupas no varal improvisado da varanda, ouvi ela conversando com alguém no telefone. Falava baixo, mas eu entendi quando ela disse: "Não, minha mãe não vai. Ela é simples demais para essas coisas". As palavras ficaram martelando na minha cabeça o resto do dia. Simples demais. Eu, que lavava as roupas dela, cozinhava, fazia faxina nas casas alheias para pagar a condução dela, agora era simples demais. Eu segurei aquela dor, como já tinha feito tantas
outras vezes. Fingi que não ouvi. Preparei a comida preferida dela naquele dia. Arroz soltinho, feijão grosso, frango com quiabo. Ela comeu e elogiou. E eu sorri, mas por dentro a comida parecia pedra. Com o tempo, ela passou a chegar mais tarde. Dizia que era estudo em grupo. Um dia, comentou casualmente que ia almoçar na casa de um amigo. Rafael, o nome dele. "Quem é Rafael?", perguntei, tentando soar tranquila. "Colega da faculdade, a família dele tem um hospital, são gente boa. Você já foi na casa dele?" Fui. A mãe dele é médica também. Uma casa linda,
enorme. Eles têm até motorista. Ela falava como quem descreve outro planeta. E por alguns segundos fiquei sem saber o que responder. E eles te trataram bem? Trataram, mas é um outro mundo, mãe. Na semana seguinte, eu a vi saindo do quarto com uma blusa nova. Estava mais arrumada que o normal. O perfume era diferente. Fingi que não notei. Quando voltou, veio mais calada ainda. Fiquei pensando se ela estava apaixonada ou tentando se encaixar num lugar que não era dela. Talvez fosse os dois. Certa noite, escutei ela rindo ao telefone. Quando desligou, perguntei se era o
tal do Rafael. Era. Ele é muito engraçado e inteligente e diferente. Diferente como? Ah, mãe, a cabeça dele é de outro tipo. Ele viajou para fora, conhece um monte de coisa, é educado, sabe conversar. Fiquei quieta porque naquela fala tinha um subentendido que machucava, como se as conversas que ela tinha comigo já não bastassem, como se minha vida inteira tivesse sido feita de palavras que agora não serviam mais. Um dia cheguei do mercado e ela estava no sofá com uma moça. Devia ter uns 20 e poucos anos, bem arrumada, cabelo preso num coque certinho, batom
escuro, blazer mesmo no calor. Quando entrei, ela me olhou com um sorriso de canto e abaixou o tom de voz. A Fernanda, mãe, colega de turma. "Oi, prazer", eu disse, limpando as mãos na saia. Ela me respondeu com um aceno mínimo. O olhar dela varreu meu corpo como quem avalia uma coisa fora do lugar. Ficaram mais meia hora conversando e depois saíram juntas. Quando voltaram, Fernanda nem me olhou e Ana entrou direto pro quarto. Naquela noite, ouvi as duas rindo baixinho. Eu fiquei ali na cozinha dobrando os panos de prato, tentando não pensar que talvez
eu tivesse virado só mais uma sombra dentro daquela casa. Pouco tempo depois, a Ana começou a pedir para eu avisar antes de ir até a faculdade. Uma vez falei que queria levar o lanche que ela esqueceu, mas ela respondeu: "Ah, mãe, melhor não. Eu me viro. A galera lá é cheia de coisa. Vão achar estranho. Estranho como? Ah, sei lá. É outro ritmo. É melhor deixar. Fiquei olhando pro lanche na minha mão. Era o pão com queijo que ela mais gostava, embrulhado num guardanapo limpinho. Acabei comendo eu mesma, sentada no ponto de ônibus. Comecei a
sentir que meu lugar estava encolhendo. A casa era pequena, mas parecia cada vez menor. Ela passava mais tempo fora e quando estava dentro ficava trancada no quarto com fones de ouvido. Eu comecei a falar sozinha mais vezes, na cozinha, lavando louça, no banho, de madrugada, deitada, olhando o teto. Uma noite, abri a caixa onde guardava os bilhetes que ela me escrevia quando era criança. Um dizia: "Mãe, você é minha heroína. Outro: "Quando eu for médica, vou te dar uma casa com quintal". Li cada um como quem lê um pedaço de si que ficou no passado.
Guardei tudo de novo, apaguei a luz e chorei baixinho. No dia seguinte, ela pediu dinheiro. Disse que ia ter um jantar de confraternização com o pessoal da faculdade. Eu dei, mesmo sabendo que aquele dinheiro ia me fazer falta para pagar o gás. Vai ser onde? Num restaurante chique, mas vai ser dividido e eu preciso estar lá. Mãe, eu só balancei a cabeça. Falei para ela se cuidar. Ela saiu linda, cabelo preso num coque elegante, maquiagem leve, salto alto, parecia uma outra pessoa. Fiquei olhando ela fechar a porta e pensei se um dia eu ainda faria
parte do mundo dela de novo. Sentei no sofá, acendi uma vela porque a luz da cozinha estava fraca e fiquei esperando o cheiro do feijão esquentando. Pensei que talvez tudo aquilo fosse só uma fase, que ela ainda ia voltar para mim. Mas no fundo eu já sentia que minha filha estava indo embora bem devagar, dia após dia. E eu, mesmo vendo, fingia que não via. Tinha dias em que eu passava a tarde inteira sem ouvir minha própria voz. Ana saía cedo e voltava tarde. E mesmo quando voltava se trancava no quarto. Eu ficava ali na
sala, sentada no mesmo canto do sofá, com as mãos apoiadas nas coxas, ouvindo o barulho do relógio. Era como se eu fosse só uma presença invisível naquele lugar, um ruído que ela já tinha aprendido a ignorar. Meus panos de prato continuavam sendo lavados com cuidado, as camisas dela bem passadas, alinhadas na cadeira, o arroz soltinho, o feijão temperado do jeito que ela gostava, mas eu já não sabia mais se aquilo fazia diferença. Ela quase não comia em casa. Dizia que ia lanchar na faculdade, que tinha grupo de estudos. Às vezes voltava com sacolas de comida
de fora, restos de jantares que ganhava dos colegas, talvez, ou dos encontros com Rafael. Eu não perguntava, só observava. Uma noite, senti uma fisgada forte na lombar, tão forte que quase não consegui levantar da cadeira. Tentei me ajeitar, mas a dor irradiava até a perna. Pensei em ir ao pronto atendimento do bairro, mas desisti. Era sábado à noite e eu sabia como é que funcionava aquilo. Horas esperando, pouca atenção. Além disso, eu não queria incomodar a Ana. No domingo, a dor continuou. Me arrastei até o posto de saúde pela manhã. Demorei para me vestir, para
