HISTÓRIA REAL DESTA AVÓ - ELA SE APAIXOU PELO PADRE DA CIDADE

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Memórias de Avós
Ouça a história real e emocionante desta avó que teve um caso com o padre da cidade. Está história v...
Video Transcript:
Oi, minha amiga. Meu nome é Ivone Almeida Santos e aos 74 anos já vi muita coisa nessa vida. Nasci e me criei em Garanhuns, uma cidadezinha no interior de Pernambuco, daquelas onde todo mundo conhece todo mundo pelo nome e sobrenome. Terra de clima ameno que chamam de Suíça Pernambucana por causa do frio que faz no inverno. Foi lá que minha história começou numa época em que moça direita não saía sozinha, em que família era sagrada e em que a palavra do padre valia mais que qualquer lei. O que vou contar hoje é algo que guardei
no fundo do coração por muito tempo. Se arrependimento matasse, eu não estaria aqui para contar essa história. O que me perseguiu todos esses anos foi um sentimento que queimava dentro de mim como brasa, um amor que não devia ter acontecido, mas aconteceu. Era 1968. Eu tinha acabado de completar 19 anos. Trabalhava na loja de tecidos do seu antenor ali na rua 15 de novembro. Era um bom emprego para uma moça da minha idade. Meu pai e seu Joaquim, tinham um pequeno armazém de secos e molhados na parte baixa da cidade. Não éramos ricos, mas nunca
faltou comida na mesa. Minha mãe, dona Teresa, cuidava da casa e de nós cinco filhos ao todo. Eu era a caçula, a única que ainda morava com eles. Minhas irmãs já tinham casado. Meus irmãos trabalhavam no Recife. Nossa casa ficava no alto do Mundaú, a parte mais elevada de Garanhuns. Uma casinha simples de alvenaria, com um quintal onde mamãe plantava couve e cebolinha, criava umas galinhas. Do quarto que dividia com minha irmã mais nova antes dela casar. Dava para ver toda a cidade lá embaixo, as luzes acendendo no começo da noite, como pequenas estrelas terrenas.
A rotina era sempre a mesma. Acordava cedo, ajudava a mamãe com o café da manhã, ia para a loja de tecidos, voltava para o almoço, retornava a loja e à noite frequentava-te à igreja ou ficava em casa ouvindo rádio, costurando, conversando com os pais. Aos domingos, a missa era sagrada. Ninguém na nossa família usava faltar, nem mesmo quando chovia forte ou quando alguém estava com um resfriado leve. Papai dizia que Deus notava as ausências e que era melhor não arriscar. Era no dia de domingo, então, que eu vestia minha melhor roupa. Não tínhamos muito dinheiro
para luxos, mas eu caprichava no que tinha. Lava e passava com esmero o vestido de algodão florido. Escovava os cabelos 100 vezes, como aprendi numa revista. Passava um batom clarinho que comprei escondida no armazém do seu Gomercindo. Naquele ano chegou à nossa paróquia um novo padre. O anterior padre Clemente tinha mais de 70 anos e já não dava conta de tudo. O novo era sobrinho do bispo de Caruaru, diziam. Chamava-se Padre Antônio Bezerra da Costa. Jovem devia ter seus 30 e poucos anos. Logo de cara, percebi que não era como os outros padres que conhecia.
Não tinha aquela cara fechada, aquele ar de quem carrega o peso do mundo nas costas. Padre Antônio sorria, falava com todo mundo das crianças aos idosos e tinha uma voz. Ah, aquela voz quando lia o Evangelho na missa, fazia até os descrentes prestarem atenção. A chegada dele movimentou a cidade. As beatas comentavam sem parar, algumas aprovando seu jeito moderno de celebrar a missa. Outras torcendo o nariz para as mudanças que ele propunha. Os jovens, porém, adoravam. Ele criou um grupo de jovens, organizava retiros, tocava violão nas missas. Era como uma brisa fresca entrando na nossa
igreja antiga e empoeirada. Lembro como se fosse hoje a primeira vez que nossos olhares se cruzaram. Era uma manhã de domingo. A igreja de Santo Antônio, aquela praça central, estava cheia, como sempre. O cheiro de vela e incenso tomava conta do lugar. As beatas de sempre ocupavam os primeiros bancos com seus terços nas mãos enrugadas. Cheguei atrasada e meu pai me olhou com aquela cara que só os pais sabem fazer. Minha mãe me cutucou de leve, como quem diz, para me comportar. Sentei no banco e levantei os olhos para o altar. Bem na hora em
que padre Antônio se virou para a assembleia e proferiu a saudação litúrgica. E naquele momento exato, seus olhos encontraram os meus. Foi como se o tempo parasse por um segundo, como se de repente só existíssemos nós dois naquela igreja cheia. Senti um calor subindo pelo meu rosto e abaixei a cabeça rápido, fingindo procurar algo na bolsa. Durante toda a missa, evitei olhar diretamente para ele, mas sentia seu olhar em mim de vez em quando. Era uma sensação estranha, nova, que eu nunca tinha experimentado antes. Depois, quando fui receber a comunhão, ele colocou a hóstia na
minha língua e nossos olhos se encontraram novamente. Vi algo diferente ali. Um brilho, uma hesitação. Não sei explicar direito. Só sei que voltei para meu lugar com o coração batendo mais forte do que deveria. Minha mãe notou meu rosto vermelho e perguntou se eu estava bem. Menti dizendo que era o calor, mas não era. Era algo nascendo dentro de mim. Algo que deveria ter abafado ali mesmo naquele domingo, algo que mudaria minha vida para sempre. Comecei a ir mais à igreja. Participava de todos os trabalhos, das festas na Praça Dom Moura, da catequese, de tudo
que me desse chance de ficar perto dele. Padre Antônio sempre me tratava bem, com educação, mas mantinha distância. Isso só me deixava com mais vontade de me aproximar. As outras moças também suspiravam por ele. Era inevitável. Um homem jovem, bonito, articulado, que falava sobre amor e compaixão com tanta convicção. Mas eu notava como seu olhar demorava um pouco mais em mim durante as missas, como ele sorria de um jeito especial quando eu chegava para as reuniões do grupo de jovens. Na loja onde eu trabalhava, as freguesas comentavam sobre o novo padre. Diziam que era um
desperdício um homem daqueles ter entrado paraa igreja, que podia ter casado ou ter filhos bonitos. Eu ouvia tudo calada, sentindo um ciúme bobo, como se ele me pertencesse de alguma forma. Nessa época tive alguns pretendentes, rapazes da cidade que me convidavam para tomar sorvete depois da missa, que apareciam lá em casa para conversar com meu pai. Eu recusava educadamente, inventava desculpas. Não tinha cabeça para namoro. Dizia para minha mãe preocupada. Queria me dedicar ao trabalho, ajudar em casa. A verdade é que nenhum deles me interessava. Não depois que conheci padre Antônio. Um dia estávamos arrumando
a festa de São João no salão paroquial, aquele que ficava atrás da igreja. O chão de ladrilho hidráulico estava coberto de palha de milho e bandeirinhas coloridas. Eu me ofereci para ajudar na decoração. Acabei ficando sozinha com ele no salão. Eu esticava o braço para pendurar bandeirinhas em cima de um banquinho de madeira que balançava. Padre Antônio me alertou sobre o banquinho instável, dizendo que eu poderia cair. Provocativa, perguntei se ele me seguraria caso eu caísse. Vi algo diferente em seu olhar por um momento, antes que ele desviasse os olhos e me repreendesse por brincar
com assuntos sérios. Mas eu não estava brincando. Naquela época eu tinha 19 anos e achava que conhecia o mundo, que podia fazer o que quisesse. Mas o mundo tem um jeito de ensinar a gente e às vezes a lição vem dura como o sol do sertão. Logo depois daquele dia da festa junina, comecei a notar mudanças no jeito do padre Antônio. Ele evitava ficar sozinho comigo. Quando me via chegando, dava um jeito de estar com outras pessoas. Mas eu não era menina de desistir fácil. Tinha algo nos olhos dele, no jeito que ele me olhava
quando pensava que eu não estava vendo, que me dizia que aquilo não era só coisa da minha cabeça. As festas juninas passaram, Júlio chegou em Garanhuns. Julho é mês de festa. A feira de Garanhuns, como chamavam, trazia gente de todo lugar. O parque Euclides dourado ficava cheio de barracas, música e gente de todo canto. Meu pai me deixou ir com minhas amigas, Luzia e Conceição. Nós três éramos conhecidas como as moças do Alto do Mundaú, a parte alta da cidade onde morávamos. Foi lá que vi padre Antônio andando sozinho, olhando as barracas de artesanato. Ele
estava sem a batina, vestido como qualquer homem comum, de calça e camisa. Falei para minhas amigas que precisava comprar algo e que nos encontraríamos depois na barraca de tapioca da dona Josefa. Segui o padre de longe, vendo como ele parecia diferente fora da igreja, mais solto, mais humano. Quando ele entrou numa ruazinha menos movimentada perto do relógio das flores, tomei coragem e o chamei pelo nome. Ele se virou surpreso, quase assustado ao meestou o que eu fazia ali sozinha enquanto eu comentava sobre nunca tê-lo visto sem a batina. Sua resposta foi que às vezes precisava
