Ela foi abandonada no altar por dinheiro e para salvar a empresa da família precisava se casar naquele mesmo dia. O homem que a ajudou a levantar nas ruas parecia um mendigo, mas guardava um segredo que mudaria tudo. Sofia olhava pela janela da sala de preparação da igreja, enquanto as convidadas ao seu redor trocavam olhares preocupados. O relógio marcava duas horas de atraso e nem sinal de Rodrigo. O vestido branco pesava em seu corpo como se fosse feito de concreto, não de renda e seda. Sua maquiagem perfeita horas antes, começava a borrar com o suor nervoso
que escorria pelo seu rosto. Ninguém tinha coragem de dizer o óbvio. O noivo não viria. Quando o celular vibrou em cima da mesa, Sofia praticamente se jogou sobre ele. A mensagem era curta e destruiu seu mundo em poucas palavras. Não posso fazer isso. Sinto muito. Ela releu a mensagem 10, 20 vezes, como se as palavras pudessem mudar de significado. As mulheres ao redor ficaram em silêncio absoluto. O som dos soluços de Sofia era a única coisa que se ouvia naquela sala decorada para ser o começo da felicidade, não o testemunho do seu coração partido. Minha
filha, dona Carmen, sua avó de 78 anos, aproximou-se com passos lentos, apoiada na bengala de madeira escura que pertencera ao falecido marido. Seus olhos cansados estavam marejados, não de tristeza, mas de preocupação. Precisamos conversar. Sofia foi levada para uma sala lateral, longe dos olhares curiosos e dos coxichos que já começavam a se espalhar entre os convidados. Dona Carmen fechou a porta e sentou-se ao lado da neta. Suas mãos enrugadas seguravam com força as mãos trêmulas de Sofia, seu avô, antes de partir. A voz da senhora falhou por um momento. Ele estabeleceu uma condição no testamento.
A empresa da família só continuará sobrole se você se casar até o dia do aniversário dele. E esse dia é hoje. Sofia enxugou as lágrimas com força, como se pudesse apagar também aquelas palavras. O quê? Isso não faz sentido. Por que vovô faria isso? Seu avô era um homem de tradições. Ele acreditava que uma empresa familiar precisava de uma família forte para dirigi-la. Um casal, como ele eu, fomos por 50 anos. A velha senhora suspirou profundamente. Se você não se casar até a meia-noite de hoje, o controle da empresa passa para o conselho diretor, onde
seu primo Ricardo tem maioria. Foi então que tudo fez sentido. O celular de Sofia vibrou novamente, dessa vez com uma mensagem do primo. Soube que houve um imprevisto no casamento. Não se preocupe. Cuidarei da empresa a partir de amanhã. Sofia sentiu a raiva substituir a tristeza. Levantou-se de um salto, fazendo o vestido branco rodopear ao seu redor. Ele comprou o Rodrigo. Tenho certeza. Ricardo ofereceu dinheiro para ele me abandonar. Naquele momento, uma das madrinhas abriu a porta sem bater. Seu rosto estava pálido. Sofia, Rodrigo está lá fora dando entrevistas. está dizendo que desistiu porque descobriu
irregularidades na empresa da sua família. O mundo de Sofia desabou completamente. Sem pensar duas vezes, ela pegou a pequena bolsa branca que combinava com seu vestido e correu para a porta lateral da igreja. Não queria ver ninguém, não queria explicações, não conseguiria enfrentar os olhares de pena, as perguntas, os flashes das câmeras que certamente já aguardavam do lado de fora. A chuva fina que caía naquela tarde não era forte o suficiente para encharcá-la, mas o bastante para grudar o tecido delicado do vestido ao seu corpo enquanto ela corria sem rumo pelas ruas. O vé havia
ficado para trás em algum lugar. perdido como seus sonhos daquele dia. Os saltos altos a faziam tropeçar ocasionalmente, mas ela não parava. Cada passo a levava para mais longe da humilhação, mas também para mais perto do desastre financeiro que se aproximava. Sofia correu até a praça central da cidade, onde finalmente seus joelhos cederam. Seus saltos ficaram presos entre as pedras do calçamento antigo e ela caiu de frente, rasgando a parte inferior do vestido e arranhando as palmas das mãos no processo. Foi quando seus olhos, embaçados pelas lágrimas, focaram em um par de sapatos surrados à
sua frente. "Você está bem, moça?" A voz masculina soou genuinamente preocupada. Sofia levantou o olhar e viu um homem de aparência simples, barba por fazer, roupas gastas e um olhar que não combinava com todo o resto. Havia uma dignidade naqueles olhos castanhos, uma inteligência que destava da aparência de alguém que provavelmente vivia nas ruas. Estou Ela tentou se levantar, mas o vestido rasgado dificultava seus movimentos. O homem estendeu a mão e, ao contrário do que ela esperava, ele não tinha aquele cheiro característico de quem não toma banho. Na verdade, apesar das roupas gastas, ele parecia
estranhamente limpo. De seu bolso, tirou um lenço branco impecavelmente dobrado e ofereceu a ela um vestido de noiva não deveria estar jogado na praça. Ele comentou enquanto ajudava Sofia a se levantar. Acho que existe uma história difícil por trás disso. Talvez fosse o desespero, talvez a necessidade de desabafar com alguém que não a julgaria. Afinal, o que um aparente morador de rua poderia pensar dela? Mas Sofia sentiu-se à vontade para contar toda a sua situação. Ali mesmo, sentada em um banco da praça, ao lado daquele estranho que se apresentou apenas como Miguel, ela narrou o
abandono, a traição do noivo, o ultimato do testamento e a iminente perda da empresa familiar. Miguel ouviu em silêncio, a sentindo ocasionalmente, mas sem interromper. Quando ela terminou, já com a voz rouca de tanto chorar, ele falou com uma clareza que a surpreendeu. Então, você precisa se casar hoje com qualquer pessoa para manter a empresa da sua família. Sim, mas não é tão simples. Quem aceitaria se casar comigo nessas condições? Sofia soltou uma risada amarga. Hã? E quem eu aceitaria como marido, mesmo que temporário? Miguel ficou em silêncio por alguns segundos, como se calculasse algo
importante em sua mente. Então, com uma naturalidade que deixou Sofia atônita, ele fez a proposta mais absurda e inesperada que ela já ouvira. "Eu me caso com você." Sofia riu, achando que era uma piada para melhorar seu humor, mas o rosto de Miguel permaneceu sério. Estou falando sério. Você precisa de um marido hoje. Eu posso ser essa pessoa. Depois, quando tudo estiver resolvido, nos divorciamos e cada um segue seu caminho. Você é um, Desculpe, mas você parece um morador de rua. Ele completou sem se ofender. E isso importa para o papel que vou assinar? Continuo
sendo um cidadão com documentos em dia. Sofia o encarou, tentando processar a loucura daquela situação. Casar-se com um desconhecido que encontrou na rua, um homem que, pela aparência, não tinha nem onde morar. Era uma ideia absurda, desesperada, quase insana. Mas no fundo não era exatamente o que ela precisava. Um casamento de fachada, puramente burocrático, para cumprir a cláusula do testamento. Por que você faria isso por mim? Nem me conhece. Miguel olhou para o horizonte por um momento antes de responder: "Digamos que eu tenho minhas razões e não se preocupe. Não vou pedir nada em troca
além de um lugar para dormir por algumas semanas até eu conseguir me reorganizar." Sofia sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Havia algo estranho naquela proposta. Naquele homem, algo não se encaixava, mas o relógio em sua mente não parava de avançar. Cada minuto a aproximava mais do prazo final. Se eu aceitar essa loucura, como faríamos? A igreja está cheia de pessoas. O padre já foi informado do cancelamento e eu não posso simplesmente aparecer com bem com você, sem dar explicações. Não precisa ser na igreja. Um cartório, um juiz de paz, qualquer cerimônia legal é suficiente para
o testamento, não é? A mente de Sofia trabalhava acelerada, pesando aquela insanidade contra a certeza da perda da empresa familiar. De um lado, um casamento falso com um estranho das ruas. do outro ver todo o trabalho de gerações ser entregue nas mãos inescrupulosas do primo que havia arruinado seu verdadeiro casamento. "Minha avó vai ter um ataque cardíaco", murmurou Sofia, já considerando a possibilidade. "Mas talvez, talvez possamos fazer isso no jardim da casa dela. Conheço um padre que deve entender a situação se eu explicar". Miguel a sentiu como se aquilo fosse a coisa mais normal do
mundo. Sofia o encarou novamente, tentando encontrar sinais de loucura, de perigo, de qualquer coisa que indicasse que aquela decisão seria o pior erro de sua vida. Mas tudo o que viu foi um homem calmo, de olhar firme, que parecia saber exatamente o que estava fazendo, ao contrário dela. Se vamos fazer isso, Sofia respirou fundo, mal acreditando nas palavras que saíam de sua boca. Você precisa pelo menos tomar um banho e trocar de roupa. Não posso apresentar você assim para minha família. Por um instante fugaz, Sofia pensou ter visto um sorriso enigmático nos lábios de Miguel,
mas foi tão rápido que ela decidiu que era apenas sua imaginação desesperada, buscando sinais de normalidade naquela situação absurda. Claro, ele respondeu simplesmente, eu entendo perfeitamente. E assim, com o vestido de noiva rasgado e a maquiagem borrada, Sofia levantou-se do banco de praça e estendeu a mão para o homem que em poucas horas se tornaria seu marido. No horizonte, nuvens escuras anunciavam uma tempestade maior, como um presságio do caos que aquela decisão traria para sua vida. Mas para Sofia, naquele momento, qualquer tempestade parecia menor que a humilhação e a derrota que havia sofrido. Miguel pegou
sua mão com uma delicadeza que não combinava com sua aparência e juntos caminharam para fora da praça, formando a cena mais inusitada que aquela cidade já testemunha. Uma noiva de branco, seu vestido arrastando pelo chão, ao lado de um aparente morador de rua. O que ninguém poderia imaginar era que aquela estranha dupla estava prestes a virar o jogo de uma disputa familiar que se arrastava há anos nos bastidores daquela pequena cidade. Ao deixarem a praça, Sofia não notou o carro escuro estacionado na esquina, nem o motorista de terno, que observava atentamente cada passo daquele estranho