descer as escadas. O corpo gritava. No caminho, senti os olhos de algumas pessoas na rua. Me olhavam como quem vê alguém que não devia estar ali, tão curvada, tão mal arrumada. Eu nem me importei, já não tinha energia para disfarçar nada. No posto, sentei num dos bancos de plástico e esperei ser chamada. Demorou. Enquanto isso, vi uma senhora conversando com uma funcionária. Tinha voz firme, mas o olhar acolhedor. Usava uma bata colorida, cabelo preso num coque frouxo e uma sacola cheia de panfletos no colo. Ela se virou para mim depois que terminou de falar com
a atendente. Tá tudo bem, querida. Assenti com a cabeça, meio sem jeito. Tá com dor nas costas. Trabalha com o quê? Faxina. Já faz uns bons anos. Ela me olhou de cima a baixo, mas não com julgamento. Era como se enxergasse mais do que eu estava dizendo, como se visse o cansaço por trás da resposta curta. "Me chamo Cidinha", ela disse, estendendo a mão. "Tô sempre por aqui. Trabalho com um projeto no centro comunitário da Vila Esperança. A gente acolhe mulheres, mulheres como a gente, que cuidam de todo mundo e acabam esquecendo de si." Eu
sorri meio sem saber como reagir. Não estava acostumada a ser vista, muito menos a receber convite para algum tipo de acolhimento. Obrigada, mas eu tô bem. Ela não insistiu. Só tirou um panfleto da sacola e colocou no meu colo. Se um dia quiser conversar, tomar um café, aparece lá. A gente tem roda de conversa, tem oficina de sabão artesanal, tem abraço também, viu? Eu ri de leve pela primeira vez em dias. Um riso curto, mas verdadeiro. Ela sorriu de volta e, antes de se levantar disse algo que ficou ecoando na minha cabeça. Você só esqueceu
que é mulher, mas isso dá para lembrar. Fiquei ali olhando o panfleto, papel simples, com letras coloridas e uma foto de um grupo de mulheres sorrindo. Voltei para casa ainda sentindo dor, mas com aquela frase girando dentro de mim, feito vento, abrindo uma cortina pesada. À noite, com a Ana ainda fora, sentei na beira da cama e passei o creme nas pernas. Peguei o panfleto de novo, li deagar. Centro Flor da Vida. Apoio e capacitação para mulheres em situação de vulnerabilidade. Endereço, horário, contato, tudo ali. Guardei na gaveta junto com os bilhetes antigos da Ana.
Nos dias seguintes, a rotina continuou, mas eu estava diferente. Tinha algo cutucando por dentro, uma vontade estranha de sair de casa por mim e não pelos outros, de andar sem estar carregando sacolas ou cansaço. Na quinta-feira, depois de uma faxina, passei perto do endereço do panfleto. Vi a placa colorida, o portão entreaberto, mulheres sentadas num pátio simples, algumas fazendo sabão, outras costurando, rindo. Fiquei parada do outro lado da rua por um tempo. Queria entrar, mas meus pés não foram. Era como se meu corpo tivesse esquecido como é que faz para procurar coisas só para mim.
Voltei para casa, mas com aquilo na cabeça. E à noite, quando a Ana chegou e foi direto pro quarto, como sempre, eu abri a gaveta, peguei o panfleto e deixei sobre a mesa. Era como se eu precisasse lembrar que existia um lugar que talvez me aceitasse pelo que eu era, não pelo que eu fazia pelos outros. No fim de semana, tomei coragem, coloquei uma roupa simples, mas limpa, prendi o cabelo, respirei fundo e fui. Me apresentei no portão e dona Cidinha me reconheceu de imediato. Abriu um sorriso largo e me recebeu como se eu fosse
velha conhecida. Fico feliz que veio. Senta aqui, pega um café. Aqui ninguém precisa fingir que tá bem. Sentei meio sem saber onde colocar as mãos. Ela me apresentou às outras mulheres, me mostrou o espaço, tinha uma sala com estantes de produtos artesanais, uma cozinha compartilhada, uma varanda onde algumas estavam sentadas em roda contando histórias. Tem mulher aqui que saiu da rua, que perdeu filhos, que foi abandonada, que não sabe ler, tem de tudo. E sabe o que elas têm em comum? Todas são mais fortes do que achavam. Ela disse aquilo, olhando nos meus olhos. Eu
senti como se levasse um abraço por dentro. Fiquei a manhã toda lá. No fim, ajudei a separar umas formas de sabonete e observei uma moça despejando um líquido colorido numa delas. O cheiro era de lavanda, suave, acolhedor. Lembrou um pouco a infância. Na saída, dona Cidinha me segurou pelo braço. Volta amanhã, sem pressa, mas volta. Você ainda tem muita coisa aí dentro que o mundo não conhece. Abracei aquele convite como quem agarra uma tábua em alto mar. Pela primeira vez em muito tempo, eu senti que talvez, só talvez, ainda existisse um pedaço meu que valia
a pena ser lembrado. A formatura da Ana Júlia se aproximava como um furacão desses que a gente vê vindo de longe, mas não tem para onde correr. Ela falava pouco sobre os preparativos, mas o apartamento parecia vibrar com a ansiedade dela. Os vestidos, as provas de maquiagem, as conversas no telefone. Eu ouvia tudo da cozinha enquanto picava alho ou passava pano no chão. Cada vez que ela mencionava a palavra colação, meu coração batia mais forte. Eu não sabia exatamente o que esperar. Por dentro, eu sonhava com aquele momento desde o dia em que ela nasceu.
Imaginava a cena. Eu sentada na plateia, chorando de emoção, aplaudindo com orgulho, enquanto ela recebia o diploma. me via de mãos dadas com ela depois, tirando foto, as duas com os olhos cheios d'água, rindo de alegria. Mas não foi assim. Uma semana antes da cerimônia, ela chegou do estágio com os olhos cansados e a fala apressada. Sentou ao meu lado no sofá, ajeitando a alça da bolsa no ombro. Mãe, sobre a formatura vai ter a colação oficial na sexta. É bem simples. Queria que a senhora fosse nessa. Esperei ela continuar. Porque a festa de gala
vai ser outro dia mais fechada, vai ter um custo e a maioria dos colegas vai com os pais que ajudaram a bancar. Mas você não falou que iam fazer uma vaquinha entre vocês? É, então, no fim, o pai da Melissa cobriu o restante, mas ficou meio restrito, sabe como é? Entendi. Não é nada pessoal, é só que vai estar todo mundo lá com roupa de gala, sabe? e é meio social. Fiquei em silêncio. Senti o estômago afundar. Eu comprei um vestido novo para senhora ir na colação. Tá no armário. Abri um sorriso fraco. Obrigada, filha.
