[Música] Menina muda e coberta de lama entra de madrugada na casa de um estranho. Que, ao saber o motivo de ela estar lá, fica desesperado. Paulo estava em casa sozinho, assistindo à televisão, como fazia todas as noites. O silêncio era confortável para ele, algo que valorizava por morar tão distante de tú e de todos. Não gostava de seres humanos; preferia o isolamento. E foi exatamente por isso que escolheu viver em um local tão remoto. O som da televisão era a única companhia, até que um barulho estranho vindo da porta quebrou a tranquilidade. Ele franziu
o cenho, estranhando o som. Não esperava ninguém, muito menos aquela hora. Levantou-se do sofá, com o corpo rígido, e foi em direção à porta. Ao abri-la, Paulo ficou paralisado por um momento. Ali, em pé na sua frente, estava uma menina. Ela parecia ter cerca de 5 anos, toda suja de lama, com os cabelos grudados no rosto. Era possível ver apenas seus olhos brilhando na escuridão. — Quem, quem é você? — Paulo murmurou, olhando ao redor, mas não havia mais ninguém. A menina, sem dizer nada, apenas olhou para ele por alguns segundos antes de desmaiar. Paulo
agiu rapidamente, esticando os braços e assegurando-se, antes que ela caísse no chão. Ele se abaixou com ela nos braços, desesperado, tentando acordá-la. Ele balançava levemente a menina, mas ela não respondia. O pânico começou a subir por sua espinha. Não havia sinal de celular naquela região isolada e a única opção que lhe restava era buscar ajuda por conta própria. Ele olhou para a menina desacordada em seus braços e decidiu que precisava agir rápido. Sem perder tempo, Paulo correu até o carro com a garota nos braços, abriu a porta traseira e a deitou cuidadosamente no banco. Ele
entrou no carro, ligou o motor e partiu, acelerando pela estrada deserta e escura. A viagem até o hospital mais próximo levaria cerca de 2 horas, mas ele não tinha escolha. Enquanto dirigia, seu olhar se dividia entre a estrada à frente e a menina no banco traseiro. Ele verificava a todo momento se ela ainda estava respirando. A tensão era palpável e o silêncio no carro apenas ampliava sua angústia. Cerca de uma hora depois, a menina começou a se mexer. Paulo olhou pelo retrovisor e viu que ela tinha acordado, mas não chorava; seu olhar estava cansado, como
se carregasse um peso muito maior do que seus 5 anos deveriam suportar. De repente, para sua surpresa, ela se inclinou e o abraçou por trás, envolvendo-o com seus bracinhos. O gesto inesperado fez algo dentro de Paulo mudar. Ele, que sempre se afastava das pessoas, sentiu um calor estranho crescer em seu peito. — Você está bem? Qual o seu nome? — Paulo perguntou, ainda sem saber como lidar com a situação. A menina, sem dizer uma palavra, fez alguns gestos com as mãos. Paulo percebeu que era a linguagem dos sinais, Libras. Ele não sabia o que significavam
os gestos, mas era claro que a menina estava tentando se comunicar. — Eu, eu não sei Libras — ele disse, sentindo-se impotente. A menina o olhou com uma expressão de compreensão; ela sabia que ele não a entendia. Sem insistir, ela apenas voltou a abraçá-lo. Paulo, mesmo sem saber o que fazer, pegou uma sacola que mantinha no carro e tirou alguns doces. — Toma isso, vai te ajudar — disse, entregando-lhe os doces. A menina pegou os doces com um sorriso tímido e os colocou no colo. Depois, Paulo encontrou uma revista antiga jogada no banco e a
entregou para ela. Não era muito, mas pelo menos poderia mantê-la distraída até chegarem ao hospital. A viagem continuou em silêncio, com apenas o som do motor cortando a noite. Paulo sentia o peso daquela situação, mas não conseguia entender como uma menina tão pequena tinha aparecido na porta da sua casa. Ela estava sozinha, suja de lama, sem ninguém por perto e agora estava em seu carro, em uma jornada silenciosa e tensa para o hospital. Quando finalmente chegaram ao hospital, Paulo estacionou o carro e olhou para a menina pelo retrovisor. — Vamos, chegamos — disse ele, abrindo
a porta do carro. A menina, no entanto, não se mexeu. Seus olhos estavam arregalados e ela parecia assustada. Paulo percebeu que ela estava com medo de sair do carro. — Não precisa ter medo, eu vou te levar lá dentro — disse ele, tentando tranquilizá-la. A menina balançou a cabeça negativamente, agarrando o banco com força. Paulo suspirou, sentindo a ansiedade aumentar. Precisava agir rápido, mas não sabia como acalmá-la. — Olha, eu prometo que vai ficar tudo bem. Eles vão te ajudar. A menina hesitou, mas finalmente soltou o banco. Paulo a pegou nos braços novamente e ela
o abraçou com força enquanto ele a levava para dentro do hospital. Assim que entraram, os médicos vieram rapidamente ao encontro deles. Um dos médicos, ao ver a condição da menina, perguntou: — O que aconteceu com ela? — Eu não sei — respondeu Paulo, ainda ofegante. — Ela apareceu na minha porta, toda suja de lama, e desmaiou. Não consegui falar com ela porque ela usa Libras e eu não entendo. O médico assentiu, já dando ordens para a equipe. — Vamos levá-la para fazer alguns exames. Precisamos verificar o estado dela. Enquanto a equipe levava a menina para
dentro, um dos enfermeiros olhou para Paulo e disse: — Vamos chamar a polícia. Eles vão querer investigar o que aconteceu. Paulo, que até então estava concentrado em ajudar a garota, sentiu um calafrio ao ouvir a palavra "polícia". Mas ele sabia que era o certo a se fazer; algo tinha acontecido com aquela menina e ele não poderia simplesmente ignorar isso. — Tudo bem — concordou ele, olhando para as portas do que a menina acabara de atravessar, nas mãos dos médicos. Agora, só restava esperar por notícias. Paulo sentou-se no corredor do hospital, com a cabeça entre as
mãos, ainda processando tudo o que havia acontecido. O silêncio do hospital era interrompido apenas pelos sons distantes de enfermeiros e... Pacientes. Ele pegou o celular no bolso, hesitou por um momento e, com um suspiro profundo, ligou para a única pessoa que poderia ajudar naquele momento: sua irmã, Manuela. — Alô? — a voz de Manuela soou do outro lado da linha, tranquila como sempre. — Manu, eu… eu não sei o que fazer — Paulo começou, sua voz embargada pela confusão e pelo cansaço. — Tem uma menina que apareceu aqui em casa sozinha, suja de lama. Ela
desmaiou e eu a trouxe pro hospital. Manuela riu levemente, como se não estivesse levando a sério o que o irmão dizia. — Paulo, isso é sério! Você está brincando, né? Ou você bêbado? — Não tô brincando — ele respondeu, impaciente. — Ela tá aqui no hospital, eu tô aqui com ela. O tom de Paulo era tão sério que Manuela parou de rir, e o silêncio tomou conta da linha por alguns segundos. — Meu Deus! — ela disse, finalmente percebendo a gravidade da situação. — Como isso aconteceu? Você tá bem? — Tô... quer dizer, tô confuso.