se sentir como qualquer pessoa. Retruquei que ele nunca havia sido como qualquer pessoa para mim. Ficamos em silêncio. Naquela ruazinha escura, com o barulho da festa ao longe, senti que algo estava prestes a mudar. Ele sugeriu que eu voltasse para minhas amigas, afirmando não ser bom que me vissem com ele naquelas circunstâncias. Questionei-o sobre seus medos, se temia a mim ou o que sentia. Meu questionamento o pegou de surpresa como um tapa. Ele baixou os olhos e disse que eu não entendia o que estava dizendo, mas eu entendia. Sim. Entendia que ele também sentia algo
que eu podia ver em seu olhar. Quando ele tentou recuar, eu avancei. Lembrei-o que ele havia feito votos sagrados, mas perguntei se Deus não havia feito nossos corações para sentir e amar. Ele tentou me explicar sobre os diferentes tipos de amor, sobre sua vocação, sobre seus deveres para com Deus e a igreja. Mas suas palavras soavam vazias, como se ele estivesse tentando convencer a si mesmo, não a mim. Então, em um ato de coragem que até hoje não sei de onde veio, me aproximei e toquei seu rosto. Sua pele estava quente, com a barba por
fazer áspera sob meus dedos. Ele não se afastou. Seus olhos estavam fixos nos meus, escuros, profundos, cheios de conflito. Chamei o apenas de Antônio, sem o padre pela primeira vez. Disse que sabia que ele também sentia algo por mim. E naquela noite morna de julho, sob as luzes coloridas da feira, que mal chegavam até nós, fizemos o que não devíamos ter feito. Nos beijamos, nos abraçamos, cometemos um pecado que mudaria tudo. Suas mãos seguraram minha cintura, me puxando contra ele. Minhas mãos se enredaram nos seus cabelos. O mundo desapareceu à nossa volta. Quando nos separamos,
ombos ofegantes, vi lágrimas nos seus olhos. Ele pediu perdão a Deus, a mim. Mas não havia arrependimento real na sua voz. Apenas medo. Medo do que tínhamos começado. Medo do que poderia seguir. Pedi que não se desculpasse por algo tão bonito, afirmando que aquilo não poderia ser pecado. Ele fechou os olhos como se tentasse organizar os pensamentos. Quando os abriu novamente, havia uma determinação nova neles. Falou que precisávamos conversar, mas não ali, não naquele momento. Era muito perigoso. Combinou de nos encontrarmos na antiga capela de São Sebastião, nos arredores da cidade, uma igreja pequena e
quase abandonada que poucos frequentavam. Disse que poderia ir com a desculpa de verificar o estado do prédio para reformas. Marcamos para o dia seguinte. Nos despedimos com um último beijo rápido, furtivo. Ele voltou para a multidão da feira, voltando a ser padre Antônio para o resto do mundo. Observeio se afastar. Ainda sentindo o gosto dos seus lábios nos meus. Meu corpo inteiro vibrava como se tivesse despertado de um longo sono. Naquela noite, deitada na minha cama, não conseguia dormir. O beijo se repetia na minha mente como um filme. As mãos de Antônio na minha cintura,
o calor do seu corpo, o sabor da sua boca. sabia que tínhamos cruzado uma linha perigosa, sabia que o caminho à frente seria difícil, mas naquele momento tudo o que importava era que ele tão bem sentia o mesmo, que não era apenas minha imaginação, que havia algo real entre nós, algo forte o suficiente para fazê-lo questionar seus votos. No dia seguinte, inventei uma desculpa em casa. disse que ia ajudar Luzia a organizar os livros da pequena biblioteca da paróquia. Minha mãe não fez muitas perguntas, mas senti seu olhar desconfiado me seguindo até a porta. Peguei
um atalho pelos fundos do Hospital São Vicente e segui pela estrada de terra que levava à capela de São Sebastião. Cheguei antes dele. A capela estava como eu lembrava, pequena, simples, com sua torre cineira. onde os pássaros agora faziam ninhos. A porta de madeira pesada estava trancada, mas as janelas laterais, sem os vitrais que um dia tiveram, permitiam que a luz entrasse, criando padrões no chão de pedra coberto por folhas secas trazidas pelo vento. Sentei num banco de pedra ao lado da entrada, esperando. Meu coração batia tão forte que parecia que ia sair pela boca.
Estava nervosa, ansiosa, com medo e, ao mesmo tempo, absolutamente certa do que queria. Então, houve passos e me levantei. Antônio vinha pela trilha vestido com sua batina preta, o que me surpreendeu. Achei que viria a paisana como na feira. Quando se aproximou, vi seu rosto sério, preocupado. Não era o rosto de um homem indo encontrar a mulher que havia beijado no dia anterior. Era o rosto de alguém carregando um peso enorme. Antônio comentou que havia passado a noite inteira rezando, pedindo a Deus que lhe mostrasse o caminho certo. Quando perguntei se ele havia mostrado, ele
declarou que o que aconteceu entre nós tinha sido um erro, um momento de fraqueza que não poderia se repetir. Fiquei arrasada com suas palavras. Questionei como ele podia chamar de fraqueza o que tínhamos vivido. Ele não sabia que outro nome dá. Mencionou seus votos perante Deus, sua promessa de viver em castidade, servindo apenas a igreja. Disse que não podia quebrar esses votos. Lembrei que ele já havia quebrado ao me beijar, ao dizer que precisávamos conversar como se houvesse um nós para discutir. Ele insistiu que fora um erro que não repetiria. Quando questionei por então me
pedira para vir até ali, ele admitiu que me devia uma explicação, que precisava pedir perdão e deixar claro que não poderia acontecer novamente. Desafiei-o ao olhar nos meus olhos e dizer que não sentiu nada. que não pensava em mim, que não sonhava comigo como eu sonhava com ele. Finalmente ele me olhou. Seus olhos estavam úmidos, brilhantes de lágrimas contidas. Disse que o que sentia não importava, apenas o que era certo. Perguntei quem decidia o que era certo: "A igreja, Deus ou seu coração?" Ele começou a dizer que eu era jovem e bonita, que poderia conhecer
um rapaz bom, casar, ter uma família. Respondi que não queria outro rapaz, que queria ele. Antônio exclamou que era padre. Rebati que era um homem primeiro, um homem que sentia, que desejava, que amava. Avancei ficando tão perto que podia sentir o calor do seu corpo, o cheiro da sua pele, misturado ao incenso que impregnava suas roupas. Pedi que dissesse, olhando nos meus olhos que não me amava. Depois de um longo momento nos encarando, a poucos centímetros um do outro, algo pareceu quebrar dentro dele. Antônio me puxou para seus braços e me beijou novamente. Um beijo
desesperado, cheio de paixão reprimida e medo. Suas mãos seguravam meu rosto como se eu fosse algo precioso e frágil. As minhas se agarravam à sua batina, tentando trazê-lo para mais perto. Quando nos separamos, ofegantes, ele encostou sua testa na minha e confessou que não conseguia ficar longe de mim, que tinha tentado, mas era como se eu tivesse despertado algo dentro dele que estava adormecido, algo que nem sabia que existia. Implorei para que não lutasse contra isso, que ficasse comigo, que encontraríamos um jeito. Ele se afastou um pouco, segurando minhas mãos nas suas. Questionou que jeito
seria esse? Não podia deixar o sacerdócio assim, do dia paraa noite, e mesmo se pudesse, o escândalo destruiria nossas vidas. sugeri que fôssemos embora para Recife, Salvador, longe dali, começar uma vida nova, onde ninguém nos conhecesse. Ele perguntou sobre meus pais, minha família, se eu abandonaria tudo. A pergunta me fez parar. Seria eu realmente capaz de deixar tudo para trás? Meus pais que tanto amava, meus irmãos, minha cidade. Imaginei a dor nos olhos de minha mãe, o desapontamento no rosto do meu pai. Antônio disse que precisávamos de tempo para pensar, para ver se o que
sentíamos era real ou apenas uma tentação passageira. Afirmei que não era passageiro para mim, ao que ele respondeu que nem para ele, mas precisávamos ter certeza antes de tomar qualquer decisão drástica. Concordei, entendendo sua lógica, embora meu coração desejasse soluções imediatas. Perguntei o que faríamos e ele sugeriu que nos encontrássemos discretamente para conversar, para nos conhecermos melhor, para entender o que realmente queríamos. Quando sugeri que nos encontrássemos na capela, ele alertou que era arriscado, que poderiam notar suas visitas frequentes a um lugar que deveria estar abandonado. Então, mencionou o antigo engenho dos Menezes na saída