casal. Tampouco viu quando o motorista pegou o telefone e discou rapidamente, dizendo apenas: "Senhor, ele a encontrou. O plano está em andamento. A casa da avó de Sofia ficava no bairro antigo da cidade, uma construção tradicional, com jardim bem cuidado e uma varanda que testemunha gerações da família crescendo, casando e construindo suas vidas. Naquela tarde, porém, a varanda seria palco do momento mais inusitado da história daquela família. Sofia fez Miguel entrar pelos fundos. Não queria chocar sua avó antes de pelo menos explicar a situação. Pediu que ele esperasse na pequena área de serviço enquanto procurava
roupas do falecido avô que poderiam servir nele. "Minha filha, é você?" A voz de dona Carmen veio da sala quando Sofia entrou na casa. A idosa estava sentada em sua poltrona preferida, com um terço entre os dedos, o rosto marcado pela preocupação. Ao ver a neta com o vestido rasgado e sem o noivo, seus olhos marejaram. Ó meu Deus, vovó, eu sei que parece loucura, mas preciso que a senhora me escute. Sofia ajoelhou-se ao lado da avó, segurando suas mãos. Rodrigo foi comprado por Ricardo. Ele me abandonou no altar por dinheiro. A expressão de dona
Carmen endureceu. Eu sabia que aquele rapaz não prestava. Nunca olhou nos meus olhos quando falava comigo. O problema é o testamento do vovô. Precisamos de uma solução. Sofia respirou fundo antes de continuar e eu encontrei uma. Foi então que Sofia contou sobre Miguel. Com cada palavra, via o rosto da avó transformar-se de preocupação para incredulidade, depois para horror e, finalmente, para uma resignação cansada. Você quer trazer um morador de rua para dentro desta casa para se casar com ele? Sofia, você perdeu a razão. Dona Carmen tentou levantar-se, mas suas pernas fracas atraíram. Não temos escolha,
vovó. É isso. Ou entregar tudo para Ricardo. Olha, vai ser temporário. Assim que a empresa estiver segura, nós nos divorciamos. E a empresa que seu avô construiu com tanto sacrifício, a voz da idosa falhou. Ele nunca imaginou que chegaríamos a esse ponto. Sofia pegou o celular e mostrou a mensagem de Ricardo. Ele planejou tudo, pagou Rodrigo para me humilhar e agora está esperando à meia-noite para tomar o controle de tudo. Dona Carmen ficou em silêncio por longos minutos, seu olhar perdido nas fotos antigas sobre a mesa lateral. Traga esse homem aqui. Quero vê-lo com meus
próprios olhos. Sofia hesitou. Ele precisa de um banho e roupas limpas primeiro. Não, traga-o como está. Preciso ver quem é esse homem que você quer trazer para nossa família, mesmo que temporariamente. Elutante, Sofia foi até a área de serviço. Miguel estava exatamente onde ela o deixara, observando com interesse as fotos de família penduradas na parede. Quando a viu, endireitou a postura. Minha avó quer conhecer você do jeito que está. Miguel assentiu e a seguiu em silêncio. Na sala, dona Carmen ergueu os olhos para avaliar o estranho que sua neta trouxera. Seu olhar crítico percorreu cada
detalhe, das roupas gastas ao cabelo desgrenhado da barba por fazer as mãos, que Sofia notou naquele momento, não tinham calos como seria de se esperar de alguém que vivia nas ruas. "Como se chama, rapaz?" A voz da idosa era firme, autoritária. Miguel, ele respondeu simplesmente, Miguel, de quê? Houve uma breve hesitação. Apenas Miguel, senhora. Dona Carmen bufou. Nesta família, todos têm sobrenome e história. Você tem documentos, pelo menos? Sim, senhora. Ele retirou do bolso interno do casaco gasto uma carteira surpreendentemente bem conservada e mostrou sua identidade. Sofia tentou espiar, curiosa para conhecer o sobrenome daquele
estranho, mas ele guardou o documento rápido demais. E por que você aceitaria se casar com minha neta? O que ganha com isso? Miguel olhou diretamente nos olhos da idosa, sem desviar ou titubear. Sua neta me ofereceu um teto temporário. Para alguém na minha situação atual, isso é valioso. E depois vai exigir dinheiro para o divórcio, vai ameaçar nossa reputação? Vai, vovó? Sofia interrompeu constrangida. Não, Sofia, estas perguntas precisam ser feitas. A avó voltou-se novamente para Miguel. Nossa empresa vale milhões, o que me garante que você não é parte de algum plano para nos estorquir. Para
surpresa das duas mulheres, Miguel sorriu levemente. Dona Carmen, se me permite usar seu nome, eu entendo sua preocupação. Mas se eu quisesse dinheiro, não seria mais fácil aceitar uma proposta de Ricardo, como fez o ex-noivo da sua neta? A menção ao nome do primo fez dona Carmen franzir o senho. Como você sabe sobre Ricardo? Sofia me contou sobre a situação. Ele respondeu com naturalidade. Então, para completo espanto de ambas, acrescentou. Além disso, a tecelagem Monteiro vem perdendo o mercado para importados chineses nos últimos 3 anos. Não seria o melhor momento para uma extorção, não acha?
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Sofia olhava para Miguel boquerta. Como um homem que vivia nas ruas sabia o nome da empresa de sua família. Como ele estava ciente da situação do mercado. Como você sabe disso? A voz de dona Carmen saiu quase num sussurro. Miguel pareceu perceber que falara demais. Leio jornais que encontro nas ruas. Sua empresa é importante na região. A explicação era plausível, mas não convenceu totalmente nenhuma das duas. No entanto, o relógio na parede mostrava que já passava das 4 da tarde. O tempo estava correndo contra eles. Vovó, sei que
é loucura, mas loucura? A idosa riu sem humor. Meu marido construiu essa empresa do nada. Lutou contra gigantes do setor. Sobreviveu a três crises econômicas. nunca deixou um funcionário sem salário e agora tudo isso pode ir parar nas mãos daquele Ela não completou o pensamento, respirando fundo para se acalmar. Vamos fazer isso. Sofia não conseguiu esconder a surpresa. A senhora concorda? Não, eu não concordo, mas não vejo outra saída. Dona Carmen virou-se para Miguel. Primeiro você vai tomar um banho, depois vamos conversar sobre as condições desse arranjo. Enquanto Miguel era levado para o banheiro pela
empregada da casa, que olhava para ele como se fosse um alienígena, dona Carmen chamou o restante da família para uma reunião de emergência. Em menos de uma hora, a sala estava cheia de tios, primos e até alguns amigos íntimos que ainda não tinham ido embora após o desastre na igreja. A notícia de que Sofia se casaria com um desconhecido da rua causou exatamente a reação esperada: negação, choque, tentativas de dissuasão e, finalmente, resignação quando entenderam que não havia alternativa viável. O primo Ricardo, conspicuamente ausente, mandara uma mensagem dizendo que respeitava a decisão de Sofia, mas
lamentava sua instabilidade emocional neste momento difícil. "Ele já está comemorando a vitória", murmurou o tio Roberto, irmão do falecido avô, após ler a mensagem. "Sempre soube que aquele menino seria um problema. A questão agora é conseguir um padre que aceite realizar essa cerimônia hoje", disse Sofia, olhando para o relógio pela centésima vez. Nesse momento, Miguel reapareceu na sala. A transformação era notável. barbeado, com os cabelos ainda úmidos do banho e vestindo um terno antigo do avô de Sofia, que surpreendentemente servia perfeitamente nele, parecia uma pessoa completamente diferente. Não fosse pelos sapatos gastos que ainda usava,
os do avô eram pequenos demais para seus pés. Ninguém diria que horas antes ele estava sentado em um banco de praça, aparentando ser um morador de rua. O silêncio que se instalou na sala foi ensurdecedor. Miguel mantinha uma postura ereta, quase aristocrática, que não combinava em nada com a história que Sofia contara. Seus olhos inteligentes percorreram os rostos de cada familiar presente, como se os estudasse. "Esse é Miguel", Sofia apresentou-o subitamente insegura. Quem era aquele homem afinal? Padre José aceitou vir aqui, anunciou uma das tias, desligando o telefone. Ele chegará em meia hora. Dona Carmen,
que observava Miguel atentamente desde sua transformação, fez um gesto para que ele se aproximasse. Quando ele sentou-se ao lado dela, a idosa falou em voz baixa: "Você não é quem diz ser rapaz. Não sei qual é seu jogo, mas se machucar minha neta de qualquer forma, saiba que mesmo com essa idade eu ainda tenho influência suficiente para fazer sua vida um inferno. Miguel sustentou o olhar da senhora sem demonstrar intimidação. Compreendo sua preocupação, dona Carmen, mas garanto que não tenho intenção de causar mal à sua família. Isso nós veremos. A idosa recostou-se na poltrona, exausta
pelos eventos do dia. Do lado de fora da casa, os preparativos para uma cerimônia improvisada começavam a tomar forma no jardim. Cadeiras eram dispostas, flores da própria horta eram arranjadas em pequenos vasos e uma mesa com toalha branca serviria de altar. Sofia observa tudo da janela, ainda usando o vestido de noiva rasgado. Não havia tempo para trocá-lo. Seu coração batia acelerado, não pela emoção de um casamento, mas pelo medo de estar cometendo o maior erro de sua vida. "Posso falar com você um minuto?" A voz de Miguel a sobressaltou. Ele estava parado na porta com
uma expressão séria no rosto. Claro. Sofia o levou para a biblioteca, o único cômodo vazio naquele momento. Antes de seguirmos com isso, ele começou assim que fechou a porta atrás de si. Preciso ter certeza de que você entende as consequências. Este será um casamento legal. Você estará legalmente ligada a mim. Tem certeza de que quer seguir com isso? Sofia o encarou confusa. Foi você quem se ofereceu para me ajudar. Está tendo dúvidas agora? Não estou tendo dúvidas. Estou dando a você uma última chance de reconsiderar. Ele se aproximou, ficando a apenas um passo de distância.