Ela se levantou e foi pro quarto. Quando ouvi a porta se fechar, deixei o sorriso cair. Me levantei devagar, abri o armário e vi o vestido. Era bonito, simples, azul marinho, com um bordado discreto no decote. Olhei para ele por alguns minutos. Depois fechei a porta e fui lavar a louça. Na sexta-feira vesti o vestido, passei um batonzinho cor de boca e ajeitei o cabelo do melhor jeito que pude. Quando a Ana me viu, disse que eu estava elegante. Agradeci e a gente saiu. A cerimônia foi bonita. Vi ela subir no palco com o jaleco,
o rosto iluminado, a postura segura. Meus olhos se encheram de lágrimas. Aplaudi com as mãos trêmulas. Quando ela desceu, me deu um abraço rápido. Tiramos uma ou duas fotos com colegas. Depois ela disse que ia sair com o pessoal, que ia dormir na casa de uma amiga. Voltei sozinha para casa. No dia seguinte, fui ao mercado, comprei umas frutas e passei à tarde preparando a comida preferida dela. Arroz com lentilha, frango assado com batata, farofa com banana. Queria que fosse especial. Queria comemorar com ela, mas ela não apareceu. Mandou uma mensagem perto das 9 da
noite, dizendo que ia dormir na casa de Rafael. Desculpa, mãe. Tô exausta. Tudo bem, respondi. Comi sozinha. Guardei o resto na geladeira. Dois dias depois, ela chegou em casa cedo. Estava de batom apagado, cabelo preso de qualquer jeito. Trazia duas malas e uma bolsa de lado. Olhei para aquilo sem entender. Tá indo para onde? Ela respirou fundo. Mãe, eu preciso conversar. Me sentei no sofá, as mãos frias no colo. Agora que me formei, preciso organizar minha vida profissional. Rafael vai me ajudar com alguns contatos. E eu pensei que talvez fosse melhor a gente morar separadas.
Separadas? Repeti, como se não soubesse o que significava. É que eu preciso de espaço, sabe, para construir minha vida, minha rotina. Eu te agradeço por tudo mesmo, mas acho que é hora de seguir. Fiquei muda. Olhava para ela como quem olha uma estranha. O apartamento tá no meu nome, né? E o aluguel tá atrasado. A imobiliária já ligou. Eu eu tô tentando resolver. Ia fazer um bico esse mês. Eu entendo, mas eu não consigo mais manter essa situação. Eu posso te dar uma semana para você se organizar. Uma semana? É. Se precisar de ajuda para
procurar algum lugar, eu vejo com umas colegas. O silêncio tomou conta da sala. Eu sentia um calor no rosto, mas o corpo inteiro gelado. Era como se o mundo tivesse parado. "Você quer que eu vá embora?", Perguntei baixinho. Não é isso. Eu só acho que a gente chegou num ponto em que é melhor cada uma ter seu espaço. Mas eu sou sua mãe. Eu sei. Foi tudo o que ela disse. Fiquei parada no sofá depois que ela entrou no quarto e começou a tirar as roupas do armário. A cada gaveta que ela abria era como
se tirasse um pedaço de mim. Quando saiu de novo com as malas, nem olhou nos meus olhos. Se precisar de alguma coisa, me avisa. Assenti. Ela saiu. A porta se fechou devagar, mas o som dela batendo foi o que ficou na minha cabeça. Fiquei sentada por horas. A casa em silêncio, a comida ainda na geladeira, o vestido de formatura pendurado atrás da porta, as fotos na mesa. Eu não chorei naquela hora, só fiquei ali. O mundo parecia longe, distante, como se eu tivesse me tornado uma sombra de vez. Quando anoiteceu, me levantei, abri o guarda-roupa
e comecei a dobrar minhas roupas. Não sabia para onde ia, só sabia que não podia ficar. Não tinha para quem ligar, não tinha para onde correr. Ela disse que eu merecia descansar, mas o que eu ouvi foi suma. Não levei tudo comigo. Peguei só uma mochila com três mudas de roupa, um par de sandálias velhas, a escova de dente e o bilhete da Ana de quando era criança. Aquele em que ela dizia que eu era sua heroína. Dobrei e coloquei no fundo da bolsa como quem guarda um pedaço de si para não esquecer. Na primeira
noite, dormi no banco da praça mais próxima. Estava quente, mas mesmo assim tremi. Não de frio, mas de vergonha. Vergonha de existir sem ter onde existir. Cada carro que passava, cada passo na calçada, parecia me acusar de ter falhado. Na manhã seguinte, fui até o ponto onde costumava pegar ônibus para ir nas casas. Lembrei que a dona Edna, uma das clientes antigas, morava por perto. Caminhei até lá. Quando cheguei, toquei a campainha. Ela me atendeu pela janela do segundo andar, com cara depressa. Marta, nossa, fazia tempo. Tá tudo bem? Eu queria saber se ainda precisa
de ajuda com a faxina. Ah, agora quem vem é a filha da minha vizinha, mais perto, sabe? Mas obrigada por ter vindo. Assenti. Senti a garganta fechar. Agradeci mesmo sem ter recebido nada e saí andando. Tentei ligar para outras, mas o chip do meu celular estava desativado. Faltava crédito fazia semanas. Quando fui ver, o aparelho nem ligava mais. Sem telefone, sem endereço fixo, sem contatos. Era como se eu tivesse evaporado. Passei alguns dias em um abrigo municipal. Dividia espaço com outras mulheres em silêncio. Algumas gritavam à noite, outras choravam baixinho. A comida vinha em marmita
de isopor. Uma vez deixei a minha cair no chão por acidente. Ninguém me olhou. Depois do abrigo, fui parar na rodoviária. Ali o tempo se arrastava diferente, gente indo e vindo com malas e pressa. E eu, imóvel, tentava me ajeitar num banco duro de cimento. O corpo pedia cama, mas o que doía mais era o coração. Às vezes falava sozinha, perguntava para mim mesma onde foi que eu me perdi, se foi quando deixei de me olhar no espelho, se foi quando aceitei que meu lugar era no fundo da cena, fora do palco. Numa tarde nublada,
enquanto eu me encostava num canto da rodoviária, uma mulher me ofereceu um pão com manteiga. Tinha cabelo encaracolado preso num lenço florido e olhos cansados, mas atentos. Você já foi lá no centro comunitário da Vila Esperança? Já ouvi falar. Dona Cidinha ainda tá por lá. Eles ajudam quem tá sem chão. Sabão, sabonete, oficina de costura, às vezes um café e um abraço também. Olhei para ela tentando não chorar. Eu não sei por onde começar. Começa indo, só isso. No dia seguinte, peguei o primeiro ônibus com as moedas que consegui trocando latinhas. Desci perto da pracinha