para Lagedo, que estava vazio há anos e ficava afastado da estrada principal. Propôs que nos encontrássemos lá uma vez por semana, o que me pareceu pouco demais. Ele sorriu explicando que precisava ser assim. pelo menos inicialmente, pois quanto mais nos encontrássemos, maior seria o risco. Concordamos em nos encontrar às terças-feiras à tarde, quando ele visitava as famílias das fazendas daquela região, e ninguém estranharia vê-lo por lá. Antes de nos despedirmos, ele me puxou para mais um beijo, lento, profundo, como se quisesse memorizar o sabor dos meus lábios para os dias que passaríamos separados. Saí da
capela primeiro, verificando se não havia ninguém por perto. O caminho de volta para casa foi como um sonho. Parte de mim estava nas nuvens, estasiada com o que tinha acontecido, com a perspectiva de mais encontros. Outra parte, no entanto, já começava a sentir o peso do segredo, o medo da descoberta, a culpa por estar fazendo algo que sabia que magoaria profundamente minha família. Os encontros começaram como combinado. Toda terça-feira eu inventava uma desculpa diferente. Uma vez era um grupo de estudo bíblico, outra uma visita à amiga doente ou ajudar na organização da biblioteca paroquial. Minha
mãe estava ficando desconfiada. Eu percebia pelos olhares que me lançava quando eu saía arrumada demais para tarefas tão simples, mas ela nunca me confrontou diretamente. O antigo engenho dos Menezes era perfeito para nossos encontros. A casa grande estava abandonada, com o telhado parcialmente desabado e as paredes cobertas de trepadeiras. Mas havia um anexo que tinha sido a casa do administrador, ainda em condições razoáveis, com um quarto, uma pequena sala e uma cozinha simples. Foi ali que nos encontramos ao longo daquele verão, semana após semana, descobrindo um ao outro, não apenas fisicamente, mas também em nossas
almas. Conversávamos por horas. Ele me contou sobre sua infância em Caruaru, filho de comerciantes devotos que sempre sonharam ter um filho padre, sobre como entrou no seminário jovem demais, sem realmente entender a dimensão do compromisso que estava assumindo. Sobre suas dúvidas, suas lutas internas, sua fé, que apesar de tudo, continuava forte. Eu falei sobre minha família, meus sonhos de talvez um dia estudar, de conhecer lugares além de garanhuns. Falei sobre as expectativas que pesavam sobre mim como filha mais nova, de casar e ter filhos como minhas irmãs mais velhas. E claro, nos amamos. No início
eram apenas beijos cada vez mais apaixonados. Depois toques mais ousados, explorações tímidas de corpos que despertavam para sentimentos novos. Antônio sempre hesitava, dividido entre o desejo e a culpa. Sussurrava que aquilo era pecado, enquanto suas mãos deslizavam sob minha blusa. Eu respondia que então Deus nos perdoasse, guiando suas mãos para onde mais queria senti-las. Foi numa tarde quente de agosto que finalmente nos entregamos completamente um ao outro. A chuva caía forte lá fora, criando uma cortina de privacidade, abafando nossos suspiros e gemidos. Foi doloroso e desajeitado, como costuma ser a primeira vez, mas também lindo
e transformador. Depois, deitados no colchão velho que tínhamos conseguido levar até lá, ele chorou. Lágrimas silenciosas que molhavam meu ombro enquanto eu acariciava seus cabelos. Ele murmurou que Deus devia odiá-lo naquele momento. Responde que Deus é amor, repetindo o que ele mesmo tantas vezes pregava, questionando como ele poderia odiar o que fazíamos se era por amor? Antônio não respondeu, apenas me abraçou mais forte, como se eu fosse uma âncora em meio a uma tempestade. Depois daquela tarde, uma nova urgência tomou conta de nossos encontros. Já não era apenas desejo, mas uma necessidade desesperada de estar
junto, de encontrar uma solução para nosso impasse. Antônio começou a falar mais seriamente sobre deixar o sacerdócio. Ele mencionou a possibilidade de pedir uma licença, um afastamento temporário, alegando precisar repensar sua vocação. Depois, talvez pudéssemos ir para Recife, onde seu primo poderia ajudá-lo a encontrar trabalho. Ele havia estudado filosofia antes do seminário. Poderia dar aulas? Quando perguntei sobre nós, ele sugeriu que depois de um tempo, quando as coisas se acalmassem, poderíamos nos casar e ter uma vida normal. Como essas palavras soavam doces, impossíveis, eu queria acreditar. Queria imaginar essa vida juntos, uma casa simples, filhos,
acordar ao lado dele todas as manhãs sem medo, sem culpa. Admiti que meus pais nunca aceitariam, que para eles seria como se ele tivesse me seduzido, me corrompido. Ele concordou que para os pais dele seria como se tivesse traído não apenas sua vocação, mas a confiança deles, todo o sacrifício que fizeram para enviá-lo ao seminário. Ao questionar o que faríamos, ele beijou minha testa e disse que daríamos um passo de cada vez. Primeiro precisava conversar com o bispo, pedir orientação espiritual, preparar o terreno. Depois poderíamos planejar nossa saída, talvez para São Paulo, longe o suficiente.
Concordei, embora uma voz dentro de mim duvidasse que seria tão simples. Nada que vale a pena é fácil, eu repetia para mim mesma. Nosso amor valia qualquer sacrifício. Setembro chegou, trazendo as primeiras flores da primavera para os jardins de garanhuns. E com ele veio também a descoberta que mudaria tudo. No início, não me preocupei tanto com o atraso no meu ciclo menstrual, que nunca fora muito regular. Às vezes, o estresse ou mudanças na alimentação causavam atrasos de alguns dias. Mas quando uma semana se transformou em duas e duas em três, não pude mais ignorar a
possibilidade que me assombrava. Eu poderia estar grávida. Os sinais estavam lá, o cansaço constante desde o despertar, os enjooos matinais que disfarçava da minha mãe com desculpas de indisposição, a sensibilidade nos seios que nunca havia sentido antes. Ainda assim, tentava me convencer de que era apenas uma coincidência. uma combinação de fatores que nada tinham a ver com uma gravidez. Minha mãe notou minha palidez enquanto eu a ajudava a descascar mandioca no quintal. Perguntou se eu estava me alimentando corretamente. Menti, dizendo que era apenas cansaço do trabalho na loja, que seu antenor havia aumentado o meu
horário. Ela me observou com aquele olhar materno que parece ver através das mentiras. comentou também sobre minhas saídas frequentes, questionando se o grupo de jovens da paróquia não estava me sobrecarregando. Baixei os olhos para minhas mãos sujas de terra e respondi que não, que era importante ajudar na igreja, mencionando como o padre Antônio sempre dizia que os jovens eram o futuro da comunidade. Ao citar seu nome, senti meu rosto esquentar. Desde nossa conversa sobre ele possivelmente deixar o sacerdócio, nossos encontros tinham ficado ainda mais intensos, mais desesperados, como se cada momento juntos pudesse ser o
último antes de uma grande mudança. Minha mãe murmurou, não parecendo muito convencida, pediu que eu tomasse cuidado, comentando que o padre tinha olhos que não lhe agradavam. Quando perguntei o que queria dizer, ela descreveu-os como olhos famintos que olhavam demais para as moças. Fez o sinal da cruz, pedindo perdão a Deus por falar assim de um homem de batina, mas ressaltando que tinha seus pressentimentos. Fiquei em silêncio, o coração acelerado. Seria possível que ela desconfiasse de algo? Será que outros também notavam como Antônio me olhava durante as missas, durante as reuniões de pastoral? Respondi que
ela estava imaginando coisas que padre Antônio era apenas dedicado, preocupado com os jovens. Ela deu de ombros, voltando a se concentrar na mandioca, mas acrescentou que eu era sua filha caçula, que já tinha visto muito na vida e só queria me proteger. Naquela noite, deitada em minha cama, as palavras da minha mãe ecoavam na minha cabeça. Se ela soubesse do que precisava me proteger, não seria do padre Antônio, mas de mim mesma, das minhas próprias decisões imprudentes. E agora, talvez fosse tarde demais. Na manhã seguinte, tomei coragem e fui até a farmácia do seu Genésio,
no outro extremo da cidade, onde ninguém me conhecia bem. Comprei um remédio que, segundo as mulheres mais velhas, poderia fazer o sangue descer se estivesse apenas atrasado. Eram ervas amargas que misturei com mel como indicado, e tomei por três dias seguidos. Nada aconteceu, a não ser uma dor de estômago terrível que me fez perder um dia de trabalho. A realidade foi se tornando inescapável. Eu, Ivone Almeida Santos, filha de Joaquim e Teresa, moça de família de Garanhuns, estava grávida. E o Pai era o homem que toda a cidade olhava com reverência, o homem que dirigia
as almas para Deus, o homem que tinha feito votos de castidade perante o Altíssimo. Nosso próximo encontro estava marcado para a terça-feira seguinte. Foram os sete dias mais longos da minha vida. Não conseguia comer direito, não conseguia dormir. Na loja, deixei cair uma peça de tecido caro na lama, o que me rendeu uma bronca de seu antenor. Na missa de domingo, não tive coragem de olhar para Antônio, de receber a comunhão das suas mãos. Ele notou minha ausência na fila. Vi seus olhos me procurando na multidão, a preocupação em seu rosto. Quando finalmente chegou o