De perto, Sofia podia sentir um leve perfume que certamente não era do sabonete da casa. Uma vez que assinarmos aqueles papéis, não haverá volta fácil. Por que você está fazendo isso? Sofia perguntou seus olhos fixos nos dele. A verdade, por favor. Miguel sustentou seu olhar por um longo momento. Digamos que eu tenho minhas razões para estar aqui hoje. A resposta enigmática só aumentou as dúvidas de Sofia, mas o som da campainha, anunciando a chegada do padre interrompeu a conversa. Era a hora da decisão final. O jardim parecia surreal com aquele arranjo improvisado. O pequeno grupo
de familiares, sentados nas cadeiras olhava a cena com uma mistura de descrença e resignação. Padre José, um senhor de cabelos brancos que conhecia a família há décadas, havia sido convencido de que o casamento era urgente por questões familiares delicadas. Sofia caminhou pelo improvisado corredor de flores com dona Carmen ao seu lado, servindo como madrinha. Miguel a esperava junto ao padre, sua postura ereta e confiante, como se estivesse completamente à vontade naquela situação absurda. A cerimônia foi breve e direta. Quando chegou o momento dos votos, Miguel surpreendeu a todos ao falar com uma eloquência inesperada. Prometo
respeitar este compromisso e honrar sua confiança por todo o tempo que durar nossa união. Não era um voto de amor, mas havia uma sinceridade em suas palavras que fez Sofia sentir um estranho conforto. Quando o padre os declarou marido e mulher, houve um silêncio constrangedor antes de alguns aplausos tímidos. Sofia e Miguel selaram o acordo com um breve toque de lábios frio e protocolar. No entanto, algo no olhar dele quando se afastou fez o coração dela acelerar de uma forma que não esperava. Na hora de assinar a certidão de casamento, outro detalhe chamou a atenção
de Sofia. A assinatura de Miguel era elegante, com traços firmes e seguros, nada parecido com o que se esperaria de alguém que vivia nas ruas. Ela tentou ver o sobrenome, mas o movimento da mão dele o cobriu estrategicamente. "Está feito", disse o padre, guardando os documentos. "Que Deus abençoe esta união, independente das circunstâncias que a trouxeram." Enquanto os poucos convidados se reuniam para um brinde improvisado, o celular de Sofia vibrou com uma mensagem de Ricardo. Soube que você se casou com um mendigo. Impressionante até onde você chegaria para manter o controle da empresa. Essa situação
ridícula não vai durar muito. Sofia mostrou a mensagem para Miguel, que a leu com uma expressão ilegível. Seu primo parece muito interessado na empresa da família. Ricardo sempre quis controlar tudo. Quando meu avô o preteriu na sucessão, ele jurou que encontraria um jeito de tomar o controle. Sofia suspirou exausta física e emocionalmente. Acho que ele não esperava que eu fosse tão longe. As pessoas raramente esperam que façamos coisas desesperadas. Miguel comentou seu olhar perdido em algum ponto além do jardim. Às vezes, a desesperação nos leva a lugares inesperados. Havia algo profundamente melancólico na forma como
ele disse aquilo, como se falasse de uma experiência pessoal. Sofia sentiu-se ainda mais curiosa sobre quem realmente era aquele homem que agora legalmente era seu marido. A noite já havia caído quando os últimos convidados deixaram a casa. Sofia, finalmente livre do vestido de noiva rasgado e agora usando roupas confortáveis, mostrou a Miguel o quarto de hóspedes. "Você pode ficar aqui", ela disse, abrindo a porta do cômodo simples, mas aconchegante. Há toalhas limpas no banheiro e algumas roupas do meu avô no armário. Amanhã podemos comprar algo que sirva melhor em você. Miguel olhou para o quarto
com uma expressão que Sofia não conseguiu decifrar. Obrigado. É mais do que eu tive nos últimos tempos. Miguel. Sofia hesitou parada na porta. O que aconteceu com você? Quero dizer, você claramente teve uma educação. Sua forma de falar, sua postura. A vida aconteceu, Sofia. Ele respondeu simplesmente: "Às vezes perdemos tudo em um piscar de olhos. Você vai me contar sua história verdadeira algum dia?" Ele a olhou longamente antes de responder, "Talvez quando for o momento certo." Sofia assentiu, respeitando o mistério por enquanto. "Boa noite, então, marido." Um leve sorriso surgiu no canto dos lábios dele.