onde já tinha passado uma vez, mas sem coragem de entrar. Agora eu não tinha mais o que perder. Cheguei com a roupa suada, o cabelo desgrenhado e os olhos baixos. Quando entrei, fui direto para a sombra de uma árvore no pátio. Fiquei ali quieta, esperando alguém notar minha presença. E então ela apareceu. Dona Cidinha caminhou devagar, com um pano nos ombros e uma prancheta na mão. Me olhou com surpresa e carinho. Olha só quem voltou. Não consegui responder. Ela se abaixou na minha frente, olhou dentro dos meus olhos e falou: "Eu sabia que você ainda
ia lembrar de você." Ela me levou para dentro, me deu uma toalha limpa, mandou eu tomar banho e depois sentar com ela para conversar. O chuveiro era simples, água morna, sabonete de lavanda. Me senti gente pela primeira vez em semanas. Sentei na varanda com um copo de chá e uma fatia de bolo de fubá. Ela ficou em silêncio ao meu lado por um tempo, depois falou: "Você tem uma força que nem sabe. Só que força demais, quando não tem onde se apoiar, vira peso." Nos dias seguintes, comecei a participar das oficinas. As outras mulheres me
acolheram com olhares que não exigiam nada, cada uma com sua história, sua dor, sua bagagem. Ninguém ali perguntava por você caiu. O importante era que estava tentando levantar. Aprendi a fazer sabão com ervas, a misturar essências, a cortar com cuidado. O cheiro das primeiras barras me emocionou. Aquele aroma fresco e doce invadiu meu peito feito memória boa. Me lembrou de quando Ana era criança e eu inventava sabonetes com sabão em pó e folhas de hortelã para ela brincar de loja. Durante as feiras, no fim de semana, ajudava a montar a barraca, organizar as etiquetas, embalar
os produtos. Era cansativo, mas dava gosto. Eu via brilho nos olhos das clientes. Muitas elogiavam o cheiro, a textura, a delicadeza. Quando me perguntavam quem fazia, eu dizia: "Nós mulheres que recomeçam". Foi numa dessas feiras que viu um senhor ajeitando caixas de hortaliças na barraca ao lado. Ele usava um chapéu de palhaçurrado, camisa xadrez e botas sujas de terra. Era calado, mas gentil. Vi que ele me olhou algumas vezes. Depois de um tempo, ofereceu um maço de hortelã para colocar nos seus sabões, disse com um sorriso tímido. Agradeci. Era seu Jonas. Soube depois que ele
era viúvo, agricultor, vendia na feira toda semana. Ele não perguntava demais, às vezes só dizia: "Bom dia, dona Marta". Outras vezes deixava uma muda de planta perto da minha barraca e voltava para dele sem falar nada. A presença dele era leve, como se bastasse. Naquela semana ganhei meu primeiro pagamento pelas vendas. pouco, mas o suficiente para comprar um chinelo novo, um shampoo decente e uma pasta de dente com gosto de menta de verdade. Voltei pro centro comunitário e à noite sentei sozinha no refeitório com meu caderno velho. Escrevi: As dores viram bálsamo, as mãos criam,
a alma acorda. Era pouco, mas era meu. Pela primeira vez em muito tempo, me senti existindo por mim mesma. e não como sombra de ninguém. A barraca da flor de Marta agora tinha uma placa de madeira com letras pintadas à mão, desenhada por uma das meninas do centro. Era simples, mas bonita. Dava para ver de longe nas feiras. Toda semana mais gente se aproximava para cheirar os sabonetes, perguntar sobre as essências, elogiar o capricho das embalagens. E quase sempre, no final alguém dizia: "Quem fez isso tem muito carinho no que faz". Eu sorria, respondia com
humildade, mas por dentro meu peito se aquecia de um jeito que eu nem lembrava mais como era. A minha história, que até pouco tempo era só poeira guardada na garganta, começou a circular de boca em boca entre as clientes. Alguém comentou com um jornalista da rádio comunitária. Ele apareceu um dia na feira, me chamou no canto, perguntou se podia fazer uma matéria sobre o projeto e sobre mim. Fiquei sem saber o que dizer. Eu, na rádio, com minha voz simples, meu rosto de mulher comum, ele insistiu. Disse que histórias como a minha precisavam ser contadas.
A entrevista foi rápida. Gravei nervosa, suando nas mãos. Contei como tinha começado, o que aprendi com a saoaria, o que significava recomeçar. Falei das outras mulheres também. Pedi que o foco não fosse só em mim. Dois dias depois saiu a matéria no jornalzinho do bairro e no site da rádio. Me mostraram no celular da dona Cidinha. Lá estava eu, com avental e cabelo preso, segurando uma barra de sabão de lavanda, sorrindo tímida ao lado da legenda. Ex-faxineira em situação de rua, cria saboaria artesanal e inspira mulheres a recomeçar. Li aquele título umas 10 vezes. O
coração apertado, os olhos úmidos. Meu nome estava ali, minha história, minha voz. Voltei pro quarto no centro comunitário e fiquei sentada na cama por muito tempo, em silêncio. Depois peguei meu caderno e escrevi: "Hoje eu me vi, hoje eu me ouvi." À noite, as outras mulheres me aplaudiram, me abraçaram. Uma delas, Luana, que era mais arisca e quase não falava com ninguém, me olhou e disse: "A senhora é diferente, fala pouco, mas dá força só de olhar." Abracei aquilo como quem recebe uma medalha, mas mesmo com tudo isso, tinha um pedaço dentro de mim que
seguia vazio, um silêncio que nenhuma entrevista preenchia. Era Ana Júlia. Não tínhamos nos falado desde aquele dia. Eu não sabia onde ela morava, nem se ainda estava com Rafael. Imaginava ela num hospital, vestida de branco, correndo pelos corredores, sendo chamada de doutora, e me perguntava se ela pensava em mim. Numa manhã chuvosa, o vento forte empurrou uma caixa velha que eu mantinha em cima do armário. Quando fui juntar as coisas que caíram, vi um envelope amarelado dobrado ao meio com o nome Ana, escrito à caneta azul. Reconheci na hora a letra do Anderson, o pai
dela. Fazia mais de 20 anos que eu não mexia naquilo. A carta estava ali desde a época em que ele morreu. Ele tinha deixado na bolsa num dia antes do acidente. Eu encontrei depois que a polícia me devolveu os pertences. Guardei sem ler direito. Na época eu só chorava e cuidava da Ana. Nunca tive coragem de abrir de novo. Mas naquele dia eu precisava. Sentei na cama, abri devagar e comecei a ler. Ana, minha filha, se um dia você tiver idade para entender essa carta, é porque eu já não estou mais aqui. Eu te amo.