dia, fui até o velho engenho dos menezes com o coração pesado como chumbo. A tarde estava cinzenta, ameaçando chuva, como se o próprio céu compartilhasse do meu humor sombrio. Antônio já estava lá quando cheguei, sentado nos degraus de pedra da entrada, o rosto iluminando-se ao me ver. Ele começou a dizer que ficara preocupado ao não me ver na missa de domingo, mas as palavras morreram em seus lábios quando viu minha expressão. Levantou-se, a alegria dando lugar à preocupação. Perguntou o que havia acontecido. Entrei na casa sem responder, sentindo as pernas fracas. Sentei-me na cadeira velha
que tínhamos trazido para a sala improvisada. Ele me seguiu, ajoelhando-se à minha frente, tomando minhas mãos frias entre as suas. Insistiu para que eu falasse, dizendo que estava assustado. Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas, mas não havia palavras certas para o que precisava dizer. Então, simplesmente falei direta, sem rodeios, que estava esperando um filho. Seu filho. O silêncio que se seguiu foi o mais longo da minha vida. Vi o rosto de Antônio passar por uma série de emoções, choque, incredulidade, medo e, finalmente, um pânico tão puro que quase senti pena dele. Ele gaguejou, perguntando
se eu tinha certeza. Confirmei que já fazia dois meses que não menstruava, que apresentava todos os sinais. Ele soltou minhas mãos e se levantou, cambaleando para trás, como se tivesse levado um golpe. Sua pele, normalmente clara, ficou quase translúcida. Por um instante, achei que ele fosse desmaiar. Ele repetia: "Meu Deus!" várias vezes, passando as mãos pelos cabelos num gesto desesperado, dizendo que aquilo não podia estar acontecendo. Senti lágrimas quentes descendo pelo meu rosto. Não sei o que esperava. Talvez que ele me abraçasse, me dissesse que ficaríamos bem, que agora tínhamos mais um motivo para ficarmos
juntos. Mas sua reação, puro terror me feriu profundamente. Falei com a voz embargada pelo choro, que não tinha sido só minha culpa, que estávamos juntos nisso. Ele parou seu movimento frenético e me olhou. Vi que também tinha lágrimas nos olhos. Sua voz se suavizou quando disse que sabia que não estava me culpando. Ele se aproximou, ajoelhando-se novamente à minha frente, encostando sua cabeça no meu colo. Senti seus ombros sacudindo com soluços contidos. Acariciei seus cabelos, sentindo uma estranha inversão de papéis. Agora era eu quem o consolava, quem precisava ser forte. Perguntei o que faríamos. Ele
levantou o rosto, os olhos vermelhos, as lágrimas deixando trilhas nas suas bochechas. Disse não saber que aquilo mudava tudo, que um filho não conseguiu concluir a frase. Lembrei o que havia falado em deixar o sacerdócio em irmos para São Paulo. Ele começou a dizer que isso era antes, sem conseguir completar. acrescentou que aquilo era muito mais grave do que apenas deixar a batina. Era um escândalo que destruiria tudo. Sua reputação, minha reputação, a vida da criança. Questionei sarcasticamente se ele sugeria que eu simplesmente desaparecesse ou desse a criança para adoção assim que nascesse. Ele fechou
os olhos como se as palavras doessem fisicamente. Disse que não sabia, que precisava pensar, rezar. encontrar um caminho menos doloroso para todos. Retruquei indignada que não existia caminho sem dor naquela situação. Questionei que caminho sem sofrimento ele imaginava para uma moça solteira grávida numa cidade como Garanhuns, para uma família que seria apontada na rua, humilhada na igreja, zombada nos comércios. Ele exclamou que sabia, que compreendia o que aquilo significava, as consequências. disse que aquilo era o fim de tudo, da sua vocação, da minha reputação, do futuro que sonhávamos. Insisti que não precisava ser assim, que
poderíamos transformar aquilo em um novo começo. Seria difícil, sim. As pessoas falariam, nos julgariam, mas poderíamos enfrentar juntos por nós, pelo nosso filho. Por um momento, vi um lampejo de esperança nos olhos dele, mas foi rapidamente substituído por aquela expressão que eu começava a odiar, a do sacerdote pragmático, do homem que pesava todas as opções, que calculava todos os riscos. Ele pediu tempo, dizendo que aquilo era grande demais para decidir naquele momento. Precisava pensar, encontrar uma solução. Questionei quanto tempo, lembrando que não tínhamos muito, que logo eu começaria a mostrar a gravidez, que minha mãe
já desconfiava de que algo estava errado. Ele estipulou alguns dias, no máximo uma semana. mencionou que falaria com alguém que talvez pudesse ajudar, um padre mais velho que fora seu mentor no seminário. Segurando meu rosto entre suas mãos, prometeu que encontraria uma saída, uma que fosse boa para mim, para ele, para a criança. Notei que ele nem conseguia dizer nosso filho, o que já me indicava muito sobre o futuro que nos aguardava. Nos despedimos com um beijo triste, sem a paixão habitual. Combinamos de nos encontrar no mesmo lugar, na mesma hora, na semana seguinte. Ao
sair do engenho, olhei para trás e vi Antônio de joelhos no chão empoeirado, as mãos juntas em oração, a figura da desolação personificada. A semana que se seguiu foi um borrão de angústia e medo. Em casa tentava agir normalmente, mas cada vez era mais difícil esconder os enjoos matinais, o cansaço, as mudanças sutis no meu corpo, que olhos atentos como os da minha mãe, logo notariam. No trabalho, seu antenor me chamou num canto após eu derrubar pela terceira vez na semana uma pilha de tecidos que estava organizando. Perguntou se eu estava doente ou precisando de
folga. Respondi que não, que estava apenas um pouco distraída e me desculpei, prometendo que não se repetiria. Ele me olhou com desconfiança, mas não insistiu no assunto. Antes de voltar para o balcão, porém, colocou a mão no meu ombro e disse que se eu precisasse conversar, a porta da casa dele sempre estaria aberta, que dona Cícera gostava muito de mim. Foi um gesto de bondade que quase me fez desabar ali mesmo. Se ao menos fosse tão simples quanto conversar com o patrão e sua esposa. Na igreja, evitei ao máximo cruzar com Antônio. Foi à missa
na paróquia de São José, no outro extremo da cidade, sob protestos da minha mãe, que não entendia porque eu queria ir tão longe quando tínhamos a igreja matriz bem pertinho. uma história sobre uma novena especial que estava sendo feita lá, a qual tinha prometido participar. A terça-feira demorou uma eternidade para chegar. Quando finalmente chegou, fui até o engenho dos Menezes com o coração um pouco mais leve. A semana de reflexão devia ter ajudado Antônio a organizar as ideias, a encontrar uma solução prática para nosso problema. Talvez ele já tivesse até falado com o bispo, preparado
o terreno para sua saída da igreja. Mas quando cheguei, o engenho estava vazio. Esperei uma hora, duas, até o sol começar a se pôr, tingindo o céu de vermelho sangue. Ele não apareceu. Voltei para casa confusa, assustada, sentindo-me traída. No dia seguinte, fui até a igreja matriz determinada a encontrá-lo. A senhora que limpava o altar me disse que padre Antônio tinha viajado. Quando perguntei para onde e quando voltaria, ela respondeu que não sabia direito, que o bispo de Caruaru o havia chamado com urgência e que o padre Clemente, aquele velhinho que tinha se aposentado, cobriria
as missas por enquanto. Senti o mundo girando à minha volta. Ele tinha ido embora sem me avisar, sem me dar satisfação. Tinha fugido do problema de mim, do nosso filho. Foi quando comecei a ouvir os coxichos. O bispo de Caruaru tinha chamado Padre Antônio para uma missão especial no interior da Bahia, onde faltavam sacerdotes. Outros diziam que ele tinha pedido para ir para um mosteiro em Olinda para fazer retiro espiritual. As beatas da igreja disputavam quem tinha a informação mais precisa, quem conhecia melhor os detalhes da partida repentina do jovem e querido padre. Ninguém, claro,
relacionava sua partida à moça pálida da loja de tecidos, que agora carregava no ventre o segredo mais explosivo de Garanhuns. Os dias que se seguiram foram os mais sombrios da minha vida. A cada manhã acordava com a esperança de que tudo não passasse de um pesadelo, que Antônio voltaria, bateria à minha porta, diria que tinha encontrado uma solução, que ficaríamos juntos. Mas ele não voltou. Nenhuma carta, nenhum recado. Minha mãe percebia que algo estava errado. Me encontrou chorando várias vezes. Perguntava o que estava acontecendo. Eu inventava desculpas. Briguei com uma amiga. Estou cansada do trabalho.