"Boa noite, esposa." Quando Sofia fechou a porta e se dirigiu ao seu próprio quarto, um pensamento perturbador lhe ocorreu. Em menos de 24 horas tinha sido abandonada no altar. perdido sua dignidade e se casado com um completo estranho para salvar a empresa da família. E o mais estranho de tudo não estava se sentindo tão mal quanto deveria. O primeiro raio de sol da manhã encontrou Sofia já acordada, olhando para o teto de seu quarto. Por alguns segundos, sua mente tentou se convencer de que tudo havia sido um pesadelo. O abandono no altar, o casamento improvisado
com um estranho, toda a loucura do dia anterior. Mas a aliança simples em seu dedo anular esquerdo confirmava que tudo era real. Ela estava casada com um homem que encontrara na rua, um homem chamado Miguel, sobre quem não sabia praticamente nada. Levantou-se no impulso e foi até o quarto de hóspedes. Bateu levemente na porta e, não obtendo resposta, abriu-a devagar. O cômodo estavazio, a cama perfeitamente arrumada, como se ninguém tivesse dormido ali. Por um momento de pânico, Sofia pensou que Miguel havia fugido durante a noite, talvez com objetos de valor da casa, mas ao descer
as escadas apressadamente, encontrou-o na cozinha, conversando com dona Carmen, como se fossem velhos conhecidos. Bom dia. Miguel a saudou ao vê-la parada na porta, surpresa com a cena. Ele usava outras roupas do avô dela e havia preparado o café da manhã. Espero que não se importe. Sua avó me mostrou onde ficavam as coisas. Dona Carmen, para o espanto de Sofia, parecia menos hostil do que no dia anterior. Seu marido estava me contando sobre como vocês se conheceram. Uma história e tanto, devo dizer. Sofia sentou-se à mesa, desconfortável com a situação. Vovó, não precisa fingir que
isso é normal. Normal? A idosa riu sem humor. Nada em nossas vidas tem sido normal desde que seu avô nos deixou. Mas agora precisamos lidar com as consequências das nossas escolhas. Ela olhou para Miguel com uma expressão ainda desconfiada. E isso inclui decidir como vamos apresentar seu novo marido aos funcionários da empresa. Sofia quase engasgou com o gole de café que tomava. Apresentá-lo na empresa? Claro, respondeu dona Carmen com naturalidade. O testamento é claro. Você precisava se casar para manter o controle da empresa. Ricardo certamente vai exigir verificar se o casamento é real. Isso significa
que seu marido precisa estar presente nas ocasiões importantes. A realidade da situação caiu sobre Sofia como um balde de água fria. Claro que não seria tão simples quanto assinar alguns papéis e seguir com suas vidas separadas. Para todos os efeitos, eles precisariam parecer um casal real. Miguel não pode ir à empresa vestindo as roupas do vovô, Sofia disse, tentando ganhar tempo para processar a situação. "Já pensei nisso," respondeu dona Carmen. Teresa irá às compras esta manhã para trazer algumas roupas para ele. Enquanto isso, vocês dois precisam elaborar a história oficial de como se conheceram e
como foi esse romance relâmpago. Sofia e Miguel trocaram olhares constrangidos. A palavra romance tornava tudo ainda mais estranho. Não vamos exagerar, vovó, Sofia tentou argumentar. Podemos dizer que foi um casamento de conveniência que E dar munição para Ricardo contestar a validade da união. A idosa balançou a cabeça. Não, querida. Para todos os efeitos, você e Miguel se conheceram há alguns meses, mantiveram um relacionamento discreto e decidiram se casar quando Rodrigo a abandonou. Miguel, que ouvia tudo em silêncio, finalmente se manifestou. Dona Carmen tem razão, Sofia. Se quisermos que isso funcione, precisamos ser convincentes. Por alguma
razão, a concordância de Miguel com sua avó irritou Sofia profundamente. Já que vocês dois estão se entendendo tão bem, porque não elaboram essa história sem mim? preciso me arrumar para ir à empresa. Sofia levantou-se da mesa e saiu da cozinha sem olhar para trás, ignorando o olhar preocupado da avó e a expressão enigmática de Miguel. Em seu quarto, enquanto escolhia a roupa para o dia, tentou organizar seus pensamentos caóticos. Estava casada com um desconhecido, precisaria fingir que era um casamento real e ainda teria que enfrentar o primo Ricardo e explicar essa loucura toda para os
funcionários da empresa. Uma hora depois, vestida formalmente e com a maquiagem cuidadosamente aplicada para esconder os sinais do estresse, Sofia desceu as escadas encontrando Miguel igualmente pronto. Ele usava um conjunto de roupas novas que Teresa, a empregada, havia comprado seguindo as orientações de dona Carmen. O resultado era surpreendente. Com roupas adequadas e bem ajustadas, Miguel parecia um executivo respeitável, nada lembrando o homem que Sofia encontrara na praça. "Você está linda", ele comentou ao vê-la com uma sinceridade que a pegou desprevenida. Obrigada", ela respondeu, sentindo as bochechas esquentarem involuntariamente. "Você também está diferente. Um pouco de
roupa faz milagres, não é?" Ele sorriu, um sorriso discreto que iluminou seu rosto de uma forma que Sofia não havia notado antes. O caminho até a fábrica têxtil da família Monteiro foi feito em um silêncio tenso. Sofia dirigia enquanto Miguel observava a paisagem pela janela. parecendo absorver cada detalhe da pequena cidade. Ocasionalmente, ele fazia perguntas sobre landmarks ou edifícios que Sofia respondia automaticamente, ainda tentando se acostumar com a presença daquele estranho em sua vida. A tecelagem Monteiro ocupava um terreno considerável na zona industrial da cidade. O prédio principal, de tijolos aparentes e estilo industrial clássico,
havia sido construído pelo avô de Sofia na década de 1960 e expandido ao longo dos anos. Três gerações da família haviam dedicado suas vidas àquele negócio, que começara com apenas dois teares manuais e agora empregava mais de 200 pessoas. Ao estacionar o carro na vaga reservada à diretoria, Sofia respirou fundo, preparando-se mentalmente para o que viria pela frente. Vamos tentar manter isso o mais simples possível, ok? Você é meu marido. Nos conhecemos há alguns meses. Nos casamos rapidamente. Nada de histórias elaboradas. Miguel assentiu. Entendido. Seguirei sua liderança. A chegada de Sofia à empresa sempre causava
um certo rebuliço. Ela era querida pelos funcionários e respeitada por sua competência, apesar da pouca idade. Naquele dia, porém, o burburinho foi ainda maior. Todos já sabiam do desastre do casamento cancelado. E ver Sofia chegando com um homem desconhecido causou coxiches imediatos. Sofia querida, a secretária de longa data, Marta, veio ao seu encontro assim que a viu entrar no saguão principal. Seus olhos curiosos avaliavam Miguel de cima a baixo. Não esperávamos você hoje depois de Bem, você sabe. Olá, Marta. Sofia forçou um sorriso. Este é Miguel, meu marido. A palavra soou estranha em seus lábios,
como se pertencesse a um idioma que ela não dominava completamente. Marta arregalou os olhos claramente chocada, mas seu treinamento profissional a impediu de demonstrar surpresa excessiva. Seu marido, mas pensei que o casamento tinha sido. Houve uma mudança de planos. Sofia a interrompeu, não querendo prolongar aquela conversa no meio do saguão, onde cada vez mais funcionários paravam para observar a cena. "Podemos conversar na minha sala?" Enquanto atravessavam o saguão em direção aos elevadores, Sofia sentiu todos os olhares sobre eles. Miguel, por outro lado, parecia perfeitamente à vontade, caminhando com uma confiança natural, sorrindo educadamente para quem
cruzava seu caminho. No elevador, a tensão era palpável. Marta não parava de lançar olhares para o anel no dedo de Sofia e para Miguel, claramente tentando entender como aquilo era possível. Quando finalmente chegaram ao andar da diretoria, Sofia sentiu um alívio momentâneo, mas este durou pouco. Parado diante de sua sala, com uma expressão de falsa preocupação no rosto, estava Ricardo, alto, sempre impecavelmente vestido e com um sorriso que nunca alcançava seus olhos. Seu primo era a personificação da falsidade para Sofia. Prima querida, ele abriu os braços como se fosse abraçá-la. Que bom ver você aqui
hoje. Após o incidente de ontem, pensei que precisaria de alguns dias para se recuperar. Sofia manteve-se firme sem corresponder ao gesto. Como pode ver, Ricardo, estou perfeitamente bem e vejo que não está sozinha. Ricardo voltou sua atenção para Miguel, seus olhos calculistas analisando cada detalhe do homem ao lado de Sofia. Não vai nos apresentar? Miguel, este é meu primo Ricardo. Ricardo, este é Miguel, meu marido. A surpresa no rosto de Ricardo foi genuína. Por um instante, sua máscara de cordialidade caiu, revelando choque e raiva. Marido, mas o que aconteceu com Rodrigo e eu terminamos? Sofia
o interrompeu friamente. Conheci Miguel há alguns meses, mas mantivemos nosso relacionamento discreto devido ao compromisso que eu tinha com Rodrigo. Quando ele me abandonou, Miguel e eu decidimos oficializar nossa união. A explicação soava ensaiada mesmo para seus próprios ouvidos, mas era o que haviam combinado com dona Carmen. Ricardo olhou de Sofia para Miguel várias vezes, claramente tentando processar aquela revira-volta inesperada. "Prazer em conhecê-lo, Ricardo!" Miguel estendeu a mão, sua voz firme e segura. Sofia falou muito sobre você. Ricardo apertou a mão oferecida com visível relutância. Estranho. Ela nunca mencionou você nas reuniões de família. Como