Não sei o que fazer. Ela não fala, só usa sinais. Eu não entendo nada. — Paulo, fica calmo. Eu tô indo pra aí agora. Me dá o endereço. Paulo passou as coordenadas, agradecendo baixinho, aliviado por saber que não estava mais sozinho naquela confusão. Ele desligou e olhou ao redor, sentindo o peso do corredor frio e vazio. Dez minutos depois, Manuela chegou com os passos apressados e os olhos atentos, procurando o irmão. Assim que o viu, correu para ele, abraçando-o apertado. — Como você tá, Paulo? — ela perguntou, olhando para ele com preocupação. — Tô bem,
dentro do possível — ele respondeu, se afastando um pouco para encará-la. Manuela franziu a testa, observando a situação ao redor. — E a menina? Já descobriram alguma coisa? — Ainda não. Ela só se comunica em Libras e eu não sei nada disso — Paulo admitiu, se sentindo impotente. Manuela abriu um sorriso pequeno e, para surpresa de Paulo, disse: — Eu sei Libras. Paulo sentiu um alívio imediato; a ideia de Manuela conseguir falar com a menina de alguma forma parecia uma pequena esperança no meio de toda aquela confusão. Pouco tempo depois, o médico retornou com informações
sobre a garota. — Ela está bem. Só estava desidratada — explicou o médico, de maneira calma. — Já falamos com ela, mas a menina não disse como foi parar na sua casa e nem mencionou os pais. Só nos disse que o nome dela é Jasmim. Paulo e Manuela trocaram um olhar preocupado, e o médico continuou: — Vocês podem falar com ela agora. Talvez consigam descobrir algo que ela ainda não nos contou. Paulo e Manuela seguiram o médico até o quarto onde Jasmim estava. A menina, ainda com o soro preso ao braço, olhou para eles assim
que entraram e, sem pensar duas vezes, correu para abraçar Paulo novamente. Ela o apertava como se ele fosse a única pessoa em quem pudesse confiar naquele momento. — Acho que ela gosta de você — Manuela disse, observando a cena com um sorriso de canto. Paulo, ainda confuso com a situação, apenas passou a mão pelos cabelos da menina. Ele se sentia desajeitado, sem saber como reagir ao carinho da garota. — Vou tentar falar com ela — Manuela disse, se aproximando de Jasmim. Ela se abaixou para ficar na altura da menina e começou a usar os sinais
de Libras. — Oi, Jasmim — Manuela gesticulou. — Como você veio parar na casa do meu irmão? Onde estão seus pais? A menina, que parecia confiante na presença de Manuela, baixou a cabeça, evitando o olhar dos dois, com movimentos lentos e hesitantes. Jasmim fez alguns sinais. Manuela observou atentamente e depois suspirou. — Ela disse que se perdeu — Manuela traduziu para Paulo, mas não falou nada sobre os pais. Paulo franziu a testa, ainda mais preocupado com o mistério em torno de Jasmim. Ela, percebendo a atenção, mudou de assunto, falando com a menina sobre outras coisas
mais leves. — O que você gosta de fazer, Jasmim? — Manuela perguntou. A menina, com um leve sorriso no rosto, respondeu em sinais que gostava de brincar de boneca e de ir ao parque de diversões. Manuela traduziu para Paulo, que tentou interagir com a menina da sua maneira. — Eu não tenho bonecas, mas posso aprender a brincar se você quiser — Paulo disse, desajeitado. Manuela sorriu e mostrou alguns sinais simples para Paulo, que tentava imitar os gestos. Jasmim, vendo a tentativa desajeitada dele, não conseguiu conter uma risada, o que deixou Paulo mais à vontade. —
Acho que tô aprendendo, hein? — Paulo brincou, arrancando mais risos da menina. O clima no quarto se tornou mais leve, mas a situação ainda era delicada. Após algum tempo, o médico voltou ao quarto com uma notícia que pegou Paulo de surpresa. — Jasmim já pode ter alta. Ela está bem e pode ir embora, mas a polícia quer levá-la para um abrigo até localizarem os responsáveis. Ao ouvir isso, Jasmim começou a chorar e se agarrou a Paulo com todas as forças, como se a ideia de ser levada para longe dele fosse insuportável. — Não, por favor!