Li um livro triste. Ela fingia acreditar, mas seus olhos diziam que sabia que era algo mais profundo. Enquanto isso, minha barriga, ainda imperceptível para os outros, começava a ganhar uma firmeza que só eu notava. Meus seios ficavam mais pesados. Os enjoos matinais não davam trégua. Não podia mais negar a realidade. Carregava o filho de um padre que havia fugido de sua responsabilidade. Foi nesse momento de desespero que recebi uma carta sem remetente, apenas meu nome no envelope. A letra eu reconheceria em qualquer lugar. A caligrafia elegante de Antônio, que eu tinha admirado tantas vezes nos
folhetos paroquiais, nos avisos da missa. Com mãos trêmulas, abriu o envelope. Dentro uma carta breve e um maço de dinheiro. A carta dizia apenas: "Ivone, perdoe-me, não tive forças para enfrentar isso. Vou para um mosteiro em Olinda fazer retiro espiritual por tempo indeterminado. Pedi transferência para outra diocese depois. Este dinheiro é para ajudá-la. Busque ajuda, talvez com sua família. Rezo por você e pela criança todos os dias. Que Deus nos perdoe. Não havia assinatura, não precisava ver. Cada palavra era uma facada no meu coração. Ele não voltaria. Ele havia escolhido sua batina sobre nós. Ele
havia me abandonado. Rasguei a carta em pedaços minúsculos, as lágrimas embaçando minha visão. O dinheiro, porém, guardei. Orgulho não encheria a barriga de criança, nem pagaria parteira quando a hora chegasse. Foi minha tia Dulce quem me salvou. Irmã mais nova da minha mãe. Ela morava sozinha em Bom Conselho, cidade vizinha a Garanhuns. Era viúva, não tinha filhos. vivia numa casinha simples. Quando eu era criança, passava as férias com ela. Era uma mulher de poucas palavras, mas de coração enorme. Juntei coragem e fui visitá-la num domingo. Não podia mais guardar aquele segredo sozinha. Ia explodir. Precisava
de alguém para conversar, para aconselhar, alguém que não me julgasse imediatamente. E tia Dulce sempre teve esse jeito de ouvir sem condenar. Contei tudo para ela. Desde o primeiro olhar trocado na igreja até a carta covarde. Chorei como nunca tinha chorado antes. Ali na cozinha simples dela, com cheiro de café recém coado e bolo de milho no forno. Ela ouviu tudo em silêncio, os olhos atentos, as mãos calejadas, segurando as minhas de vez em quando. Quando terminei meu relato, esperava talvez um sermão, talvez decepção. Mas tia Dulce apenas suspirou, passou a mão pelos cabelos grisalhos
e disse que eu tinha uma cruz pesada para carregar, mas que não precisava carregar sozinha. Ela me ajudaria. Seu plano era simples. Eu diria aos meus pais que ela estava doente e precisava de ajuda. Iria morar com ela por um tempo, até a criança nascer. Depois decidiríamos o que fazer. Era uma solução temporária, ela admitia, mas nos daria tempo para pensar. Voltei para casa com uma sensação estranha no peito, uma mistura de alívio e medo. Alívio por ter compartilhado meu segredo por ter um plano, por não estar completamente sozinha. Medo pelo que estava por vir,
pelo que meus pais diriam quando soubessem, pelo futuro incerto do meu filho. Não foi difícil convencer meus pais. Tia Dulce realmente não andava bem de saúde. Tinha reumatismo que a incomodava nos dias frios, além de pressão alta. A ideia de que eu fosse ajudá-la por uns tempos pareceu sensata para eles. Mamãe até disse que era bom eu aprender a cuidar de uma casa sozinha, que já estava na idade. Assim, num sábado de outubro, parti para Bom Conselho com duas malas e o coração pesado. A despedida dos meus pais foi dolorosa. Não porque fosse longa. Bom
conselho ficava a menos de 2 horas de viagem. Eu poderia visitar nos finais de semana, mas porque sabia que estava saindo com uma mentira e sabia que quando voltasse nada seria como antes. Bom Conselho era uma cidade ainda menor que Garanhuns, apenas uma praça central, algumas ruas de paralelepípedos, casas simples, uma igreja. Não tinha o clima a meno de garanhuns, era mais quente, mais seco, mas tinha a vantagem de que poucos me conheciam ali. Poderia ser apenas mais uma moça, ajudando a tia doente, sem olhares curiosos, sem perguntas indiscretas. A casa de tia Dulce ficava
numa rua lateral, afastada do centro. Era pequena, mas aconchegante. Dois quartos, sala e cozinha juntas, um quintal com algumas galinhas, pés de acerola e pitanga. O banheiro era do lado de fora, uma construção anexa, simples, mas limpa. Minha tia tinha preparado o quarto de hóspedes para mim, o que antes tinha sido o quarto do meu tio, falecido há mais de 10 anos. Tinha uma cama de solteiro, uma penteadeira, um guarda-roupa antigo. Na janela, cortinas de renda que ela mesma tinha feito. "Este será seu cantinho enquanto estiver aqui?", ela disse, ajudando-me a desfazer as malas. "Se
precisar de algo mais, é só dizer". Foi ali, naquele quarto simples, naquela casa de piso de cimento queimado e paredes de cal, que passei os meses mais transformadores da minha vida. O tempo em bom conselho passou devagar. Os dias se arrastavam, um igual ao outro. Acordava cedo, ajudava a tia Dulce com o café da manhã, depois nas tarefas da casa. À tarde, sentávamos na varanda pequena e eu bordava. Minha tia tinha me ensinado o ponto cruz. Dizia que era bom para acalmar a mente. Ela tricotava pequenas peças para o bebê, casaquinhos, sapatinhos, mantas. À noite,
ouvíamos rádio, conversávamos sobre tudo e sobre nada. Tia Dulce me contava histórias da família de quando ela e mamãe eram meninas. histórias que eu nunca tinha ouvido antes. Falava do meu avô, homem severo, mas justo, da minha avó, que morreu cedo demais de tuberculose. De como foi difícil para as duas se criarem sem mãe, com um pai que não sabia demonstrar afeto. ouvia fascinada vendo minha própria mãe sob uma nova luz, entendendo melhor a dureza dela, a preocupação constante, o medo que tinha de que algo ruim acontecesse com os filhos. Mamãe tinha perdido a mãe
muito cedo, tinha aprendido que a vida podia ser cruel, que era preciso se proteger. "Ela vai sofrer muito quando souber", comentei uma noite, enquanto tomávamos chá de erva cidreira na cozinha. Vai achar que falhou como mãe? Tia Dulce balançou a cabeça. Teresa sempre foi muito dura consigo mesma. Acha que pode controlar tudo, proteger todo mundo, mas a vida não é assim. Todo mundo erra, todo mundo cai. O importante é como a gente se levanta depois. Acha que ela vai me perdoar algum dia? Vai. Talvez não logo, talvez não facilmente, mas vai. Sangue é sangue e