disse, mantivemos descrição. Miguel respondeu com naturalidade. Situação complicada, entende? Havia algo no tom de Miguel, uma insinuação sutil que fez Ricardo estreitar os olhos. Sofia percebeu que seu marido estava deliberadamente provocando seu primo, insinuando que sabia sobre seu plano com Rodrigo. "Bem, isso é surpreendente." Ricardo finalmente disse, recuperando sua compostura. "E o que você faz da vida, Miguel? Em que área atua?" Essa era uma pergunta que Sofia não tinha antecipado. Ela olhou para Miguel, tensa, sem saber o que ele responderia. "Atualmente estou em transição de carreira", Miguel respondeu sem hesitar. Trabalhei por anos no setor
financeiro, mas decidi que era hora de buscar algo mais significativo. A resposta era vaga o suficiente para não ser facilmente verificável, mas específica, o bastante para suar plausível. Sofia admirou a rapidez de raciocínio de Miguel, mas também se sentiu ainda mais intrigada sobre quem ele realmente era. "Fascinante", Ricardo comentou sem esconder seu ceticismo. "E onde vocês se conheceram exatamente?" Antes que Sofia pudesse responder, Miguel tomou a palavra. Em uma conferência sobre sustentabilidade na indústria têxtil em Brasília, Sofia apresentou um painel sobre práticas ecológicas na produção de tecidos. Fiquei impressionado com seu conhecimento e paixão pelo
assunto. Sofia olhou para ele surpresa como ele sabia que ela havia participado daquela conferência três meses atrás e como sabia sobre sua apresentação sobre sustentabilidade? Ricardo também pareceu pego de surpresa pela resposta detalhada. Bem, parece que vocês realmente se conhecem. Ele sorriu. Aquele sorriso falso que Sofia conhecia tão bem. Imagino que o testamento de tio Alberto esteja devidamente cumprido. Então, exatamente, Sofia respondeu, recuperando sua confiança. Então, não há necessidade de mudar nada na estrutura administrativa da empresa. Por enquanto, Ricardo acrescentou seu tom levemente ameaçador. Ainda temos a reunião do conselho na próxima semana. Será interessante
ver como todos reagirão ao seu novo marido. Com essas palavras, Ricardo se afastou, não sem antes lançar um último olhar calculista para Miguel. Quando ele entrou em sua própria sala no final do corredor, Sofia finalmente respirou aliviado. "Como você sabia sobre a conferência em Brasília?", ela perguntou assim que entraram em sua sala e fecharam a porta. Miguel deu de ombros. Vi o certificado emoldurado na parede do escritório, na casa da sua avó, enquanto esperava vocês esta manhã. Tinha a data, o tema e mencionava sua apresentação. Sofia o encarou impressionada e ligeiramente perturbada com sua capacidade
de observação e improvisação. Você é bom nisso. Em observar detalhes? Sim, é algo que aprendi a fazer ao longo dos anos. Ele caminhou pela sala observando as fotos, prêmios e certificados expostos. Impressionante o que sua família construiu aqui. Três gerações de trabalho duro. Sofia respondeu, sentando-se em sua cadeira atrás da mesa de Mógno, que havia pertencido ao seu avô. E quase perdemos tudo por causa da ganância do meu primo. Miguel continuou inspecionando a sala, parecendo particularmente interessado em uma foto antiga que mostrava o avô de Sofia ao lado dos primeiros teares da fábrica. A linha
de produção mudou muito desde então, completamente. Agora é quase toda automatizada. Sofia franziu o senho intrigada pelo interesse dele. Por que a pergunta? Miguel virou-se para ela com uma expressão séria. Porque se vocês ainda estão usando o sistema de abastecimento de matéria-prima projetado na década de 80, estão desperdiçando cerca de 15% da capacidade produtiva, Sofia levantou-se de um salto. Como você sabe disso? É uma questão de lógica industrial básica. O layout que vi na foto ali, ele apontou para uma imagem mais recente da linha de produção. Mostra que o fluxo de materiais faz um giro
desnecessário no setor 3. Se reorganizarem o posicionamento das máquinas seguindo um fluxo linear, ganhariam tempo e reduziriam desperdício. Sofia o encarava boque aberta. Aquele era exatamente o problema que seu departamento de engenharia vinha tentando resolver nos últimos meses. Como um suposto morador de rua havia identificado isso com uma simples olhada em algumas fotos. "Quem é você, Miguel?", ela perguntou, sua voz quase um sussurro. De verdade. Ele sustentou seu olhar por um longo momento, como se considerasse realmente revelar sua identidade. Mas o som de uma batida na porta quebrou o momento. Senorita Sofia. Marta entrou sem
esperar resposta a seu rosto pálido. Perdão pela interrupção, mas Ricardo acabou de convocar uma reunião extraordinária do conselho para esta tarde. Ele disse que é sobre a validade do seu casamento. Sofia sentiu o sangue gelar em suas veias. Era uma declaração de guerra. Ricardo não iria desistir tão facilmente. Miguel, que observava a cena com aparente calma, finalmente falou: "Parece que seu primo quer jogar duro. Felizmente, para nós, isso é algo que sei fazer muito bem". Havia uma determinação quase perigosa no olhar dele, que estranhamente, ao invés de assustá-la, deu a Sofia uma sensação de segurança
que não sentia desde a morte de seu avô. Talvez este casamento de conveniência fosse mais interessante do que ela imaginava inicialmente. Uma semana se passou desde o casamento improvisado de Sofia e Miguel. A reunião extraordinária do conselho convocada por Ricardo havia sido um teste de fogo para o casal. Miguel surpreendeu a todos com seu conhecimento profundo sobre o setor têxtil capacidade de argumentação, fazendo com que as suspeitas iniciais sobre a validade do casamento fossem aos poucos se dissipando. Para o desespero de Ricardo, o conselho aceitou Miguel como o legítimo marido de Sofia, mantendo assim a
cláusula do testamento devidamente cumprida. Na casa de dona Carmen, uma rotina estranha havia se estabelecido. Miguel ocupava o quarto de hóspedes, sempre mantendo uma distância respeitosa de Sofia. Eles tomavam café da manhã juntos, iam para a empresa no mesmo carro e para todos os efeitos pareciam um casal recém-casado, exceto quando estavam sozinhos. Nesses momentos, voltavam a ser dois estranhos tentando decifrar um ao outro. O mais intrigante para Sofia era o comportamento de Miguel. Todas as manhãs ele saía antes do amanhecer e só retornava para o café. Quando questionado, dizia apenas que gostava de caminhar para
organizar os pensamentos. Depois passava o dia na empresa, onde demonstrava um talento natural para os negócios, fazendo sugestões que estavam efetivamente melhorando a produtividade. Mas à noite, quando todos se recolhiam, Sofia frequentemente o encontrava no jardim, olhando para as estrelas, em vez de usar o conforto do quarto oferecido. "Não consegue dormir?", Sofia perguntou certa noite, encontrando-o sentado no banco do jardim, com apenas a luz da lua iluminando sua silhueta. Miguel não pareceu surpreso com sua aproximação. Passei muito tempo dormindo ao relento. Agora, às vezes, me sinto sufocado entre quatro paredes. Sofia sentou-se ao lado dele,
mantendo uma distância respeitosa. Você nunca me contou como acabou nas ruas. Escolha própria. Ele respondeu simplesmente. Seus olhos continuavam fixos no céu, como se procurasse algo específico entre as estrelas. Ninguém escolhe viver nas ruas, Miguel. Ele virou-se para ela, então, seu rosto parcialmente coberto pela sombra. Algumas pessoas, sim, quando precisam redescobrir o que realmente importa. Havia tanta convicção em sua voz que Sofia não encontrou argumentos para contestá-lo. Em vez disso, decidiu mudar de assunto. Você tem sido incrível na fábrica. Os funcionários já comentam sobre suas ideias para melhorar a produção. Um sorriso discreto surgiu nos
lábios dele. Apenas observações lógicas. Sua empresa tem potencial para muito mais. Nossa empresa. Sofia corrigiu automaticamente. Percebendo o que acabara de dizer, acrescentou rapidamente: "Quero dizer, enquanto estivermos casados, tecnicamente é nossa empresa." Miguel a encarou por um longo momento. É gentil da sua parte incluir-me, mas ambos sabemos que este arranjo é temporário. Estou apenas ajudando a proteger o que é seu por direito. algo no tom dele que so quase triste. Sofia sentiu um impulso repentino de se aproximar, de tocar seu rosto e dizer que talvez nem tudo precisasse ser tão temporário assim. O pensamento a
assustou. Estava começando a se sentir atraída por Miguel, por esse homem que mal conhecia, que guardava mais segredos do que revelava. Antes que pudesse explorar esse sentimento confuso, o celular de Miguel tocou. Um aparelho antigo e simples, nada parecido com os smartphones modernos. Ele olhou para o visor e seu semblante mudou imediatamente. "Preciso atender", disse, levantando-se do banco e afastando-se alguns passos. Sofia o observou enquanto ele falava em um idioma que não reconheceu. Parecia mandarim ou algum outro dialeto asiático. Suas respostas eram curtas, diretas, e seu tom era completamente diferente do que ela estava acostumada