— Paulo murmurou, sentindo o desespero da menina. Ele olhou para o médico, depois para Manuela, e tomou uma decisão. — Eu… eu posso cuidar dela temporariamente? — perguntou, sem acreditar nas palavras que estavam saindo da sua boca. Manuela o olhou surpresa, mas não disse nada. Ela sabia que Paulo não gostava de se envolver com pessoas, mas ali, naquele momento, ele estava diferente. O médico olhou para Paulo, ponderando a solicitação. — Isso seria possível, mas precisaríamos fazer uma verificação prévia — explicou o médico. — E os serviços sociais teriam que avaliar sua capacidade. Paulo assentiu, ainda
sem saber exatamente o que estava fazendo, mas sentindo que não podia deixar Jasmim ser levada. Ele não entendia o porquê, mas aquela menina, de alguma forma, já tinha se tornado parte de sua vida. Manuela, ainda surpresa, colocou a mão no ombro do irmão e disse: — Se você acha que pode fazer isso, Paulo… Ele, mesmo sem saber o que o futuro reservava, sabia que tinha que tentar. Não podia deixá-la ir. Paulo conversou com a irmã, Manuela, tentando entender a melhor maneira de lidar com a situação. Eles passaram horas discutindo a melhor forma de aceitarem que
ele cuidasse de Jasmim temporariamente. O processo não seria simples, e ele sabia que haveria muitas entrevistas e verificações, mas estava determinado. — Paulo, você tem certeza disso? — Manuela perguntou, preocupada. — Cuidar de uma criança é uma grande responsabilidade, e você sabe como é o sistema. Eles vão querer ter certeza de que você está preparado. — Eu sei, Manu — Paulo respondeu com um suspiro —, mas eu não posso deixá-la sozinha. Ela precisa de mim, e eu... — ele hesitou, escolhendo as palavras. — Eu sinto que preciso dela também. Manuela sorriu, embora seus olhos ainda
refletissem preocupação. — Então vamos fazer isso juntos — ela disse, decidida. — Você pode se mudar para cá enquanto tudo se ajeita. Vai ser mais fácil, e eu posso te ajudar. Paulo aceitou a oferta da irmã, e nos dias seguintes ele se mudou temporariamente para a casa dela. O processo foi intenso, com entrevistas da assistente social que os visitava para avaliar se Paulo estava apto a cuidar de Jasmim. Todos estavam preocupados, especialmente com o estado emocional da menina no orfanato, onde estava temporariamente. Ela se recusava a comer e não falava com ninguém. O único momento
em que a garota demonstrava algum sinal de felicidade era quando Paulo a visitava, e ela ria ao vê-lo. — Ela realmente criou um laço com você — disse Manuela. Um dia, após uma das visitas ao orfanato, Paulo admitiu pensativo: — Eu não entendo por que ela me escolheu. Eu sou o último tipo de pessoa que deveria estar cuidando de uma criança. — Talvez seja exatamente por isso — Manuela retrucou com um sorriso. — Você está fazendo algo que nunca imaginou, e ela percebe isso. Depois de alguns dias de entrevistas e verificações, Paulo foi considerado apto
para cuidar temporariamente de Jasmim. A notícia trouxe um misto de alívio e felicidade. Quando ele foi buscá-la no orfanato, a menina mal conseguia conter a alegria. Seus olhos brilhavam e ela o abraçou assim que o viu, como se estivesse esperando por aquele momento há muito tempo, pronta para voltar para casa. — Jasmim? — perguntou Paulo, com um sorriso no rosto. Mesmo sem responder verbalmente, ela fez que sim com a cabeça e segurou firme a mão dele. Manuela, que estava ao lado, havia preparado um quarto especial para Jasmim em sua casa. Tudo estava decorado com cores
suaves, bonecas e brinquedos novos que ela sabia que a menina adoraria. O espaço, embora simples, transmitia conforto e acolhimento. — Espero que ela goste — Manuela disse enquanto arrumava os últimos detalhes. — Fiz o meu melhor. Jasmim correu para dentro do quarto, seus olhos arregalados com todas as novidades. Ela tocava nos brinquedos com cuidado, como se não acreditasse que eram para ela. Em seguida, virou-se para Paulo e Manuela com um sorriso largo e fez alguns sinais rápidos com as mãos. — Ela está dizendo que adorou — traduziu Manuela, sorrindo. — Que bom — respondeu Paulo,
sentindo o coração aquecido ao ver a alegria da menina. Nos dias que se seguiram, a rotina de Paulo mudou completamente. Agora, ele não só era responsável por Jasmim, mas também estava determinado a se comunicar melhor com ela. Por isso, começou a fazer aulas intensivas online para aprender Libras. A ideia de se aproximar de Jasmim e entendê-la de maneira plena o motivava mais a cada dia. — Eu quero poder conversar com ela de verdade — Paulo explicou a Manuela durante uma de suas pausas nas aulas. — Eu me sinto impotente não sabendo o que ela está
dizendo. — Você vai conseguir — Manuela o encorajou. — Já está fazendo um ótimo trabalho. E enquanto isso, eu estou aqui para ajudar. Jasmim, embora ainda preferisse a comunicação com sinais, também escrevia pequenas frases para Paulo. Era um esforço mútuo; ela tentava entender o que ele dizia, e ele fazia o possível para acompanhá-la com os gestos que aprendia. Sempre que ele errava um sinal, Jasmim ria, e aquilo se tornava um momento leve para os dois. Após alguns dias, Renato, o marido de Manuela, finalmente retornou de sua viagem de trabalho. Assim que soube da situação, ele
apoiou a decisão de Manuela e Paulo de cuidar temporariamente de Jasmim. — Você está fazendo algo incrível — disse Renato, dando um tapinha nas costas do cunhado. — Cuidar de uma criança assim, ainda mais com tudo o que ela passou, é louvável. Paulo apenas sorriu, ainda tentando se acostumar com aquela nova realidade. Apesar do apoio de todos, uma questão permanecia em aberto: o que tinha acontecido com a família de Jasmim? Essa pergunta rondava a mente de Paulo constantemente, até que um dia, enquanto os dois estavam sentados no jardim, ele decidiu tentar entender mais sobre o
passado dela. — Jasmim — ele começou, olhando nos olhos da menina —, eu sei que deve ser difícil, mas você pode me contar de onde veio? Não precisa ter medo, nada de mal vai acontecer com você. Jasmim pareceu pensativa por um momento. Ela baixou a cabeça e, depois de alguns segundos, começou a fazer sinais rápidos com as mãos. Paulo olhou para Manuela, que estava ao lado deles, para que ela traduzisse. — Ela está dizendo que o pai dela morreu há um ano — Manuela começou, a voz suavemente trêmula —, e que desde então ela morava