quando ela ver a carinha desse bebê, vai ser impossível não amar. Eu queria acreditar nisso. Queria acreditar que minha família não me rejeitaria completamente, que haveria um caminho de volta. Enquanto isso, minha barriga crescia, tornando-se impossível de disfarçar. Já não ia à cidade, com medo de encontrar alguém conhecido. Tia Dulce fazia as compras, levava meus recados. Quando alguém perguntava por mim, ela dizia que eu estava ajudando em casa, cuidando dela. No terceiro mês em Bom Conselho, mamãe veio me visitar. Foi uma visita tensa. Ela olhava para mim de um jeito estranho, notando a mudança no
meu corpo, mesmo sob as roupas soltas que eu usava. não perguntou nada, mas seus olhos diziam tudo. Ela sabia, ou pelo menos suspeitava, mas não estava pronta para confirmar seus temores e eu não estava pronta para confessar. Ela ficou apenas um dia e voltou para Garanhuns, levando uma cesta de frutas do quintal de tia Dulce e deixando para trás um silêncio pesado entre nós. Chorei a noite toda depois que ela partiu, sentindo o abismo que crescia entre mim e minha família. Tia Dulce me consolou como podia. De tempo ao tempo, minha filha, quando o bebê
nascer, será mais fácil conversar. As coisas vão se ajeitar. Eu me agarrava a essa esperança como um náufrago a um pedaço de madeira. Tinha que acreditar que haveria um futuro para mim e meu filho, mesmo que diferente do que sonhei. De Antônio, nenhuma notícia além daquela carta. Eu me perguntava onde ele estaria, o que estaria fazendo. Se pensava em mim, se sentia remorço, se algum dia teria coragem de conhecer seu filho. Foi numa madrugada chuvosa de maio que as dores começaram fortes, como nunca tinha sentido antes. Tia Dulce, experiente, reconheceu imediatamente os sinais do trabalho
de parto. chamou dona Sebastiana, a parteira da cidade, mulher de 60 anos que tinha trazido ao mundo metade dos habitantes de bom conselho. Dona Sebastiana chegou rápido, com sua maleta de couro e suas mãos calejadas, porém gentis. Examinou-me, confirmou que o bebê estava a caminho e deu ordens precisas para tia Dulce preparar água quente, toalhas limpas, tesoura fervida. O parto foi longo e doloroso. Horas de dor que pareciam não ter fim. Sem anestesia, sem médico, apenas uma parteira experiente e uma tia amorosa para me ajudar. Em cada contração, em cada empurrão, eu pensava em Antônio,
em como ele tinha me deixado sozinha naquele momento, em como nunca o perdoaria por isso. E então, finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, o choro alto, forte, indignado, meu filho, chegando ao mundo, anunciando sua presença. Dona Sebastiana sorriu, mostrando-me o pequeno embrulho vermelho e chorão. É um menino, minha filha, e é forte como um touro. Eles colocaram o bebê nos meus braços e naquele momento todo o sofrimento, toda a vergonha, toda a tristeza pareceram desaparecer. Olhei para aquele rostinho, para aqueles olhos que se abriam timidamente e senti um amor que nunca imaginei ser possível.
Um amor que ultrapassava tudo, que fazia todo o resto parecer pequeno, insignificante. "José", sussurrei tocando sua bochecha macia. "Seu nome será José?" Como meu avô, pensei, um nome forte de trabalhador, um nome que não carregava o peso do passado, que não denunciava suas origens. Um nome que poderia abrir caminhos, não fechá-los. Tia Dulce, ao meu lado tinha lágrimas nos olhos. Ele é lindo, Ivone. E é seu, apenas seu. Naquele momento, tomei uma decisão. Antônio tinha feito sua escolha ao partir. Eu faria a minha agora. criaria meu filho sozinha, com orgulho, com amor. Ele não precisaria
saber que seu pai era um homem que preferiu seus votos, a sua própria carne e sangue. Não precisaria carregar esse fardo. José dormiria no meu peito naquela noite e em todas as outras que se seguiriam, e juntos encontraríamos nosso caminho. Os primeiros meses com José foram os mais cansativos e também os mais felizes da minha vida. Noites em claro, amamentação a cada poucas horas, fraldas de pano para lavar, roupinhas minúsculas para passar, mas também sorrisos desdentados, a sensação do seu corpinho quente contra o meu, a certeza de que, apesar de tudo, eu tinha algo precioso,
algo que ninguém poderia tirar de mim. Tia Dulce foi um anjo nesse período. Cuidava de José quando eu precisava descansar. me ensinava os segredos de ser mãe que ela, mesmo sem filhos, conhecia por ter ajudado a criar tantos sobrinhos. Preparava chás para aumentar meu leite, sopas fortificantes para me recuperar do parto. "Você precisa ficar forte", dizia ela. "Este menino vai precisar muito de você". Meus pais não sabiam do nascimento. Eu ainda não tinha coragem de contar. inventava desculpas sempre que ligavam ou quando queriam visitar. Tia Dulce estava pior, precisava de cuidados constantes. A viagem seria
cansativa para ela. O tempo estava ruim para viajar. Qualquer coisa que adiasse o inevitável confronto, mas sabia que não poderia esconder José para sempre, especialmente porque ele crescia rápido, forte e saudável, com bochechas redondas e olhos vivos. cada vez mais parecia com o pai. O mesmo queixo determinado, os mesmos olhos escuros, intensos. Foi quando José completou 4 meses que tomei coragem. Escrevi uma carta para minha mãe contando tudo. Não falei quem era o pai, apenas que eu tinha cometido um erro, que estava arrependida, mas que amava meu filho e queria criá-lo com dignidade. Pedi perdão
pelo sofrimento que causava, mas não pelo meu filho. Nunca me arrependeria dele. A resposta veio na forma da presença. Uma semana depois de enviar a carta, ouvi batidas na porta. Era uma tarde quente de setembro. José dormia no berço improvisado que tio Dulce tinha conseguido com uma vizinha. Quando abri, lá estava minha mãe sozinha, pálida, com olheiras profundas, como se não dormisse há dias. Ficamos nos olhando por um longo momento, sem palavras. Então ela entrou, fechou a porta atrás de si e me abraçou. Um abraço apertado, desesperado, que dizia tudo o que as palavras não
conseguiam. Chorei em seus braços como uma criança, soluçando pedidos de perdão. "Onde está ele?", ela perguntou finalmente, a voz embargada. Levei-a até o beço, onde José dormia placidamente, inconsciente do drama que se desenrolava. Minha mãe olhou para ele por muito tempo em silêncio. Depois, com dedos trêmulos, tocou sua bochecha macia. "Ele se parece com seu irmão Pedro quando bebê", ela disse finalmente. Não havia acusação em sua voz, apenas uma tristeza profunda, resignada. Contei a ela uma versão simplificada da verdade, que me envolvera com um rapaz que prometera casamento, mas que desaparecera quando soube da gravidez.