a ouvir. Mais comandante, mais autoritário. Quando ele retornou, sua expressão havia voltado ao normal, mas Sofia notou uma tensão em seus ombros que não estava lá antes. Problemas? Ela perguntou, tentando soar casual. Nada importante ele desconversou. Acho que devemos entrar. Está ficando frio. Mais um mistério para a coleção de perguntas sem resposta que Sofia acumulava sobre seu marido de conveniência. No dia seguinte, enquanto Miguel estava em uma reunião com o departamento de produção, Sofia decidiu que era hora de algumas investigações. A curiosidade estava corroendo-a por dentro e os constantes enigmas que cercavam aquele homem haviam
se tornado insuportáveis. Ela entrou no quarto de hóspedes, algo que nunca havia feito desde que Miguel se instalara ali, e olhou ao redor, sentindo-se culpada, mas determinada. O cômodo estava impecavelmente arrumado, quase como se ninguém o utilizasse. A cama estava perfeitamente feita, não havia objetos pessoais à vista, exceto por uma mochila gasta colocada cuidadosamente em um canto. Sofia hesitou. Vasculhar os pertences dele seria uma invasão grave de privacidade. Mas o que se esperava de um casamento falso? Afinal, que tipo de confiança eles deveriam manter? Respirando fundo, ela abriu a mochila. Dentro havia poucas coisas. Algumas
peças de roupa dobradas com precisão militar, uma pequena necesser com itens de higiene pessoal de marca surpreendentemente cara e uma pasta de couro gasta. foi a pasta que atraiu sua atenção. Dentro dela, Sofia encontrou vários documentos antigos, a maioria em um idioma estrangeiro que ela não conseguia ler. Entre eles, porém, havia um recorte de jornal em português amarelado pelo tempo. Era uma reportagem de quase 30 anos atrás sobre a inauguração da tecelagem em Monteiro. Na foto, seu avô Alberto sorria ao lado de outro homem, ambos cortando a fita inaugural. A legenda dizia: Alberto Monteiro e
Gustavo Mendonça inauguram a primeira unidade da tecelagem em Monteiro, fruto de parceria que promete revolucionar o setor têxtil na região. Sofia sentou-se na cama, atônita Gustavo Mendonça. Esse nome nunca fora mencionado na história da empresa que seu avô sempre contava. Segundo a tradição familiar, Alberto Monteiro havia construído o império sozinho, com sacrifício e determinação. Não havia nenhum sócio na narrativa oficial. Virando o recorte, Sofia encontrou algumas anotações manuscritas em uma caligrafia elegante. Acordo rompido em 1992. Patentes divididas. Promessa de reunificação para as próximas gerações. O som de um carro estacionando na frente da casa. arrancou
Sofia de suas descobertas. Rapidamente ela guardou tudo no lugar exato onde encontrara e saiu do quarto, o coração batendo acelerado. Quem era Gustavo Mendonça e que relação ele tinha com sua família? E mais importante, qual era a conexão entre esse homem e Miguel? Naquela mesma tarde, quando estava prestes a confrontar Miguel sobre sua descoberta, Sofia foi surpreendida pelo retorno inesperado de Rodrigo à empresa. Seu ex-noivo aguardava na recepção, visivelmente abatido e nervoso. Contra seu melhor julgamento, ela concordou em recebê-lo em sua sala. Sofia, eu vim pedir perdão. Rodrigo começou assim que fechou a porta atrás
de si. Seu rosto mostrava sinais claros de noites mal dormidas. O que fiz foi imperdoável, eu sei. Mas você precisa saber a verdade. A verdade? Sofia cruzou os braços, mantendo distância emocional. Que você me abandonou no altar porque meu primo te pagou? Rodrigo pareceu genuinamente surpreso. Você sabe disso? Como isso importa? O que importa é que você teve um preço, Rodrigo, e nem foi tão alto assim, pelo que soube. Não foi só pelo dinheiro, Sofia. Ele passou as mãos pelo cabelo num gesto nervoso. Ricardo me ameaçou. Disse que tinha provas de irregularidades na empresa do
meu pai e que as entregaria à Receita Federal se eu seguisse com o casamento. Sofia sentiu o sangue gelar. A empresa do pai de Rodrigo era pequena e passava por dificuldades. Uma denúncia desse tipo, mesmo que baseada em evidências fabricadas, poderia ser o golpe final. Por que está me contando isso agora? Porque descobri que as provas eram falsas. Ricardo estava blefando. Rodrigo deu um passo em sua direção. E porque soube que você se casou com um desconhecido. Sofia, isso é loucura. Você não conhece esse homem? Sofia riu sem humor, como se você fosse muito confiável.
Pelo menos Miguel não me abandonou quando mais precisei dele. O nome de Miguel pareceu atingir Rodrigo como um tapa. Miguel. Miguel quê? Nesse momento, a porta da sala se abriu e o próprio Miguel entrou carregando alguns documentos. Ele parou ao ver Rodrigo e, por um instante fugaz, algo como reconhecimento cruzou seu olhar. Perdão, não sabia que estava ocupada, Miguel disse. Sua voz controlada demais para ser natural. Não tem problema. Sofia respondeu, observando atentamente a reação dos dois homens. Miguel, este é Rodrigo, meu ex-noivo. Rodrigo, este é Miguel, meu marido. Os dois homens se mediram por
um momento tenso. Havia algo estranho no ar, como se ambos partilhassem um conhecimento ao qual Sofia não tinha acesso. Rodrigo já estava de saída. Sofia acrescentou quando o silêncio se tornou desconfortável demais. Na verdade, Rodrigo desviou o olhar de Miguel para Sofia. Eu vim avisar sobre algo sério. Ricardo está planejando algo contra a fábrica. Ouvi ele falar ao telefone sobre resolver o problema permanentemente esta noite. Sofia franziu o senho. O que isso significa? Não sei exatamente, mas não soava bem. Rodrigo pegou sua pasta. Seja cuidadosa, Sofia. Ricardo está desesperado agora que você conseguiu manter o
controle da empresa. Com essas palavras, ele saiu, não sem antes lançar um último olhar carregado de significado para Miguel. "O que foi isso?", Sofia perguntou assim que ficaram sozinhos. "Vocês se conhecem?" Miguel colocou os documentos sobre a mesa, evitando seu olhar. Nunca o vi antes. Sofia sabia que era mentira, mas antes que pudesse insistir, o alarme de incêndio da fábrica disparou ensurdecedor. Pelo interfone, a voz de Marta soou em pânico. Fogo no depósito principal. Todo mundo evacuando. Miguel reagiu com uma rapidez impressionante, pegando Sofia pelo braço e guiando-a para fora. No pátio, funcionários apavorados se
reuniam enquanto uma coluna de fumaça negra subia do depósito, onde ficava armazenada toda a matériapra da fábrica. Foi Ricardo! Sofia murmurou, lembrando do aviso de Rodrigo. Ele fez isso para nos destruir. Se perdermos o estoque, teremos que parar a produção por meses. Para sua surpresa, Miguel já estava no telefone falando em tom autoritário. Precisamos de uma equipe completa. Sim, agora. Código vermelho. Ele desligou e virou-se para Sofia. Os bombeiros estão a caminho, mas vão demorar pelo menos 20 minutos para chegar. Precisamos agir agora. O que se seguiu deixou Sofia completamente atônita. Miguel assumiu o comando
da situação como se tivesse treinamento profissional. Organizou os funcionários em equipes, improvisou equipamentos de combate ao fogo com o que tinham disponível e direcionou os esforços para conter as chamas até a chegada do socorro. Mais surpreendente ainda foi quando, cerca de 10 minutos depois, três caminhões pipa privados adentraram o pátio da fábrica, seguidos por uma equipe de homens com equipamentos profissionais de combate a incêndio. Nenhum deles usava o uniforme oficial do Corpo de Bombeiros. "Quem são esses homens?", Sofia perguntou, observando a operação coordenada que já estava conseguindo controlar as chamas. Miguel não respondeu imediatamente, ocupado
em dar instruções a um homem que parecia ser o líder da misteriosa equipe. Quando finalmente voltou para o lado de Sofia, seu rosto estava manchado de fuligem e suas roupas exalavam cheiro de fumaça. Não se preocupe com isso agora. O importante é que estamos salvando o depósito. E de fato, estavam. Uma hora depois, o incêndio estava completamente controlado. Os danos, embora significativos, eram muito menores do que poderiam ter sido. A produção teria que ser reduzida por algumas semanas, mas a fábrica não precisaria fechar. Durante todo o processo de controle do incêndio, Sofia notou algo ainda
mais estranho. O motorista de um dos caminhões Pipa trazia constantemente relatórios a Miguel. e pedia suas instruções, tratando-o com uma deferência que não se concedia a um simples desconhecido. E mais, em determinado momento, ela viu o homem entregar a Miguel um envelope discreto que ele rapidamente guardou no bolso interno do palitó. Quando os bombeiros oficiais finalmente chegaram, a situação já estava sob controle. Miguel instruiu a misteriosa equipe a se retirar discretamente enquanto ele lidava com as autoridades. Sua capacidade de gerenciar a crise impressionou não apenas Sofia, mas todos os presentes. Horas mais tarde, com a