Eu te amo mais do que eu consigo escrever. E é por isso que eu preciso dizer a verdade. A verdade é que eu me sinto um fracasso. Não consegui dar conta de nada. Sinto que atrapalho mais do que ajudo. Sua mãe é forte. Eu não sou. Eu não queria ir embora, mas tem uma dor dentro de mim que cresce e não para. Já pensei em sumir tantas vezes, mas olho para você e me dá medo de deixar você crescer com raiva de mim. Não quero que você ache que eu não lutei. Lutei, só não consegui
vencer. Se você estiver lendo isso, é porque minha luta acabou e eu peço perdão. E peço que você olhe para sua mãe com o respeito que ela merece, porque ela não fraqueja como eu. Ela fica de pé. A carta tremia nas minhas mãos. Eu chorava em silêncio, os soluços presos no peito. Nunca tinha contado para Ana sobre a dor do pai dela. Nunca expliquei que ele não foi um homem ruim, mas um homem cansado. Nunca disse que ele amava a gente, mesmo afundado na tristeza. Eu tinha guardado aquilo achando que protegia ela. Mas agora via
que no silêncio, talvez eu também tivesse construído um muro. Por tantos anos, fui forte demais. Aguentei calada. Nunca desabafei, nunca chorei na frente dela. Talvez por isso ela nunca me viu como alguém que sentia, só como alguém que resolvia. Talvez para ela tenha virado aquela mulher que dá conta, que tá acostumada, que não precisa ser cuidada. Fechei a carta devagar. Guardei de novo, mas dessa vez num envelope novo. Escrevi o nome dela de novo na frente, mais nítido, como um lembrete. Um dia ela precisa ler isso. No fim da tarde fui até a varanda. Chovia
fino. O cheiro da lavanda se misturava ao barro do chão. Seu Jonas apareceu do lado, entregando um vasinho de erva doce para espantar mágoa e acalmar pensamento. Eu agradeci e pela primeira vez olhei nos olhos dele com um pouco menos de defesa. Voltei pro meu quarto, peguei o caderno e escrevi: "Até raízes mais escondidas podem dar flor se forem regadas com verdade." A ligação chegou numa segunda-feira à tarde, enquanto eu arrumava a mesa com os sabonetes de calêndula. Era número desconhecido. Atendi com receio o barulho da feira ao fundo. A voz do outro lado era
fria, mas educada. É a senora Marta de Lima? A senhora é mãe da Ana Júlia? Meu coração travou. Sou. Ela sofreu um acidente. Está internada no hospital central. está consciente, mas bastante machucada. A senhora foi o único contato de emergência no prontuário. A feira sumiu ao meu redor. Só ouvi o som do meu próprio coração. Agradeci e desliguei com a mão tremendo. A última vez que a vi, ela me pediu para sair de casa. Agora, anos depois, era o meu nome que aparecia como socorro. Peguei minhas coisas sem dizer palavra. Chamei dona Cidinha, pedi desculpas
e disse que precisava ir. Ela não fez pergunta, só segurou meu ombro e disse: "Vai e vai com o peito limpo. Amor de mãe não precisa de permissão para existir." Peguei dois ônibus até o hospital. Cada minuto parecia uma eternidade, a mente cheia de imagens do que podia ter acontecido. Quando cheguei, a recepcionista me levou até a ala de emergência. Ela estava lá. Deitada numa maca, braço enfaixado, hematomas no rosto, boca cortada. Dormia com a testa franzida e os olhos inchados. Fiquei parada por um instante, sem ar. Depois me aproximei devagar. Sentei ao lado da
cama, segurei a mão dela com delicadeza. A pele estava quente. "Oi, filha. Tô aqui." Ela não respondeu. Um enfermeiro se aproximou. Ela teve uma fratura no braço esquerdo, escoriações, pancada na cabeça. Vai ficar em observação. Não havia ninguém com ela no momento do acidente. Assenti, agradeci. Passei a noite no hospital, sentada na poltrona ao lado da cama. O cheiro de éter, os sons dos aparelhos. Tudo me trazia lembranças de um tempo em que ela era criança e eu passava noites com ela no pronto socorro por causa de febre. De manhã ela acordou, me olhou com
dificuldade, os olhos marejados, a voz saiu baixa. Mãe, sou eu. Ela chorou, um choro contido, dolorido. Tentou falar, mas se engasgou. Não precisa dizer nada agora, só descansa. Ela apertou minha mão e, pela primeira vez em muitos anos, me olhou como filha. Nos dias seguintes, fiquei com ela. Dormia no hospital, comia no refeitório dos acompanhantes, lavava o rosto no banheiro e prendia o cabelo com a caneta que achava no fundo da bolsa. Ninguém perguntou se eu era médica. Ninguém me questionou. Ali naquele quarto eu era só mãe e aquilo era tudo. Ela começou a melhorar
aos poucos. Um dia, quando fui ao corredor pegar um chá, ela mexeu nas minhas coisas. encontrou o meu caderno, o diário onde eu escrevia há anos. Quando voltei, ela estava com ele no colo. Mãe, posso posso ler? Assenti. Sentei na poltrona e esperei. Ela leu em silêncio por um longo tempo. As páginas tremiam nas mãos dela. Às vezes fungava, outras vezes limpava os olhos. Ali estavam meus medos, meus bilhetes para mim mesma. Meus, hoje eu aguentei mais um pouco e só preciso continuar. Depois de um tempo, ela olhou para mim com a voz embargada. Eu
não sabia. Eu não fazia ideia. Você não tinha que saber. Era meu jeito de sobreviver. Ela fechou o caderno e segurou minha mão. Eu te machuquei tanto, mãe. Você se machucou também. No dia seguinte, a professora Helena passou no hospital. disse que tinha ido visitar uma paciente e viu meu nome no mural de acompanhantes. Ela me reconheceu na hora. Dona Marta? Ela se emocionou. Eu também. Ana Júlia, ao ouvir a voz, ergueu os olhos. Professora. As duas se abraçaram com dificuldade. Helena disse: "Eu sempre soube que você ia ser médica e sempre soube de onde