apenas com a madrasta. Paulo franziu o cenho; aquilo explicava por que Jasmim estava tão retraída. Ele sabia que a ausência de um pai podia ser devastadora para uma criança. — Onde ela mora? — Paulo perguntou. Manuela esperou Jasmim sinalizar mais algumas coisas antes de responder. Ela disse o endereço e o nome da madrasta. A informação parecia um passo importante, e Paulo sentiu um alívio momentâneo por finalmente ter algo concreto. Eles entraram em contato com o serviço social, e em questão de horas, a madrasta de Jasmim, Magda, estava a caminho. Todos estavam ansiosos e nervosos com
o encontro. Paulo, que até então estava satisfeito com a ideia... De encontrar a família de Jasmim, de repente, foi tomado por uma tristeza inesperada. Sabia que aquilo significaria a separação da menina e, embora estivesse feliz por ela, não podia evitar o sentimento de perda iminente. "Vai ficar tudo bem", disse Manuela, percebendo a expressão preocupada no rosto de Paulo. "Eu sei," ele respondeu, mais para si mesmo do que para ela. O que ele não sabia era como aquele encontro com Magda mudaria tudo dali em diante. Magda chegou acompanhada de uma assistente social. Assim que viu Jasmim,
ela correu para abraçá-la, os braços abertos em um gesto afetuoso. Jasmim, no entanto, não retribuiu o abraço com entusiasmo, permaneceu séria, observando tudo em silêncio, como se estivesse ainda processando o que estava acontecendo. "Eu procurei por você em todos os lugares, Jasmim!" Magda exclamou enquanto se ajoelhava na frente da menina. "Não sabia o que fazer. Um dia acordei de manhã e você simplesmente tinha desaparecido!" Ela continuou, com a voz embargada de emoção. "Não sei como você saiu de casa." Jasmim olhou para Magda, sem expressar nenhuma emoção, mantendo o olhar fixo, enquanto Magda prosseguia: "Você sempre
foi tão curiosa." Magda acrescentou, tentando suavizar o clima. "Depois que seu pai morreu, ficou ainda mais exploradora, mas eu nunca pensei que algo assim pudesse acontecer." Paulo, que até então observava a interação à distância, se aproximou. Ele sentia que algo estava faltando naquela explicação, mas resolveu manter o foco em Jasmim. "Ela ficou bastante apegada a mim", disse Paulo, tentando explicar a ligação especial que eles haviam desenvolvido. Magda assentiu lentamente, como se estivesse tentando digerir as palavras dele. "Eu acho que sei o porquê", disse Magda, enquanto começava a procurar algo em sua bolsa. Ela puxou uma
foto de dentro e a estendeu para Paulo. "Esse é meu falecido marido, o pai de Jasmim." Paulo pegou a foto e olhou atentamente. O homem na imagem realmente se parecia muito com ele: os mesmos traços fortes, o cabelo escuro e até a expressão tranquila eram familiares. "Nosso!" Manuela comentou, aproximando-se e olhando por cima do ombro de Paulo. "Vocês são bem parecidos." Paulo ficou em silêncio por um momento, absorvendo a informação. Agora fazia sentido porque Jasmim havia se sentido tão segura com ele desde o início: ela o via como uma figura paterna, alguém que, de alguma
forma, lembrava o pai que havia perdido. "Acho que ela se sentiu segura ao lado de alguém que se parecia tanto com o pai dela", concluiu Magda, suspirando. Paulo olhou para Jasmim, que estava quieta ao lado de Magda. Com um aperto no coração, ele finalmente entendia o motivo de ela não querer se separar dele, mas isso tornava ainda mais difícil vê-la partir. "Acho que sim," Paulo disse, tentando sorrir, mas o peso da situação tornava difícil. Magda segurou a mão de Jasmim com delicadeza, preparando-se para ir embora. Ela se despediu de todos, agradecendo por terem cuidado da
menina durante aquele tempo. "Nós vamos agora, Jasmim," disse Magda, com um tom suave. Jasmim olhou para trás, seus olhos fixos em Paulo. Ela claramente não queria ir, e Paulo sentiu um aperto no peito ao ver a tristeza nos olhos da menina. Ele tentou sorrir, acenando levemente para ela. "Vai ficar tudo bem, Jasmim," ele disse, mas sabia que as palavras soavam vazias. Sem mais palavras, Magda e Jasmim partiram. Paulo ficou parado na entrada, observando enquanto elas desapareciam no horizonte. Ao seu lado, Manuela se aproximou e o abraçou, percebendo o quão difícil aquele momento era para ele.
"Você fez o que pôde," Paulo disse Manuela, com a voz suave. "Agora é o momento dela voltar para casa." Paulo assentiu, mas algo dentro dele continuava incomodando. Era um sentimento difícil de explicar, mas ele sabia que aquela despedida não estava sendo fácil para ninguém. Depois que se despediram, Paulo voltou para casa. O caminho, que antes parecia rotineiro, agora era pesado e melancólico. Quando chegou à casa que costumava ser um refúgio de paz e isolamento, parecia fria e solitária de um jeito que ele nunca havia sentido antes. A solidão que antes ele valorizava agora parecia sem
sentido. Tudo parecia diferente sem Jasmim por perto. Ele passou alguns dias assim, tentando voltar à rotina, mas a ausência da menina pesava demais. Ele sentia saudades de sua companhia silenciosa, de sua risada e até dos momentos em que ele tentava desajeitadamente se comunicar com ela. Algo o incomodava, mas ele não conseguia identificar exatamente o que era. Uma tarde, enquanto se sentava no sofá, olhando para o vazio, ele se lembrou do endereço que Jasmim havia dado. Magda disse que ela morava em uma casa grande, em um bairro de luxo. Ele pensou. E então, uma decisão impulsiva
tomou conta dele: ele precisava ver Jasmim novamente. Não conseguia ficar em paz sabendo tão pouco sobre como ela estava. Paulo pegou as chaves do carro e dirigiu até o endereço que lembrava. A viagem foi rápida, mas sua mente estava à mil. "Será que estou exagerando?" ele se perguntava, mas algo dentro dele gritava que ele precisava ir. Quando chegou, parou em frente à casa, que parecia mais um palácio do que uma residência comum. Era uma mansão enorme, com um jardim perfeitamente aparado e muros altos. Sentiu-se fora de lugar, como se estivesse invadindo um espaço ao qual
não pertencia. Paulo saiu do carro e tocou a campainha. Depois de alguns segundos, um mordomo apareceu, vestindo um uniforme impecável. "Boa tarde, como posso ajudá-lo?" O mordomo perguntou, com um tom polido, mais distante. "Boa tarde, meu nome é Paulo. Eu vim ver Jasmim. Eu cuidei dela recentemente", Paulo hesitou, tentando encontrar as palavras certas. O mordomo olhou para ele por um momento, parecendo refletir sobre a situação, antes de responder: "Sinto muito, senhor. Jasmim e sua madrasta estão viajando. Elas foram para a Europa e devem ficar fora por algum tempo." A resposta pegou Paulo de surpresa. Ele