situação estabilizada e os funcionários dispensados para suas casas, Sofia e Miguel retornaram à casa de dona Carmen. A idosa os esperava ansiosa na varanda, tendo sido informada sobre o incêndio. "Graças a Deus, vocês estão bem", ela abraçou a neta com força. "Como está a fábrica? Sobreviverá graças a Miguel." Sofia respondeu, lançando um olhar significativo para o marido. Ele conseguiu controlar o incêndio antes que destruísse tudo. Dona Carmen estudou o rosto sujo de Fuligem de Miguel por um longo momento. "Parece que devemos muito a você, rapaz." "Não me deve nada", ele respondeu sua voz cansada. "Eu
vou tomar um banho, se não se importam". Assim que Miguel subiu às escadas, Sofia aproximou-se da avó. Tem algo estranho acontecendo, vovó. Miguel não é quem diz ser. Encontrei um recorte de jornal no quarto dele sobre a inauguração da fábrica. Havia outro homem com o vovô, Gustavo Mendonça. A senhora o conheceu? A cor abandonou o rosto de dona Carmen. Ela precisou se sentar, suas mãos trêmulas, buscando apoio na bengala. Onde você ouviu esse nome? Estava em um recorte guardado por Miguel. Quem é ele, vovó? E o que tem a ver com a nossa família? A
idosa suspirou profundamente, como se estivesse prestes a revelar um segredo guardado por décadas. Gustavo Mendonça foi o sócio original do seu avô. Eles começaram juntos, eram como irmãos, tinham o mesmo sonho, a mesma visão. E o que aconteceu? Uma briga terrível em 1992, algo relacionado a patentes, a quem tinha direito sobre certas inovações. Seu avô e Gustavo romperam a sociedade da pior maneira possível. Gustavo saiu do país levando sua família para o exterior. Nunca mais falamos dele. Sofia sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ele tinha filhos. um filho, mais ou menos da idade do seu
pai. Dona Carmen a encarou, seus olhos refletindo uma compreensão súbita. Sofia, você não acha que O som de passos na escada interrompeu a conversa. Miguel descia de banho tomado, vestindo roupas limpas. Havia algo diferente em sua postura, como se tivesse tomado uma decisão importante. "Precisamos conversar", ele disse sua voz mais formal do que nunca. Há algo que vocês duas precisam saber. Sofia sentiu seu coração acelerar. Finalmente as máscaras cairiam e ela descobriria quem realmente era o homem com quem se casara. Você é filho de Gustavo Mendonça, não é? Dona Carmen perguntou diretamente, surpreendendo tanto Sofia
quanto Miguel. O silêncio que se seguiu foi a confirmação que ambas precisavam. Miguel passou a mão pelos cabelos ainda úmidos, um gesto que Sofia já havia notado ser característico dele quando estava nervoso. Sim. Ele finalmente respondeu: "Meu nome completo é Miguel Mendonça, filho único de Gustavo Mendonça, ex-sócio de Alberto Monteiro e cofundador original da Tecelagem Monteiro. A revelação pairou no ar como fumaça, sufocante e impossível de ignorar. Sofia sentiu o mundo girar ao seu redor, todas as peças do quebra-cabeça finalmente se encaixando. O conhecimento detalhado sobre a empresa, as conexões misteriosas, a facilidade com que
ele havia penetrado em sua vida justamente quando mais precisava. Por quê? Foi tudo o que ela conseguiu perguntar. Sua voz quase um sussurro. Por que fingir ser um mendigo? Por que se casar comigo? Miguel sustentou seu olhar, seus olhos mais sinceros do que nunca. Inicialmente era sobre justiça recuperar o que meu pai perdeu, o que foi tirado da nossa família. Mas então ele hesitou como se as palavras a seguir fossem difíceis de formular. Então eu conheci você e tudo mudou. O silêncio que tomou conta da sala após a revelação de Miguel parecia uma entidade viva,
sufocante. Sofia permaneceu imóvel, seu rosto uma máscara de choque e traição. Dona Carmen, por outro lado, parecia menos surpresa e mais resignada, como se em algum nível já suspeitasse da verdade. "Você planejou tudo", Sofia finalmente falou, sua voz trêmula de raiva contida. Me encontrar na praça após o abandono, se oferecer para se casar comigo, nunca foi coincidência. Miguel permaneceu de pé, encarando-a diretamente. Não foi bem assim. Eu estava na cidade investigando Ricardo. Sabia que ele tinha algo planejado contra você, mas não sabia exatamente o quê. Quando vi você correndo pela praça em seu vestido de
noiva rasgado, percebi o que havia acontecido e viu uma oportunidade perfeita. Sofia completou amargamente. Vi uma chance de ajudar você e sim também de me aproximar da empresa que deveria ser parcialmente da minha família. Miguel não tentava esconder a verdade. Agora o que Ricardo fez foi orquestrado. Ele vem planejando tomar o controle há anos. Dona Carmen, que até então observava em silêncio, finalmente se manifestou. Como seu pai, Gustavo, planejou tirar meu marido da empresa que construíram juntos. Miguel virou-se para a idosa, seus olhos refletindo uma antiga dor. Minha família tem uma versão muito diferente dessa
história, senhora. Meu pai não tentou tirar Alberto da empresa. Foi seu marido quem o expulsou, registrando patentes desenvolvidas conjuntamente apenas em seu nome. Isso é absurdo. Dona Carmen se exaltou, sua fragilidade física contrastando com a força de sua indignação. Alberto nunca faria algo assim. Tenho documentos que provam o contrário. Miguel respondeu calmamente. De dentro do bolso, tirou um papel dobrado. Esta é a patente original do sistema de tecelagem vertical que revolucionou a produção. Veja as assinaturas. Sofia pegou o documento com mãos trêmulas. Ali estavam, lado a lado, as assinaturas de seu avô e de Gustavo
Mendonça. No entanto, no registro oficial da empresa, apenas o nome de Alberto constava. "Pode ser uma falsificação", ela murmurou sem muita convicção. "Sofia!" Miguel se aproximou, mas mantendo uma distância respeitosa. Não vim aqui para destruir a memória do seu avô ou para tomar o que é seu. Vim porque meu pai, antes de falecer há seis meses, me pediu para tentar uma reconciliação entre nossas famílias. A menção da morte recente de Gustavo fez dona Carmen levar a mão ao peito. Gustavo se foi. Miguel assentiu. Câncer. lutou por tr anos, mas no final ele não completou a
frase, a emoção visível em seu semblante. Em seu leito de morte, me contou sobre o sonho que ele e Alberto compartilhavam, sobre como deveriam ter resolvido suas diferenças em vez de permitir que o orgulho destruísse décadas de amizade. Sofia olhou para a avó, cujos olhos agora estavam marejados. É verdade, vovó. Vovô e Gustavo eram realmente amigos. Antes da briga, a idosa respirou fundo, como se o peso das décadas finalmente a vencesse. Como irmãos, cresceram juntos, sonharam juntos. Gustavo era padrinho do seu pai, sabia? Eles sua voz falhou. Eles juraram que suas famílias sempre estariam unidas,
que nunca permitiriam que o dinheiro ou os negócios os separassem. Então, o que aconteceu? Sofia insistiu, sentindo que finalmente estava prestes a desvendar um segredo familiar guardado por muito tempo. Orgulho, dona Carmen respondeu simplesmente, orgulho estúpido de homens igualmente teimosos. Uma discussão sobre crédito por uma inovação escalou para acusações de traição, ameaças de processos. Antes que percebêssemos, já era tarde demais. Gustavo partiu para o exterior com a família e Alberto proibiu que seu nome fosse mencionado novamente nesta casa. Miguel caminhou até a janela, olhando para o jardim, onde dias antes casara-se com Sofia em uma
cerimônia improvisada. Meu pai construiu outro negócio na Europa. Foi bem-sucedido, mas nunca superou completamente o rompimento com seu amigo de infância. Sofia sentiu sua raiva inicial sendo gradualmente substituída por uma tristeza profunda por aquilo que poderia ter sido, pelas vidas que poderiam ter seguido um caminho completamente diferente, não fosse por uma briga antiga. "Você é realmente milionário, então?", Ela perguntou, quase conseguindo sorrir com a ironia da situação. Miguel finalmente relaxou um pouco, aliviado por ver que a atmosfera começava a mudar. Tecnicamente, sim, herdei os negócios do meu pai após sua morte, mas passei os últimos
seis meses vivendo nas ruas, não por necessidade, mas por escolha. Por quê? Sofia não conseguia compreender. Meu pai dedicou sua vida inteira à busca de mais riqueza, mais poder, mais status, como se isso pudesse preencher o vazio deixado pela perda da amizade com Alberto. Miguel voltou a se aproximar, sentando-se finalmente em uma poltrona próxima. No fim, ele percebeu que nada daquilo importava realmente. Em seus últimos dias, falou mais sobre Alberto e a velha tecelagem do que sobre o império que construiu na Europa. Então você decidiu abandonar tudo e viver como mendigo? Sofia ainda tentava processar
aquela revelação surreal. Por um tempo, sim, queria entender o que realmente tem valor na vida, além do dinheiro e do status. Seu olhar encontrou o dela. Foi a experiência mais reveladora da minha vida. Descobri que a conexão humana, a empatia, a capacidade de ajudar os outros, essas são as coisas que realmente importam. E onde eu me encaixo nessa história? Sofia perguntou, sua voz mais suave agora. Era só parte do plano de reconciliação, um meio de voltar a ter controle sobre a empresa do seu pai. Miguel hesitou claramente escolhendo suas palavras com cuidado. Inicialmente, sim, vinha