vinha a sua força. Depois que ela saiu, Ana Júlia me disse: "Foi ela que me fez sonhar e você que me fez continuar". Mais tarde, Cláudia apareceu, entrou tímida, com um buquê simples na mão. Fiquei sabendo do acidente. Não ia ficar sem ver você. Ana ficou em silêncio por alguns segundos. Depois abriu os braços. Desculpa por ter sumido. Cláudia a abraçou com força. Você só estava perdida. Agora tá voltando. Fiquei ali num canto do quarto observando. O tempo parecia ter dado uma volta, como se a vida estivesse finalmente tentando costurar os pedaços. Naquela noite, ela
adormeceu segurando meu caderno. E, pela primeira vez em muito tempo, eu dormi em paz. Os dias no hospital começaram a ganhar outra cor. A cada manhã, Ana Júlia despertava com um pouco mais de leveza no rosto. O inchaço foi diminuindo, os machucados cicatrizando e até o braço enfaixado parecia mais leve nas mãos dela. Mas o que realmente mudava era o olhar. Já não era mais aquele olhar distante, cheio de pressa, de quem vê o mundo pela janela de um carro blindado. Era um olhar mais calmo, mais cru. Ela me observava o tempo todo, quando eu
arrumava as coisas no criado mudo, quando dobrava o lençol, quando oferecia chá, mas não era o tipo de observação crítica como antes. Era curiosa, profunda. Numa tarde mais tranquila, ela esperou o enfermeiro sair e falou: "Mãe, eu tenho pensado em tudo que li no seu caderno, em tudo que a senhora passou." fez uma pausa longa, respirou fundo. Eu fui cruel com a senhora. Eu estava tão preocupada em caber naquele mundo que achei que precisava deixar tudo para trás. Até você. Fiquei em silêncio. Quando me formei, eu senti que tinha vencido, mas a verdade é que
eu tinha perdido muito mais do que ganhado. Você venceu sim, filha, mas esqueceu quem te empurrou quando você não conseguia andar. Ela chorou e não escondeu. Me perdoa? Cheguei perto, segurei o rosto dela entre as mãos. Eu sempre te perdoei. Só que agora, agora eu também me perdoo por ter-me esquecido de mim por tanto tempo. Ela assentiu com a cabeça, chorando ainda mais. me abraçou com cuidado por causa do braço machucado. Ficamos ali por minutos inteiros, respirando o mesmo ar que por tanto tempo ficou cortado por silêncios. No dia em que teve alta, fui com
ela até o táxi. Ela segurava minha mão como se quisesse prolongar aquele gesto simples que tanto tempo não existia entre nós. Quero visitar a feira, ver seus sabonetes, ver você no seu mundo. Assenti. No sábado, ela apareceu por lá. Cabelos soltos, roupas simples, andava devagar, ainda se recuperando. As outras mulheres do centro vieram cumprimentá-la com cuidado. Dona Cidinha a abraçou com força. Você é filha de Marta? Agora entendo a força no sangue. Ana sorriu sem conseguir esconder o espanto e o orgulho. Eu mostrei para ela as novas fragrâncias, as embalagens feitas pelas meninas, os relatos
que algumas clientes deixavam por escrito. "Essa aqui é a Luana", apresentei, apontando para uma jovem de olhos intensos. "Ela começou com a gente há três meses, já faz sabonetes melhores que os meus." Luana soltou um riso tímido. Ana a cumprimentou. No fim da tarde, sentamos juntas atrás da barraca, tomando suco de caju num copo plástico. Ela olhou ao redor, respirou fundo e disse: "Eu achava que a senhora só era forte, mas agora vejo que também é incrível. Sorri. Só demorei para lembrar. Quero contar essa história para as pessoas, mãe, para outras filhas, outros filhos. Quero
que saibam o que eu quase perdi. Conta, mas não esquece que agora é você que precisa continuar a construir. Ela olhou pro chão pensativa. Eu não quero que a senhora volte para minha vida como antes. Eu quero entrar na sua. Essas palavras me atravessaram como vento bom em dia quente. Ela começou a aparecer com frequência. Trazia bolo de padaria, frutas, às vezes só a presença. Vinha sem pedir nada, sem esperar nada. Sentava com as mulheres do projeto, ouvia, ajudava. Certa vez, vi ela explicando a diferença entre um tipo de dermatite e outro para uma das
senhoras. Usava a mesma voz que usava comigo quando criança, firme, mas doce. Um dia saiu do hospital direto para a feira. Estava exausta, mas disse: "Não podia ir para casa sem passar aqui. Deixei que ela me visse, me visse de verdade, como mulher, como alguém que construiu algo sem diploma, mas com dignidade." No final de uma dessas tardes, enquanto desmontávamos a barraca, ela disse: "Quando me perguntam de onde eu venho, eu ainda tenho vergonha, mas agora é de mim, da vergonha que senti da senhora. Nunca mais vou esconder isso. Coloquei a mão no ombro dela
e disse: "Eu não preciso que você me mostre pros outros. Eu só precisava que você me visse." Ela assentiu e me olhou. Dessa vez sem pressa, sem culpa, sem medo. Os meses passaram sem pressa, na medida certa de quem passou a vida toda correndo atrás de algo e agora tinha encontrado enfim um chão para caminhar. O projeto no centro comunitário cresceu. Tínhamos mais mulheres, mais barracas, mais histórias, cada uma com sua marca, mas todas carregando um pouco da minha. A Flor de Marta já era conhecida em feiras de outros bairros. Começamos a receber convites para
eventos, oficinas em escolas, até convênio com farmácia de produtos naturais. Eu percebia que as pessoas não compravam só os sabonetes, compravam também a força que eles carregavam. Dona Cidinha me chamou um dia para conversar. Estávamos sentadas na varanda do centro tomando café num copo de plástico quando ela falou: "Você já pensou em registrar tua marca? formalizar tudo, abrir CNPJ. Eu ride leve. Logo eu, Cidinha, essas coisas são caras, cheias de papel, mas agora você pode e deve. A tua história já está no mundo. Tá na hora do mundo reconhecer você com nome e tudo. Voltei