não esperava que Magda tivesse saído do país tão rapidamente e... muito menos levando Jasmim. Europa. Paulo repetiu, sentindo uma estranha sensação de perda. Sim, partiram esta manhã, confirmou o mordomo educadamente. "Entendi," Paulo murmurou, tentando processar a informação. Ele agradeceu ao mordomo, que fechou o portão e voltou para o carro, uma onda de tristeza invadindo seu peito. Jasmim estava longe e ele não sabia quando ou se a veria novamente. Paulo estava sentado no sofá de sua sala, encarando o teto, enquanto sua mente girava em torno de um único pensamento: Jasmim. Algo em toda a situação não
fazia sentido e, por mais que ele tentasse afastar as dúvidas, elas voltavam com força. Ele morava há mais de uma hora de carro da casa de Jasmim, então como a menina teria aparecido na porta dele da primeira vez? E a maneira como ela agiu ao ver Magda, tão distante e séria, sem demonstrar nenhum carinho pela madrasta... Paulo sentia que algo estava errado. Além disso, a maneira como Magda se comportou quando veio buscar Jasmim também o incomodava; a emoção parecia forçada, como se estivesse tentando convencê-los de algo que não era totalmente verdade. Paulo não conseguia tirar
da cabeça a sensação de que havia uma falsidade nas palavras dela. "Vou esperar elas voltarem de viagem," pensou Paulo. "Eu preciso falar com Magda, entender o que está acontecendo." Mas ele não precisou esperar tanto. Em uma noite, quando estava quase adormecendo no sofá, um som repentino o fez acordar: batidas na porta. Paulo se levantou rapidamente, o coração acelerado, imaginando quem poderia estar ali a essa hora. Ao abrir a porta, ele ficou chocado; ali estava Jasmim, suada, ofegante, como se tivesse corrido uma longa distância. Ela não disse nada, apenas se lançou nos braços de Paulo, abraçando-o
com força. "Meu Deus, Jasmim, o que aconteceu?" Paulo perguntou, sentindo o coração disparar. A menina, com o rosto aflito, começou a fazer sinais frenéticos com as mãos. Paulo tentou, mas seus conhecimentos de Libras ainda eram limitados. Ele sabia que algo grave havia acontecido, mas não conseguia entender o quê. "Calma, calma, eu não estou entendendo," ele disse, enquanto segurava Jasmim pelos ombros, tentando acalmá-la. Então, uma ideia lhe veio à mente: "Espera aqui, vou chamar a Manuela." Paulo levou a garota para uma área com cobertura de celular para, assim, ligar para sua irmã. Paulo rapidamente pegou o
celular e fez uma chamada de vídeo para a irmã. Assim que Manuela atendeu e viu Jasmim, ficou tão surpresa quanto ele. "O que aconteceu? Por que ela está aí?" Manuela perguntou, confusa, enquanto via a expressão assustada da menina na tela. "Eu não sei, ela apareceu aqui agora, toda suada e nervosa, e está fazendo sinais, mas eu não consigo entender," Paulo explicou, tentando manter a calma. Manuela então começou a falar em Libras com Jasmim pela tela do celular. Elas trocaram sinais rápidos enquanto Paulo observava ansioso, sem saber o que estava sendo dito. Após alguns minutos, Manuela
parou, seus olhos arregalados de choque. "Paulo, nós precisamos chamar a polícia agora," ela disse, com um tom de urgência que ele nunca havia ouvido antes. "O que está acontecendo, Manu? O que ela disse?" Paulo perguntou, o coração disparando novamente. Manuela respirou fundo antes de responder. "Jasmim disse que foi a madrasta dela que fez isso com ela. Ela contou que, no primeiro dia, Magda a levou para uma floresta perto da sua casa, onde há um pântano, e a jogou lá. Magda fez isso achando que, como Jasmim não falava, ninguém ouviria os gritos dela." Paulo sentiu um
frio percorrer sua espinha enquanto ouvia as palavras da irmã. Ele não conseguia acreditar no que estava ouvindo. "O quê?" Paulo balbuciou, incrédulo. "Mas como assim? Ela a jogou no pântano?" "Sim, Paulo," Manuela continuou, tentando manter a calma. "Jasmim conseguiu escapar por sorte, e foi assim que ela acabou na sua casa pela primeira vez. Ela estava com medo, então não falou nada quando viu Magda de novo, mas hoje Magda tentou fazer a mesma coisa de novo. Só que dessa vez, Jasmim conseguiu fugir antes que algo pior acontecesse." Paulo olhou para Jasmim, que agora o encarava com
os olhos cheios de lágrimas. Ele sentiu uma mistura de raiva e desespero crescer dentro de si. "Meu Deus, Jasmim!" Ele a abraçou com força novamente, sentindo o corpo trêmulo da menina em seus braços. "Vou ligar para a polícia agora," Manuela disse, já discando o número. Ela explicou a situação e, em questão de minutos, as autoridades estavam a caminho da casa de Paulo. Quando os policiais chegaram, uma policial que sabia Libras foi chamada para conversar com Jasmim. A menina, ainda assustada, relatou toda a história em detalhes, confirmando o que já havia contado a Paulo e Manuela.
A policial escutava com atenção e fazia perguntas cuidadosas para não assustar ainda mais a criança. "Ela foi muito corajosa em contar isso," a policial comentou para Paulo, enquanto Jasmim descansava em um canto da sala. Enquanto isso, uma equipe de policiais foi enviada para procurar ao redor da floresta e do pântano mencionados por Jasmim. Não demorou muito para que eles encontrassem Magda; ela estava perto do pântano, aparentemente tentando se livrar de qualquer evidência que pudesse incriminá-la. Quando os policiais a confrontaram, Magda tentou manter a compostura, mas as mentiras começaram a desmoronar. Ela alegou que a viagem
à Europa era verdadeira, mas as investigações revelaram que era apenas uma desculpa para encobrir o desaparecimento de Jasmim. Sua história não batia com os fatos, e logo, diante das evidências e do depoimento de Jasmim, Magda foi presa. De volta à casa de Paulo, a notícia chegou com um misto de alívio e tristeza. Jasmim, mesmo tão pequena, havia passado por momentos terríveis nas mãos de alguém que deveria cuidar dela. "Ela está segura agora," disse a policial que acompanhava o caso. Magda perdeu a guarda de Jasmim, e ela ficará sob proteção até que uma decisão mais permanente