à cidade para tentar uma aproximação formal de empresário para empresária. Mas então descobri o plano de Ricardo. Vi como ele estava determinado a destruir você e tomar a empresa. E quando nos encontramos naquela praça, ele sorriu levemente. Bom, digamos que o plano mudou significativamente. "Como assim?", Sofia insistiu, precisando ouvir a verdade completa. "Eu não esperava não esperava me importar com você." As palavras saíram com dificuldade, como se Miguel não estivesse acostumado a expressar sentimentos. A princípio, era só um acordo conveniente, uma forma de impedir Ricardo e de me aproximar da empresa. Mas então comecei a
ver o tipo de pessoa que você é, sua força, sua determinação, seu compromisso com a empresa e com os funcionários. Comecei a admirá-la. E então, e então? Sofia o pressionou, seu coração acelerando. E então percebi que havia me apaixonado pela mulher com quem me casei por conveniência. Ele finalmente admitiu seus olhos encontrandoos dela sem hesitação. O que começou como um acordo de negócios se transformou em algo completamente diferente, pelo menos para mim. O silêncio voltou a tomar conta da sala, mas desta vez era diferente. Carregado de possibilidades em vez de acusações. Sofia não sabia como
reagir. Parte dela ainda se sentia traída, usada como peça em um jogo de poder entre famílias. Mas outra parte, uma parte que crescia a cada dia desde que conhecera Miguel, reconhecia que seus próprios sentimentos haviam mudado também. O incêndio. Ela lembrou subitamente, "Ricardo, foi ele sim." Miguel confirmou. E não foi a primeira tentativa. Ele tem trabalhado nos bastidores há anos para enfraquecer a empresa, alienar fornecedores, desestabilizar relações com clientes importantes. O casamento era apenas a cartada final. Dona Carmen, que havia permanecido em silêncio durante a troca entre os dois, finalmente falou: "Sempre suspeitei que Ricardo
fosse mais ambicioso do que demonstrava, mas nunca imaginei que chegaria a esse ponto. Temos provas agora, Miguel respondeu. A equipe que contratei para investigá-lo reuniu evidências suficientes para incriminá-lo pelo incêndio e diversas outras ações contra a empresa. Kipe Sofia franziu o senho. Aqueles apareceram tão rápido para controlar o incêndio. Miguel assentiu. Segurança privada. Ainda mantenho alguns recursos, mesmo durante minha experiência alternativa de vida. Nesse momento, o telefone de Sofia tocou. Era Marta informando que a polícia havia prendido Ricardo quando ele tentava deixar a cidade às pressas. Com ele encontraram documentos comprometedores e uma passagem só
de ida para o exterior. Quando Sofia desligou, encontrou Miguel e dona Carmen olhando para ela expectantes. "Ricardo foi preso", ela informou. "Parece que seu plano falhou completamente. Uma onda de alívio percorreu a sala. A ameaça imediata havia sido neutralizada, mas restavam questões muito mais profundas a serem resolvidas. O testamento do vovô, Sofia lembrou, virando-se para a avó. A cláusula sobre o casamento havia mais do que apenas a exigência de que eu me casasse, não é? Dona Carmen baixou o olhar, confirmando silenciosamente a suspeita da neta. Alberto nunca superou completamente a briga com Gustavo. Em seus
últimos anos, falava dele frequentemente, sempre com uma mistura de raiva e saudade. A cláusula do testamento, ela hesitou. A versão completa dizia que você deveria se casar até o aniversário dele e que seria ainda melhor se pudesse ser com alguém que ajudasse a reparar os erros do passado. Ele queria que eu me casasse com alguém da família Mendonça, Sofia concluiu atônita. Ele nunca disse isso explicitamente. Dona Carmen corrigiu. Mas acho que no fundo ele esperava uma reconciliação da maneira tortuosa dele, é claro. E agora aqui estamos. Miguel disse, levantando-se: "Dois herdeiros de famílias separadas por
orgulho, unidos por um casamento baseado em mentiras e necessidade. Sofia também se levantou, encarando-o. E o que fazemos agora? Continuamos com essa farça? Nos divorciamos e seguimos caminhos separados? Fundimos as empresas como nossos avôs sonharam?" Miguel deu um passo em sua direção. "O que você quer fazer, Sofia? Eu quero a verdade. Ela respondeu sem hesitar toda a verdade sobre seus sentimentos, sobre seus planos, sobre tudo. A verdade, ele sorriu levemente. A verdade é que vim aqui com um plano de negócios e acabei encontrando algo que dinheiro nenhum pode comprar. A verdade é que passei a
admirar e respeitar você mais do que qualquer pessoa que já conheci. A verdade?" Ele respirou fundo. "É que me apaixonei pela mulher que aceitou se casar com um aparente morador de rua para salvar a empresa de sua família. Sofia sentiu seu coração acelerar, mas ainda havia hesitação. "Como posso confiar em você depois de tantas mentiras?" "Não pode", ele respondeu honestamente: "Não, imediatamente. Confiança se constrói com tempo e ações, não com palavras. Estou disposto a provar dia após dia que o que sinto é real, que o homem que conheceu na praça e o herdeiro dos Mendonça
são a mesma pessoa, apenas em circunstâncias diferentes. Dona Carmen levantou-se com alguma dificuldade, apoiando-se em sua bengala. Vou deixá-los a sós para conversarem. Parece que tem muito a resolver. Antes de sair, ela parou ao lado de Miguel. Se Gustavo criou um filho como você, talvez ele não fosse tão ruim quanto Alberto nos fez acreditar durante todos esses anos. Quando ficaram sozinhos, Sofia e Miguel se encararam por um longo momento, o peso de décadas de história familiar entre eles. Vamos fazer isso direito, Sofia finalmente disse. Se vamos decidir nosso futuro, precisamos conhecer completamente o passado. Quero
ver todos os documentos, ouvir todas as histórias, entender exatamente o que aconteceu entre nossas famílias. Miguel assentiu. Concordo. Sem mais segredos. E quanto a nós, Sofia hesitou. Acho que precisamos de tempo. Tempo para processar tudo, para nos conhecermos de verdade, sem mentiras ou agendas ocultas. Todo o tempo que precisar, ele respondeu, sem esconder o alívio em sua voz. Não estou indo a lugar nenhum. Uma semana depois, Sofia aguardava na antiga fábrica abandonada, onde tudo havia começado. O primeiro espaço que Alberto Monteiro e Gustavo Mendonça haviam alugado juntos antes mesmo da construção da tecelagem principal. O
lugar estava empoeirado e vazio, exceto por alguns teares antigos cobertos por lonas. Miguel chegou pontualmente carregando uma pasta de documentos. Juntos, eles passaram horas explorando a história compartilhada de suas famílias, descobrindo que a verdade, como sempre, estava em algum lugar entre as versões que cada lado contava. Ambos os avós haviam cometido erros. Ambos haviam permitido que o orgulho e a ganância o cegassem para o que realmente importava. É estranho", Sofia comentou enquanto observava uma antiga foto dos dois jovens empresários sorridentes e cheios de esperança. De certa forma, eles conseguiram o que queriam, mesmo que não
da maneira que esperavam. "Como assim?", Miguel perguntou, aproximando-se para ver a foto. Eles queriam que suas famílias permanecessem unidas, que o negócio que construíram juntos continuasse nas mãos de seus descendentes. Sofia virou-se para ele. E aqui estamos nós. Miguel sorriu compreendendo. Acredita em destino, Sofia? Não sei se é destino", ela respondeu honestamente, "mas acredito que algumas histórias precisam de um final adequado. Quando o sol começou a se pôr, lançando raios dourados através das janelas empoeiradas da antiga fábrica, Sofia e Miguel permaneceram lado a lado, contemplando o futuro que podiam construir juntos, não apenas para as
empresas de suas famílias, mas para si mesmos. Então, Miguel finalmente quebrou o silêncio. O que decidiu sobre nós? Sobre este casamento? Sofia o encarou, vendo não o mendigo que encontrara na praça, nem o milionário herdeiro dos Mendonça, mas simplesmente o homem complexo e fascinante que havia entrado em sua vida no momento em que mais precisava. Acho que podemos dar uma chance real a este casamento, sem mentiras, sem segredos. Apenas duas pessoas tentando fazer dar certo. O sorriso de Miguel iluminou seu rosto. É tudo o que eu poderia esperar, mas com uma condição Sofia acrescentou seu
tom subitamente sério. Qualquer uma ele respondeu sem hesitar. Nada de viver nas ruas ou dormir no jardim. Um marido de verdade dorme na cama ao lado de sua esposa. Miguel riu, pegando suas mãos nas dele. Prometo solenemente abandonar minha vida de falso mendigo para me tornar um marido de verdade. Quando ele a puxou para um beijo, desta vez não havia nada de protocolar ou forçado. Era o início verdadeiro de uma união que havia começado da maneira mais improvável possível, com uma noiva abandonada e um mendigo milionário, ambos procurando desesperadamente algo que só encontrariam um no
outro. E enquanto a luz dourada do pô do sol banhava o casal em seu abraço, parecia que os espíritos de Alberto Monteiro e Gustavo Mendonça finalmente encontravam a paz que haviam perdido há tantos anos. vendo suas famílias unidas novamente através do amor improvável de seus netos.