para casa com aquilo martelando. Passei a semana pesquisando, perguntando, anotando. Com a ajuda de uma advogada voluntária do projeto, fiz todo o processo. Quando o papel chegou, com o nome Flor de Marta, impresso ali, oficial, legítimo, eu chorei. Chorei como quem recebe o diploma que nunca teve. Não era de medicina, mas era de vida. Mostrei o documento para Ana Júlia num fim de tarde, sentadas na beira do lago do parque. Agora tá no papel, minha filha. A flor de Marta existe de verdade. Ela leu o nome com os olhos brilhando. A senhora devia estar palestrando
em tudo quanto é canto. Eu tô bem aqui, com minhas saboarias, minhas feiras e minhas meninas. Isso já me basta. Nosso vínculo era outro. Agora ela me escutava, me olhava de verdade, falava de mim para as colegas do hospital com orgulho. Um dia me contou que uma médica residente se emocionou ao ouvir sobre o projeto. Disse que queria levar a ideia para a periferia onde nasceu. Quando Ana me contou isso, ela disse sorrindo: "A senhora tá espalhando raízes em terra que a gente nem pisa." Eu guardei essa frase. Seu Jonas continuava aparecendo na feira, me
ajudava a carregar caixas, oferecia plantas, contava histórias da roça. Um dia ele trouxe uma muda de lavanda embrulhada num saquinho de juta para plantar no seu quintal. Quando você tiver um. Eu nem tenho casa, Jonas. Mas tem futuro e ele merece flor. Ele não invadia, não perguntava demais. às vezes sentava ao meu lado e só ficava ali. A presença dele era silenciosa, mas firme, como as raízes de uma planta que cresce devagar e com paciência. Na semana seguinte, ele me chamou para conversar. Disse que pensou em juntar forças. Eu planto, você transforma. A gente podia
dividir um espaço, montar uma estufa, fazer uma linha nova, lavandas da Marta. Sorri. Bonito isso. Mas só se você quiser. Eu ando sozinho faz tempo e você também. Só que às vezes duas solidões se ajudam a respirar. Agradeci, disse que ia pensar e pensei não com medo, mas com respeito ao tempo. Pela primeira vez eu podia escolher e escolher sem pressa. Poucos dias depois, Ana Júlia veio me visitar com uma caixa de uvas. Sentamos no banco de madeira da praça, como a gente fazia no início, quando ela ainda estudava. Conversamos sobre trabalho, sobre o hospital,
sobre as histórias que ela ouvia por lá. Ela parecia mais leve, mais madura. No fim da conversa, ela disse: "Mãe, eu queria te fazer um convite. Pensei que talvez a senhora pudesse morar comigo. Agora que tô num apartamento maior, ia ser bom ter a senhora por perto." Eu fiquei olhando as folhas caindo da árvore ao lado. O vento soprava manso. Filha, eu agradeço, mas eu não volto mais para ser sombra de ninguém. Agora eu tenho minha vida, minha rotina, meus horários, minhas escolhas. Ela abaixou os olhos como quem leva um não com ternura. Eu entendo.
Só queria que soubesse que o convite não é por obrigação, é carinho e admiração. Tu vendo isso? Sim, e fico feliz, mas eu aprendi a me cuidar e a viver por mim. Agora, se você quiser vir jantar lá no centro, me ver nas feiras, me ajudar com os sabonetes, você vai ser muito bem-vinda. Ela sorriu e me abraçou. Então eu faço parte da sua vida, não o contrário. É isso. Voltamos a andar de mãos dadas pela praça e eu percebi como era diferente caminhar assim, não mais com peso, nem com culpa, mas com respeito. Naquela
noite escrevi no caderno: "A independência não é solidão, é espaço para escolher quem a gente quer perto." A quadra do centro comunitário estava toda enfeitada com flores de papel colorido. O pessoal da oficina de decoração fez questão de caprichar. O cheiro de sabonete artesanal se misturava com o das comidas que estavam sendo aquecidas lá no fundo. Um som baixinho de forró tocava numa caixa improvisada, enquanto as mulheres andavam de um lado pro outro com sorriso no rosto e brilho nos olhos. era a formatura das novas alunas do projeto. Um rito de passagem simbólico, mas cheio
de verdade. Era ali que a gente via que ninguém precisava de tapete vermelho para ser reconhecida. Bastava ser vista com o coração. Eu nem sabia que ia ser homenageada. Fiquei sabendo no dia quando dona Cidinha me chamou num canto e disse: "Prepara o coração, mulher. Hoje você vai ser madrinha da turma". Olhei para ela sem entender. Madrinha, você plantou muita coisa aqui e essas flores agora estão florescendo. E é justo que saibam quem ajudou a regar cada uma. Abracei ela sem conseguir dizer nada. Enquanto os convidados chegavam, as cadeiras iam sendo ocupadas. Algumas senhoras vieram
com filhos no colo, outras com os olhos marejados já antes de começar. No palco improvisado, as novas formandas ajeitavam os aventais limpos, os cabelos presos, algumas com batom forte, outras com perfume barato, mas todas com a dignidade no rosto. Ana Júlia chegou de surpresa. Tinha avisado que talvez não pudesse ir por causa do plantão, mas apareceu com uma muda de lavanda nas mãos. sentou na primeira fileira ao lado de Cláudia e ficou ali olhando para tudo com atenção. Eu fiquei num cantinho achando que seria só mais uma colaboradora na plateia até que chamaram meu nome
no microfone. Com vocês, a mulher que inspira, acolhe e transforma. Marta de Lima, nossa madrinha da esperança. Os aplausos vieram como onda. Eu congelei por um segundo, me levantei, os passos curtos até o palco, o coração acelerado. Recebi uma lembrança feita de papel reciclado e fui convidada a dizer algumas palavras. Segurei o microfone com a mão suada. Olhei para aquele monte de rostos. Rostos que pareciam o meu de antes, cansados, duros, mas cheios de vontade de florescer. Eu nunca imaginei estar aqui. Nunca imaginei que minha vida fosse servir de exemplo para alguém. Mas hoje, hoje
eu sei que até o chão mais seco pode dar flor. Eu só quero dizer que a gente não precisa de milagre para recomeçar. A gente precisa de rede, de abraço, de alguém que olhe para a gente e diga: "Você ainda existe". As palmas vieram de novo. Eu tremia. Quando desci do palco, Luana veio até mim. Usava um vestido que ela mesma tinha ajustado. Os olhos dela brilhavam, mas não era só de emoção, era de vida. Ela me abraçou com força com o corpo inteiro e no meio do abraço, disse com a voz embargada: "Mãe, obrigada