Não mencionei que era padre Antônio. Aquela verdade era pesada demais. Causaria um escândalo que respingaria em toda a família. Minha mãe não insistiu em saber a identidade do pai. Talvez já suspeitasse, talvez preferisse não confirmar suas suspeitas. Ela ficou três dias conosco. Nesse tempo, cuidou de José como só uma avó faria, com um amor que ultrapassava a decepção, a vergonha, a dor. Ensinou-me truques para acalmá-lo quando chorava muito, maneiras de fazer com que arrotasse melhor depois de mamar, como aliviar as cólicas que às vezes o atormentavam. antes de partir, me deu um ultimato. Seu pai
não sabe ainda. Contarei a ele do meu jeito no meu tempo, mas não posso prometer que ele vai reagir como eu. Ele é um homem bom, Ivone, mas é da velha escola, tem seu orgulho, sua reputação na cidade. Entendi o que ela não disse. Que talvez meu pai não me perdoasse tão facilmente, que talvez as portas da casa onde cresci estivessem fechadas para mim por um bom tempo. "E o que faço agora, mãe?", perguntei, sentindo-me perdida como nunca antes. "Agora você cria seu filho, Ivone, com amor, com dignidade, mostra para ele e para o mundo
que um erro não define quem você é". Com essas palavras, ela partiu prometendo voltar em breve, prometendo mandar notícias, dinheiro, o que pudesse, sem levantar suspeitas. Fiquei na porta vendo o ônibus partir com José nos braços, sentindo-me simultaneamente mais leve por ter compartilhado meu segredo com minha mãe e mais pesada pela confirmação de que o caminho à frente seria muito difícil. O tempo passou. José crescia cada dia mais esperto, mais forte. Seu primeiro dente, seus primeiros passos, suas primeiras palavras. Cada marco era celebrado com alegria por mim e tia Dulce, e às vezes por minha
mãe, que visitava quando podia, sempre trazendo presentes escondidos, roupinhas novas, brinquedos pequenos, dinheiro que economizava dos gastos da casa. Meu pai, como previsto, não aceitou bem a notícia. Mamãe me contou que ele ficou dias sem falar. Depois teve um acesso de raiva em que quebrou louças. Depois caiu numa tristeza profunda. Dizia que tinha falhado como pai, que eu tinha manchado o nome da família, que as pessoas olhavam diferente para ele na rua. Dê tempo a ele, mamãe aconselhava. Seu pai é um homem bom, mas orgulhoso. Vai demorar, mas um dia ele vai querer conhecer o
neto. Eu queria acreditar nisso. Queria acreditar que eventualmente poderia voltar para Garanhuns, apresentar José à família estendida, a comunidade, mas sabia que seria difícil. Uma mãe solteira era alvo de fofocas de preconceito. E embora minha história inventada de um namorado que fugiu de suas responsabilidades fosse menos escandalosa que a verdade, ainda assim seria motivo para muita conversa maldosa. Foi tia Dulce quem sugeriu um novo começo. Ela tinha uma amiga em Caruaru, dona Clotilde, que era proprietária de uma pensão para moças. Caruaru era uma cidade maior, mais movimentada, onde ninguém me conhecia. Lá eu poderia recomeçar,
encontrar um emprego, criar José sem o peso do passado. "Você não pode ficar aqui para sempre, minha filha", ela disse. "Esta casa é sua por quanto tempo precisar. Você sabe disso. Mas bom conselho é pequena demais. As pessoas já começam a perguntar sobre o menino. Logo as fofocas vão chegar até Garanhuns. É melhor você ir para mais longe, começar uma vida nova. No fundo, eu sabia que ela tinha razão. Já tinha passado mais de um ano desde que deixara garanhuns. José já estava com 15 meses andando, começando a falar algumas palavras. Não podia ficar escondida
para sempre. precisava construir um futuro para nós dois. Tia Dulce escreveu para dona Clotild, contando uma versão modificada da minha história, que eu era viúva, que meu marido morrera antes do nascimento do filho. A história da viúvez era mais aceitável socialmente, abriria mais portas. Dona Clotilde respondeu prontamente, oferecendo um quarto na pensão e a promessa de ajudar a encontrar trabalho. A despedida de tia Dulce foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. Aquela mulher simples, de mãos calejadas e coração enorme, tinha sido mais que uma tia. Tinha sido amiga, conselheira, quase uma mãe nos
meses mais difíceis da minha vida. Prometi escrever, mandar notícias de José, visitá-la sempre que possível. "Vou sentir falta de vocês dois", ela disse com lágrimas nos olhos enquanto abraçava José pela última vez. "Mas é o melhor. Vá construir sua vida, minha filha. Seja feliz." Caruaru me recebeu com o calor abrasador típico do agreste pernambucano, muito diferente do clima meno de garanhuns ou mesmo de bom conselho. A cidade era um turbilhão de movimento, a famosa feira de artesanato, o comércio movimentado, as ruas cheias de gente vinda de toda parte. Dava para se perder na multidão, ser
apenas mais uma pessoa tentando sobreviver. Exatamente o que eu precisava. A pensão de dona Clotilde ficava numa rua tranquila, não muito longe do centro. Era um sobrado antigo, de paredes grossas, que mantinha o interior relativamente fresco, mesmo nos dias mais quentes. Tinha 10 quartos ocupados principalmente por moças que trabalhavam no comércio ou estudavam. O meu era pequeno, mas limpo, com espaço suficiente para uma cama de solteiro, um berço para José e uma pequena cômoda. Dona Clotilde era uma senhora robusta, de 60 e poucos anos, viúva como eu supostamente era, tinha olhos bondosos e um jeito
prático de lidar com as coisas. Desde o início, tratou José como se fosse seu próprio neto, mimando-o com biscoitinhos caseiros, contando histórias, deixando-o brincar no pequeno jardim dos fundos. Crianças dão trabalho, mas alegram a casa", ela dizia, observando José correr atrás de uma borboleta. "Foi ela quem conseguiu meu primeiro trabalho em Caruaru, na loja de uma conhecida que vendia roupas. Não pagava muito, mas era suficiente para o aluguel do quarto e para as necessidades básicas. Enquanto eu trabalhava, dona Clotilde cuidava de José junto com sua empregada, dona Zeffa, uma senhora negra de sorriso fácil e
coração ainda maior. A vida em Caruaru era diferente, anônima, livre do peso dos olhares de reprovação, das fofocas maldosas. Ninguém questionava minha história de viúva. Ninguém se importava muito com meu passado. Era apenas mais uma mãe lutando para criar seu filho com dignidade. Aos poucos fui construindo uma rotina, fazendo amizades, encontrando meu lugar naquela cidade barulhenta e acolhedora. Minha mãe escrevia regularmente, mandando notícias de garanhuns, da família. Meu pai ainda não havia cedido, ainda não queria ouvir falar do neto. Mas meus irmãos, especialmente Pedro, o mais velho, demonstravam interesse em conhecer José. Um dia, mamãe
escrevia: "Quando as feridas cicatrizarem um pouco, você poderá trazer José para conhecer a família. Eu esperava por esse dia, mas não depositava todas as minhas esperanças nele. Tinha aprendido que a vida raramente segue os planos que fazemos. Às vezes, é preciso criar novos caminhos, seguir em frente, deixar para trás o que não podemos mudar. Para complementar minha renda, comecei a costurar a noite depois que José dormia. Tinha aprendido o ofício com minha mãe e minhas mãos sempre foram habilidosas com agulha e linha. Comecei fazendo pequenos reparos para as outras moças da pensão, depois vestidos simples,
blusas, saias. Logo tinha uma pequena clientela fiel que apreciava meu trabalho cuidadoso, meus acabamentos perfeitos. José crescia forte e saudável, alheio às complicações que cercavam sua origem. Para ele, éramos apenas nós dois contra o mundo, com o apoio de dona Clotilde, dona Zefa e mais tarde das amizades que fui construindo. Ele era um menino alegre, curioso, esperto como só ele e inegavelmente cada dia mais parecido com o pai. Quando começou a fazer perguntas sobre o papai do céu, não Deus, mas o pai que ele acreditava ter morrido, inventei histórias. Mostrei-lhe uma foto recortada de uma
revista antiga, um rapaz de boa aparência que poderia facilmente ser pai. Disse-lhe que seu pai tinha sido um homem bom, trabalhador, que Deus levou cedo demais. Era mais fácil assim. Os anos passaram. José entrou na escola, aprendeu a ler, mostrou aptidão para matemática. Ele tem cabeça para os números dizia orgulhosamente sua professora nas reuniões da escola. Aos 10 anos já me ajudava com as contas das clientes, somando os valores, calculando os troco, tudo de cabeça. Nessa época já tínhamos deixado a pensão de dona Clotilde. Aluguei uma casinha simples de dois quartos, perto da escola de
José. A costura tinha se tornado meu trabalho principal, mais rentável que a loja, onde eventualmente deixei de trabalhar. Tinha uma clientela fiel, senhora de classe média, que apreciavam meus vestidos bem acabados, minhas blusas com bordados delicados. A vida seguia, não da forma que eu tinha imaginado aos 19 anos, quando me apaixonei pelo padre novo da paróquia, mas de uma forma digna, uma vida que eu tinha construído com minhas próprias mãos, apesar dos erros e tropeços. De Antônio, nenhuma notícia direta além daquela carta. De vez em quando, através de conhecidos que tinham parentes em Garanhuns, ouvia