seja tomada. Paulo olhou para Jasmim, que, mesmo... Depois de tudo o que havia acontecido, parecia aliviada por estar ali ao lado dele. Ele se aproximou dela e, com um sorriso suave, disse: "Você está segura agora, Jasmim. Vamos cuidar de você." A menina, ainda sem palavras, apenas o abraçou novamente, como se soubesse que ao lado dele estava finalmente em paz. Jasmim teve que voltar mais uma vez para o orfanato; ela não tinha mais nenhum parente que pudesse cuidar dela. Paulo, mais uma vez, queria ser quem cuidaria de Jasmim, mas, dessa vez, ele entraria com um pedido
formal de adoção. A decisão não foi fácil, pois o processo era longo e ele sabia que haveria desafios, mas estava determinado. Manuela e Paulo começaram a visitar Jasmim com frequência no orfanato. Todas as vezes que chegavam, Jasmim corria para abraçá-los; seu sorriso iluminava o ambiente. Mas Paulo sabia que ela não estava feliz ali. Cada vez mais, Paulo sentia que precisava fazer algo por ela. Ele queria dar a Jasmim o ambiente estável que ela merecia. Decidido a oferecer o melhor para a garota, Paulo começou a se preparar. Ele vendeu a pequena cabana onde morava, aquela mesma
que um dia fora seu refúgio de solidão, e comprou uma casa perto de onde Manuela morava. Era uma casa maior, com espaço para Jasmim crescer e brincar, e com um quarto especial só para ela, algo que ele planejou com muito cuidado. Enquanto o processo de adoção seguia seu curso, Paulo se dedicou intensamente a aprender Libras. Ele sabia que a comunicação entre eles precisava ser o mais completa possível e não queria que Jasmim se sentisse isolada. Passava horas em aulas online, praticando gestos e sinais, tudo para poder se comunicar de forma que ela entendesse. Semanas se
passaram e o esperado dia finalmente chegou. Paulo estava em casa quando o telefone tocou. Ele atendeu ansioso e, do outro lado da linha, ouviu a voz oficial que trazia a notícia que ele tanto aguardava: "Senhor Paulo, tenho boas notícias: o processo de adoção de Jasmim foi aprovado." Por um momento, ele ficou em silêncio, processando as palavras. Quando a notícia finalmente se instalou, Paulo pulou do sofá, soltando um grito de alegria. Ele mal podia acreditar; sua emoção era visível e ele imediatamente ligou para Manuela. "Manu, consegui! A adoção foi aprovada!" "Isso é maravilhoso, Paulo! Estou tão
feliz por vocês dois," Manuela respondeu, também emocionada. Não demorou muito para que eles fossem juntos buscar Jasmim no orfanato. Ao chegarem lá, Jasmim correu para os braços de Paulo e Manuela assim que os viu. O abraço que deram foi longo e cheio de significado. A menina, que tantas vezes se sentira sozinha e insegura, agora tinha uma nova chance de ter uma família. Paulo, com um sorriso enorme no rosto, começou a fazer alguns sinais que havia aprendido, dizendo para Jasmim: "Agora você vai para casa comigo, para sempre." Os olhos de Jasmim brilharam de emoção e ela
gesticulou de volta, dizendo que estava muito feliz. Paulo se emocionou ao ver como os sinais fluíam entre eles e sentiu que todo o esforço tinha valido a pena; ele estava realmente conseguindo se conectar com ela de uma forma profunda. Ao chegarem na nova casa, Jasmim olhou ao redor, encantada. Paulo a levou até o quarto que ele havia preparado com tanto carinho; o espaço era decorado com cores alegres, brinquedos e tudo o que ele imaginava que ela gostaria. "Este é o seu quarto agora," ele disse, em sinais, ainda devagar, mas com um sorriso cheio de orgulho.
Jasmim correu para a cama e pulou nela, rindo. A casa nova era muito mais do que um lugar para morar; era o símbolo de um novo começo para os dois. Desde o primeiro momento, não houve necessidade de adaptação; ambos já se comportavam como pai e filha. Jasmim, antes tão retraída e quieta, estava cada vez mais à vontade, expressando-se mais livremente. Dias depois, enquanto estavam aproveitando a tranquilidade da nova rotina, Paulo recebeu uma visita inesperada. Um advogado sério e formal bateu à sua porta. Paulo o convidou para entrar, sem saber o que esperar. "Senhor Paulo, eu
venho em nome do falecido pai de Jasmim," o advogado começou. Enquanto Paulo o ouvia atentamente, o advogado explicou que o pai de Jasmim era um homem de muitas posses. Ele deixou uma herança considerável, que incluía contas bancárias, propriedades e a mansão onde Jasmim morava com sua madrasta. "Agora que o senhor é oficialmente o pai adotivo de Jasmim, a responsabilidade por todo esse patrimônio é sua." Paulo olhou para o advogado perplexo; ele nunca havia pensado em si mesmo como alguém que gerenciaria tanto dinheiro e propriedades. O motivo da ganância de Magda agora fazia todo o sentido.
"Eu..." Paulo começou, ainda atordoado. "Eu não sei o que fazer com tudo isso." O advogado entregou os documentos para que Paulo assinasse e, após algumas orientações sobre as questões legais, se despediu. Paulo ficou parado por alguns minutos, processando a magnitude da situação. Agora, ele era o responsável por todo o patrimônio de Jasmim. Mais tarde, ele chamou Jasmim para conversar e fez alguns sinais para ela, perguntando: "Você gostaria de morar na mansão ou prefere ficar aqui?" Jasmim pensou por um momento, seus pequenos dedos gesticulando com precisão, e disse que preferia ficar na casa onde estavam. A
mansão não trazia boas lembranças para ela. Paulo sorriu, sentindo-se aliviado com a resposta. "Então é aqui que vamos ficar," ele disse, fazendo questão de que ela soubesse que a escolha dela era a mais importante. Naquela noite, Paulo contou a novidade para Manuela. Ele falou sobre a herança e disse que não pretendia gastar nada além do necessário para o crescimento e o bem-estar de Jasmim. "Vou usar esse dinheiro para a educação dela, para saúde, lazer, mas o resto, o que não for essencial, vai ficar guardado. Quando ela for adulta e responsável o suficiente, vou devolver tudo
para ela. Esse dinheiro é dela, não meu." Manuela, sempre sábia e sensata, concordou. Você está fazendo o que é certo, Paulo, e Jasmim sabe que o mais importante é o que você está oferecendo agora: amor e segurança. O dinheiro não vai mudar isso. Paulo assentiu, sentindo que, apesar de tudo, estava no caminho certo. Ele havia dado a Jasmim um lar, mas, acima de tudo, estava construindo uma vida nova para ambos. Por indicação da assistente social, Jasmim precisaria de um atendimento psicológico; segundo a assistente, ela havia passado por muita coisa e seria importante que um profissional