por não desistir de mim." O mundo parou por um segundo. Eu senti um calor que subiu do estômago até os olhos. Segurei ela ainda mais forte. As lágrimas vieram e dessa vez eu não escondi. Chorei em público pela primeira vez, mas não por dor, por orgulho. Olhei para Ana Júlia, ela também chorava. Cláudia segurava a mão dela. Dona Cidinha me abraçou por trás. A invisível virou farol. Naquele momento tudo fez sentido. A faxineira, a mulher que dormiu em banco de rodoviária, a mãe descartada, a esquecida, a que passou anos em silêncio. Ali estava eu, madrinha
de outras mulheres que, como eu, um dia acharam que tinham sido apagadas do mundo. Quando a cerimônia acabou, ficamos na quadra comendo bolo de mandioca, tomando suco de caju, ouvindo música e rindo. rindo com o corpo inteiro, sem medo, sem vergonha. Eu sentei num banco de madeira, a muda de lavanda no colo e pensei: "Nunca imaginei que ser olhada podia curar tanto." Na volta para casa, escrevi no caderno: "Eu chorei diante de todos e ninguém me chamou de fraca. Me chamaram de viva. A primeira vez que ouvi minha filha dizer meu nome num microfone, meu
corpo gelou. Eu não sabia que ela falaria de mim naquele seminário. Só fui porque ela insistiu. É uma palestra para estudantes de medicina. Quero que você escute. Sentei nas últimas cadeiras junto com outras mães que foram levadas pelos filhos. Me senti deslocada no começo. Era um auditório moderno, cheio de gente jovem, tudo iluminado, organizado, um mundo que por muito tempo achei que não era meu. Mas então ela começou e quando ouvi o primeiro minha mãe Marta de Lima, o coração apertou. Foi fachineira a vida toda, criou uma filha sozinha. E por muito tempo eu não
entendi o tamanho do que ela fez. Ou pior, eu fingi que não via. Me doía demais reconhecer que minha força vinha dela e não de mim. Mas hoje eu sei, eu não sou médica, apesar da minha origem. Eu sou médica por causa dela. Um silêncio tomou o auditório. O tipo de silêncio que escuta. Eu olhava para ela no palco e via outra mulher. Uma mulher que reconhecia, que se responsabilizava, que contava nossa história sem vergonha, mas com verdade. Quando terminou, algumas pessoas aplaudiram de pé. Outras vieram falar comigo depois, mesmo sem saber quem eu era.
Diziam que se emocionaram. que lembraram das mães, das avós, das mulheres invisíveis que sustentam tudo sem aparecer. Fui para casa andando devagar. O céu estava alaranjado, com nuvens leves e o vento trazia cheiro de lavanda. No dia seguinte, seu Jonas apareceu na feira com duas canecas de barro embrulhadas num paninho. Entregou para mim sem dizer nada. Na alça estava escrito coragem, na dele caminho. Ficamos ali olhando as barracas sendo montadas. Ele se ajeitou no banco de madeira, olhou pro chão e depois para mim. Quer tomar um café comigo amanhã? Respirei fundo, olhei em volta. Pensei
em tudo que fui, tudo que deixei de ser, tudo que estava me permitindo ser agora. Quero sim. Ele não sorriu com os lábios, sorriu com o corpo inteiro, como quem entende que amor, depois de tanta dor, precisa ser manso. No dia seguinte, fomos de mãos dadas, caminhando pela feira sem pressa, como se aquele gesto tão simples fosse um pedaço de liberdade que eu nunca soube que podia viver. Sentamos num café pequeno com mesinhas de ferro e guardanapos coloridos. Ele pediu dois cafés pretos. Eu pela primeira vez pedi um com leite e adoçante só para provar
algo diferente. Conversamos sobre plantas, sobre gente, sobre o tempo. Ele me contou que sonhou com a falecida esposa dias antes e que ela tinha sorrido no sonho como quem dava permissão para ele seguir. E eu acordei pensando, será que a Marta vai me deixar caminhar junto? Só se for do lado. Nunca na frente, nunca atrás. Brindamos com as canecas de barro. Nos meses seguintes, continuei com as feiras, com as palestras nas escolas, com os novos produtos da Flor de Marta. Agora tínhamos sabonetes com nomes simbólicos: raiz forte, alívio, despertar, cada um feito com cuidado e
história. Ana Júlia sempre que podia aparecia, às vezes só para sentar, às vezes para ajudar a embalar, outras para contar mais uma vez a nossa história para alguma turma. Ela me levou para conhecer o hospital onde trabalhava. Mostrou as alas, os corredores, os colegas e disse medo: "Essa é minha mãe. É minha." Foi ela quem me fez estar aqui. Na última palestra que assisti dela, ela olhou para a plateia e disse: "O que minha mãe me ensinou não está nos livros. Ela me ensinou o que é dignidade e que a gente só cura os outros
quando aprende a enxergar quem curou a gente em silêncio. Naquele dia, eu me levantei junto com todos e aplaudi com as mãos e com a alma. À noite, sentei na varanda com meu caderno. A lavanda do jardim balançava com o vento. Escrevi devagar, com letra firme. Agora eu vivo, não por alguém, mas por mim. E quem quiser caminhar ao meu lado será bem-vindo. Fechei o caderno, respirei fundo e me permiti sorrir, porque depois de tanto tempo sendo sombra, eu finalmente entendi. Eu sou luz e essa luz agora ilumina outros caminhos, inclusive o meu. Se essa
história tocou o seu coração, eu te convido a se inscrever aqui no canal. É por aqui que eu e outras vozes contamos histórias que emocionam, que inspiram e que lembram a gente de uma coisa importante. Mesmo com toda a dor, a vida ainda pode surpreender com segundas chances e encontros que curam. Deixa seu like, compartilha com alguém que você ama e me ajuda a fazer essa mensagem chegar a mais pessoas. A gente pode sim espalhar mais amor e esperança juntos. M.