fragmentos de informações, que ele tinha saído do mosteiro em Olinda após alguns anos, que tinha pedido transferência para o sul, para uma paróquia no interior, onde ninguém o conhecia, que nunca mais pôs os pés em garanhuns. Eu me perguntava se ele pensava em nós, se tinha curiosidade sobre o filho que nunca conheceu, se a culpa o corroia tanto quanto a mágoa me corroia. Mas com o tempo, até isso foi perdendo importância. Antônio se tornou uma lembrança distante, um erro da juventude, um capítulo fechado. José era meu presente, meu futuro, minha redenção. Quando José completou 17
anos, aconteceu algo que mudou o rumo da nossa história novamente. Ele chegou da escola com um papel na mão, o rosto iluminado pela maior alegria que já vi. Tinha passado no exame para trabalhar no Banco do Brasil. Era um emprego seguro, respeitável, com bom salário, uma conquista enorme para um menino de periferia, criado apenas pela mãe. O senhor Alvarenga do banco diz que nunca viu ninguém com tanta facilidade para números. Ele exclamou, me girando pela cozinha num abraço apertado. Começo na semana que vem, mãe, como estagiário, mas se eu for bem, tenho chance de ser
efetivado. Abracei meu filho com lágrimas nos olhos, orgulhosa demais para expressarem palavras. Aquele menino que tantos teriam considerado um erro, um pecado, tinha se tornado um homem bom, honesto, trabalhador. Tinha superado todos os obstáculos, todas as ausências. Naquela noite, quando José já dormia, olhei para sua foto da formatura do segundo grau, que mantinha emoldurada na sala. A semelhança com Antônio era innegável. os mesmos olhos intensos, o mesmo queixo determinado, até o mesmo jeito de franzir a testa quando estava concentrado. Por um momento, sentiu uma pontada de dor, pensando no que poderia ter sido, nas escolhas
que tivemos que fazer, no pai que José nunca conheceu. Mas essa dor já não tinha a mesma intensidade de antes. tinha aprendido a viver com ela, a transformá-la em algo mais suave, mais resignado. Antônio tinha feito sua escolha e eu tinha feito a minha. E olhando para o resultado, para o homem maravilhoso que nosso filho tinha se tornado, não podia dizer que me arrependia. Quando José completou 23 anos, anunciou que ia se casar. A noiva Mariana era uma moça simples, filha de comerciantes, que conhecera na igreja. Sim, José frequentava igreja regularmente, algo que eu nunca
o forcei a fazer, mas que ele escolheu por si mesmo. Talvez fosse algo no sangue, pensei ironicamente. O casamento seria simples na paróquia de São Pedro, com uma pequena recepção no salão paroquial. José insistiu que eu convidasse toda a família de Garanhuns. "Já está na hora, mãe", ele disse. "Quero conhecer meus tios, meus primos. Quero que meus avós vejam que homem me tornei, graças a você. Escrevi para minha mãe, que agora visitava Caruaru duas vezes por ano, sempre ficando em minha casa, sem meu pai saber. Contei sobre o casamento, estendi o convite a todos. A
resposta veio rápida. Ela viria sim e traria meus irmãos e suas famílias. Meu pai? Bem, meu pai ainda não estava pronto. Mesmo depois de tantos anos, a ferida do desapontamento ainda estava aberta. Foi nessa época, com os preparativos do casamento a todo vapor, que comecei a pensar seriamente em Antônio novamente. José merecia saber a verdade sobre suas origens antes de começar sua própria família. E talvez, apenas talvez fosse hora de buscar algum tipo de encerramento, de paz para essa história que tinha marcado tão profundamente nossas vidas. Encontrar Antônio não foi fácil. Ele não estava mais
no convento franciscano em Olinda descobria através de conhecidos. Depois de muitas consultas discretas, muitas cartas, muitos telefonemas, soube que ele tinha deixado o convento após alguns anos. tinha pedido transferência para o Rio Grande do Sul, para uma paróquia no interior, onde ninguém o conhecia. Juntei minhas economias, comprei uma passagem de ônibus, a mais longa viagem da minha vida, e parti sul. José achou que eu estava indo visitar uma prima distante. Não menti totalmente. De certa forma, ia encontrar alguém do sangue dele. A viagem durou três dias e três noites. O Brasil é imenso quando se
cruza de ônibus. Cheguei a Caxias do Sul, exausta, com as costas doendo e o coração apertado. A cidadezinha até lembrava um pouco garanhuns, com suas ladeiras e seu clima frio, mas as pessoas falavam diferente, se vestiam diferente, comiam coisas diferentes. A paróquia de São Pellegrino ficava no centro, uma igreja grande de pedra, muito diferente da nossa igreja colonial de Garanhuns. Perguntei por padre Antônio e um senhor me indicou a casa paroquial ao lado da igreja. Quem atendeu a porta foi uma senhora idosa de cabelos brancos e sotaque carregado de italiana. Era a governanta. Disse-me que
o padre estava na missa da tarde, voltaria em uma hora. Esperei no banco da praça em frente, observando as crianças brincando, os idosos jogando dominó, a vida acontecendo sem pressa. E então ele apareceu descendo os degraus da igreja. mais velho, é claro. O cabelo agora mais grisalho que preto, o rosto mais cheio, o andar mais lento. Mas ainda era ele. Ainda era o homem que tinha virado minha vida do avesso mais de 20 anos antes. Ele não me reconheceu de imediato. Eu também tinha mudado. O tempo passa para todos. Quando me aproximei e chamei seu
nome, vi o reconhecimento lentamente surgir em seus olhos, seguido pelo choque, pelo medo, pela culpa. Fomos para um café quieto, afastado da praça. Ele mal conseguia me olhar nos olhos. Pedi um café. Ele não quis nada. Suas mãos tremiam levemente sobre a mesa. Contei a ele sobre José, sobre como nosso filho tinha crescido forte e bom, sobre como ia se casar, sobre como eu nunca tinha dito a verdade a ele. Vi lágrimas nos olhos de padre Antônio quando mostrei uma foto do rapaz tirada na formatura do banco. A semelhança era innegável. os mesmos olhos, o
mesmo queixo, até o mesmo modo de sorrir. Antônio confessou que nunca tinha deixado de pensar em nós, que rezava por mim e pelo filho todas as noites, que a culpa o tinha corroído tanto que precisou ir para o mais longe possível, que por anos pensou em deixar a batina, mas a covardia sempre falava mais alto. Não senti raiva dele, nem mágoa. Senti apenas uma tristeza profunda pelo que poderia ter sido e não foi. Pelos sonhos que enterramos, pela família que nunca formamos, pelos anos que perdemos. Perguntei se ele queria conhecer o filho. Ele hesitou, os
olhos cheios de medo e esperança. Seria possível depois de tanto tempo José aceitaria? Eu mesma não sabia a resposta. tinha vindo sem um plano definido, apenas com a certeza de que precisava fechar esse ciclo, antes que fosse tarde demais, combinamos que ele viria a Caruaru no mês seguinte depois da Páscoa. Tempo suficiente para eu preparar José para contar a verdade que tinha escondido a vida toda. Voltei para casa com o coração menos pesado. A verdade, dizem, liberta. E depois de tantos anos carregando o peso do segredo, finalmente sentia que poderia me libertar. Mas o destino
tem seus próprios planos. Uma semana depois de voltar a Caruaru, recebi um telegrama. Padre Antônio havia falecido, um ataque cardíaco fulminante enquanto celebrava a missa. morreu no altar consagrando o pão e o vinho. Talvez tenha sido a forma que Deus encontrou de perdoá-lo, de chamá-lo de volta enquanto exercia o sacerdócio que nunca abandonou. Não foi ao enterro. Não podia deixar José, não podia levantar suspeitas. Chorei sozinha na privacidade do meu quarto, pelo homem que amei, pelo pai do meu filho, pelo pecador que, como eu, nunca encontrou redenção completa. José nunca soube a verdade. Não tive
coragem de contar depois que Antônio morreu. Que bem faria? abalar a imagem que ele tinha do pai falecido, manchar a memória de um homem que já não podia se defender. Decidi que alguns segredos são melhor guardados para sempre. Meu filho se casou, teve seus próprios filhos, construiu uma vida sólida. é um homem bom, honesto, trabalhador. Às vezes vejo traços de Antônio nele, um gesto, uma expressão, uma maneira de franzir a testa quando está concentrado. E nesses momentos sinto uma mistura de dor e gratidão. Dor pelo que perdemos, gratidão pelo que ganhamos. O tempo passou e
a dor foi diminuindo. Garanhuns ficou no passado como uma cidade de um país distante que visitei na juventude. Padre Antônio virou uma fotografia amarelada guardada no fundo de uma gaveta junto com outras lembranças que só eu entendo. E José? José se tornou meu orgulho, minha redenção, minha forma de fazer as pazes com o passado. Nele vejo o melhor de mim e o melhor de Antônio. Nele vejo que mesmo dos erros mais graves, podem surgir bênçãos inesperadas. Se pudesse voltar no tempo, teria feito diferente. Não sei dizer. A jovem Ivone, de 19 anos, apaixonada pelo padre
novo da paróquia, parece uma estranha para mim agora. Suas escolhas, seus desejos, seus sonhos pertencem à outra vida. Hoje, olhando para trás com a serenidade que só a idade traz, entendo que cada escolha que fazemos traça um caminho que não pode ser desfeito. Meu caminho me trouxe até aqui. Uma senhora de cabelos brancos, com um filho bom e netos maravilhosos. Uma vida simples, mas honesta e um segredo que levarei comigo para o túmulo. E você está ouvindo essa história de onde? Me conta nos comentários. Adoro saber até onde minhas palavras conseguem chegar. M.
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