a acompanhasse nesse processo de recuperação. Paulo concordou, sabendo que os traumas da menina não poderiam ser ignorados. Ele fez uma pesquisa minuciosa e encontrou uma psicóloga chamada Bianca, que não apenas era especialista em traumas infantis, mas também fluente em Libras, o que tornava a escolha ideal para o caso de Jasmim. A primeira consulta foi tranquila. Bianca, uma mulher de voz suave e presença acolhedora, recebeu Jasmim com um sorriso caloroso. A menina, apesar de tímida no início, se sentiu à vontade quando percebeu que Bianca se comunicava perfeitamente em sua língua. Paulo ficou impressionado com a maneira
como a psicóloga abordou a situação, tratando Jasmim com paciência e sensibilidade. Após algumas sessões, Bianca começou a compartilhar os primeiros progressos. "Jasmim é uma garota muito forte", disse ela a Paulo em uma conversa após uma sessão. "Ela carrega muitos traumas, principalmente em relação à madrasta, mas com o tempo acredita que conseguiremos ajudar a curar essas feridas." Paulo sentiu uma mistura de alívio e esperança; ele sabia que o caminho seria longo, mas confiava que Jasmim estava em boas mãos. Poucos dias depois, Manuela, sempre atenta às necessidades do irmão, sugeriu algo que pegou Paulo de surpresa: "Você
já pensou em fazer terapia também?" Paulo perguntou a ela durante uma de suas visitas à nova casa dele. "Eu não, eu tô bem. Quem precisa disso é a Jasmim", Paulo respondeu, sem pensar duas vezes. "Não estou dizendo que você está mal, mas você evita pessoas há muito tempo, e todos nós sabemos o motivo: tudo o que aconteceu com você no passado. Talvez seja a hora de trabalhar esses traumas também." Manuela o observou com carinho, mas firmeza. Paulo franziu o cenho, um pouco desconfortável com a sugestão. "Eu estou bem, Manu, já faz muito tempo que isso
aconteceu." Manuela suspirou, mas insistiu: "Eu sei, Paulo, mas isso não significa que você superou. Você comprou uma casa no meio do nada, se isolou de todo mundo. Agora que Jasmim está na sua vida, talvez seja a hora de lidar com isso. Ela merece ter um pai que esteja bem consigo mesmo." As palavras de Manuela o atingiram. Ele nunca havia considerado como seus próprios traumas poderiam afetar sua capacidade de ser o melhor pai para Jasmim. Relutante, mas com o peso das palavras de sua irmã na cabeça, Paulo decidiu que talvez valesse a pena tentar. Dias depois,
ele marcou uma consulta com Bianca para si mesmo. Ao chegar no consultório, sentiu uma estranha sensação de timidez. Ele não estava acostumado a abrir sua vida para ninguém, muito menos para uma estranha, mesmo que fosse a psicóloga que já estava tratando de Jasmim. Ainda assim, ele sentou-se e esperou enquanto Bianca o recebia com a mesma calma e profissionalismo que ele havia visto nas sessões de Jasmim. "Oi, Paulo", disse Bianca, com um sorriso acolhedor. "Sinto-me honrada por você estar aqui hoje. Sei que não é fácil dar esse passo." Paulo riu, mas era uma risada nervosa. Ele
olhou ao redor da sala, tentando encontrar algo para desviar o olhar. "Eu não sei por onde começar", ele confessou. "Não precisa se preocupar com isso agora. Vamos devagar. Fale o que vier à mente e, aos poucos, tudo vai fazer sentido", Bianca disse, mantendo o tom calmo. Com o tempo, Paulo começou a falar. De início foram poucas palavras. Ele contou sobre seu casamento com uma mulher que ele namorava desde os 18 anos, como ele estava feliz quando ela engravidou, pensando que finalmente sua vida estava tomando o rumo que sempre sonhou. "Mas então tudo desmoronou quando eu
descobri ligações dela com outro homem. Para piorar, o filho que ela estava esperando não era meu", disse Paulo, sua voz mais baixa e trêmula. Ele evitava olhar diretamente para Bianca, mas sabia que precisava continuar. "Isso foi devastador. Eu não conseguia lidar com a traição e, no meio do caos, acabamos nos divorciando. Foi tudo muito confuso e eu simplesmente parei de gostar de pessoas." "Isso faz muito sentido, Paulo. O que você passou é extremamente doloroso", e como você lidou com isso? Bianca perguntou em um tom que transmitia compreensão, sem julgamento. "Eu me isolei. Comprei uma casa
longe de tudo e de todos, me afastei do mundo e achei que isso era o melhor para mim." Bianca assentiu lentamente. "Nossa resposta ao trauma é nos proteger, mas o isolamento, apesar de nos dar uma sensação de segurança, também pode nos afastar de experiências positivas. E agora, com Jasmim, você está abrindo uma nova parte da sua vida." "Sim, eu sei", Paulo respondeu. "Ela me fez perceber que eu não quero mais viver assim. Ela trouxe algo de volta, uma sensação que eu achava que tinha perdido, mas ao mesmo tempo é assustador." Bianca sorriu. "O medo é
natural, Paulo, mas é um bom sinal. Significa que você está começando a se conectar novamente. Vamos trabalhar isso e, aos poucos, você vai se sentir mais confortável em viver essas novas experiências." Um ano se passou desde aquela primeira sessão. Tanto Jasmim quanto Paulo continuaram sendo atendidos por Bianca e a mudança em ambos era visível. Jasmim, que antes vivia assombrada pelos pesadelos de sua madrasta, agora dormia tranquila, sem aqueles medos que a perseguiam. Seus progressos na terapia foram notáveis e ela demonstrava cada vez mais confiança, tanto em si mesma quanto em sua nova vida ao lado
de Paulo. Paulo, por sua vez, também havia mudado; ele se tornara... Mais sociável, mais aberto a novas experiências e a interações com outras pessoas, ainda tinha seus momentos de introspecção, mas o peso do passado não o sufocava mais. Ele se esforçava todos os dias para ser uma pessoa melhor, não apenas por si mesmo, mas para ser o exemplo que Jasmim merecia. Durante uma das últimas sessões, Paulo sorriu para Bianca e disse: "Eu não imaginava que tudo isso pudesse acontecer. Nunca pensei que pudesse me sentir assim de novo, tão em paz." Bianca retribuiu o sorriso: "Vocês
dois fizeram um trabalho incrível. Agora é continuar aproveitando essa nova fase." Paulo olhou para Jasmim, que estava ao seu lado, ocupada brincando com um livro de sinais, e sentiu que finalmente estava no lugar certo. Paulo entrou na sala de terapia como sempre fazia, mas dessa vez algo estava diferente. Bianca estava sentada em sua poltrona habitual, mas sua expressão era séria, distante. Paulo sentiu o clima tenso e, antes mesmo que ele pudesse perguntar o que estava acontecendo, ela começou a falar: "Paulo, eu preciso te dizer algo importante." Começou Bianca, sua voz calma, mas carregada de peso.
"Eu não poderei mais continuar te atendendo, nem a Jasmim." A notícia pegou Paulo de surpresa, e ele sentiu um nó se formar no estômago. "O quê?" ele balbuciou, sem entender. "O que aconteceu?" Bianca desviou o olhar por um momento, parecendo procurar as palavras certas. Ela respirou fundo antes de continuar: "Não posso entrar em muitos detalhes, mas simplesmente não posso mais. Vou te indicar outro psicólogo, alguém que é excelente e que poderá dar continuidade ao tratamento, tanto para você quanto para Jasmim." Paulo continuava sem entender. "Bianca, isso não faz sentido! Está tudo indo bem, Jasmim está
progredindo, eu estou progredindo. Por que você está fazendo isso?" Ela sorriu levemente, um sorriso triste, e balançou a cabeça. "Às vezes, Paulo, é necessário parar por motivos que vão além do que podemos discutir aqui. Eu preciso que você confie que essa é a melhor decisão." Ele ainda estava atônito, mas no fundo sabia que não poderia forçar uma resposta. Paulo se viu sem opções, então concordou, mesmo sem realmente entender o porquê de tudo aquilo. Aceitou a indicação de Bianca e se despediu, sentindo um peso no peito que ele não conseguia explicar. O novo psicólogo se mostrou
de fato muito competente; ele se conectou bem tanto com Paulo quanto com Jasmim, e o tratamento seguiu seu curso. Mas a dúvida permanecia. Sempre que Paulo saía de uma sessão, ele se pegava pensando em Bianca. Por que ela teria parado de tratá-los assim, de forma tão repentina? Um dia, durante uma sessão com o novo psicólogo, Paulo resolveu perguntar: "Doutor, é normal um psicólogo encerrar a terapia sem dar muitos detalhes?" Paulo perguntou, tentando soar casual, mas sabendo que aquilo o incomodava mais do que ele queria admitir. O psicólogo olhou para ele, ponderando a resposta antes de
falar. "Sim, pode acontecer, mas geralmente há motivos específicos. Um bom profissional sabe quando é necessário transferir o caso para outro. Pode ser por várias razões." Paulo franziu o cenho, intrigado. "Que tipos de motivos?" ele insistiu. O psicólogo hesitou por um segundo antes de responder com cuidado: "Bem, às vezes o psicólogo pode desenvolver algum tipo de sentimento pelo cliente, seja amizade ou algo mais. Quando isso acontece, o mais ético é encerrar o tratamento e sugerir outro profissional para que a relação terapêutica não seja comprometida." As palavras ecoaram na cabeça de Paulo. Ele saiu da sessão pensativo,
sua mente correndo a mil. Será que Bianca havia se afastado porque tinha desenvolvido sentimentos por ele? A ideia o surpreendia e, ao mesmo tempo, o fazia refletir sobre os próprios sentimentos. Talvez, inconscientemente, ele também estivesse desenvolvendo algo por ela, mas naquele momento achou que jamais saberia a verdade. Dois anos passaram, Jasmim agora tinha 8 anos e era uma menina cheia de vida e alegria. Os traumas que um dia a atormentaram pareciam cada vez mais distantes. Ela corria pelo parque de diversões, gesticulando em sinais rápidos e animados, enquanto Paulo, Manuela e Renato a observavam de longe.
Manuela, com uma enorme barriga de 8 meses de gestação, descansava em um banco, enquanto Renato não tirava os olhos dela, atento a cada movimento. "Eu vou ter primos para brincar!" Jasmim sinalizou, entusiasmada, rindo enquanto corria de volta para Paulo. Paulo sorriu, vendo como a vida da menina havia mudado tanto em tão pouco tempo. Ele então pegou sua mão e disse: "Vamos comprar uma maçã do amor!" Os olhos de Jasmim brilharam e ela assentiu rapidamente. Eles se dirigiram à barraca mais próxima, onde Paulo fez o pedido. Enquanto esperava, ele olhou de relance para o lado e,
para sua surpresa, viu alguém conhecido: Bianca estava na mesma barraca, comprando também uma maçã do amor. Ela estava acompanhada por uma amiga, mas ambas pararam quando se viram. "Bianca!" Paulo disse, surpreso, quase como um reflexo. "Paulo," ela respondeu, tão surpresa quanto ele. Houve um silêncio tímido entre os dois, até que a amiga de Bianca, percebendo o clima, deu um sorriso educado e se afastou, deixando os dois sozinhos. Jasmim, percebendo a situação, riu e voltou correndo para perto de Manuela, também dando espaço para que Paulo e Bianca conversassem. "Como você está?" perguntou Bianca, com um sorriso
que misturava nervosismo e gentileza. "Estou bem, e você?" Paulo respondeu, meio sem jeito, mas sentindo uma leveza ao reencontrá-la. "Estou bem também." Ela fez uma pausa, como se estivesse pensando em como continuar a conversa. "E parece que ela está ótima?" "Sim, ela está muito feliz. Mudou bastante desde aquela época." Paulo olhou para Bianca, sentindo o peso do tempo que havia passado desde que eles se viram pela última vez. Eles conversaram por mais alguns minutos, trocando histórias superficiais sobre os últimos dois anos, até que Bianca finalmente não conseguiu mais segurar o que queria dizer. "Paulo, sobre
o que aconteceu quando eu interrompi as..." Sessões hesitou, olhando nos olhos dele. Eu terminei a terapia porque eu estava começando a gostar de você, e isso não era certo, não era ético eu continuar te tratando com esses sentimentos; por isso, me afastei. Paulo ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo as palavras dela. Ele sempre se perguntou se esse era o motivo, mas ouvir aquilo diretamente de Bianca o deixou sem reação. "Por um momento, eu entendo," ele começou, ainda processando. "Na verdade, eu também estava gostando de você, mas achei que era só por causa da forma
como você me ajudou. Eu fiquei confuso com tudo isso." Bianca sorriu levemente, tentando manter a calma. "Dois anos se passaram, e eu ainda sinto a mesma coisa." Paulo continuou: "Acho que isso diz algo." Bianca tentou não demonstrar tanta felicidade, mas era visível o quanto aquelas palavras a tocaram. "Fico feliz em ouvir isso," disse ela, com os olhos brilhando. Eles conversaram um pouco mais, agora com mais intimidade. Enquanto isso, Manuela, Renato e Jasmim, que estavam um pouco afastados, observavam de longe. Todos sorriram, percebendo o que estava acontecendo entre Paulo e Bianca. "Acho que um romance está
começando ali," Manuela comentou, com um sorriso travesso. Paulo então olhou para Bianca e, com um leve nervosismo na voz, a convidou: "Você quer sair comigo algum dia? Quem sabe tomar um café ou qualquer coisa?" Bianca não escondeu sua felicidade. "Dessa vez, eu adoraria, Paulo." E a partir daquele dia, algo novo começou a florecer entre eles, e, embora nenhum dos dois soubesse, aquele reencontro marcaria o início de algo que os tornaria inseparáveis. [Música] C [Música]