Agrotóxico. Uma palavra de origem grega, em que agros significa campo e toxikón veneno. Mas veneno… para quem?
Veneno para pragas, é claro. Já que agrotóxico é todo produto químico usado para matar insetos, fungos, parasitas, qualquer praga que comprometa a produção agrícola. Mas se usados de forma inadequada, agrotóxicos também podem ser um veneno para nós seres humanos.
Nesse episódio da Série Saúde é Investimento eu vou te contar qual é o verdadeiro impacto dos agrotóxicos na nossa saúde e qual é a realidade do uso de agrotóxicos no Brasil. Será que o Brasil é mesmo mais permissivo com agrotóxicos do que outros países? E se for, como isso afeta a sua vida?
Não é de hoje que a humanidade luta contra pragas que invadem plantações. Nos primórdios da agricultura, os antigos egípcios já usavam arsênico e enxofre, substâncias extremamente tóxicas para os seres humanos. No século 16, a nicotina apareceu como solução.
Mas as pragas continuavam problemáticas. As substâncias funcionavam por algum tempo, mas por alguma razão desconhecida, uma geração de super formigas, lagartas e todo tipo de praga resistente à substância, sempre surgia. Enquanto isso, a população crescia e a fome aumentava.
Esse era o cenário vivenciado em 1935, por Paul Müller, um brilhante químico suiço. Paul havia acabado de descobrir que os insetos absorviam substâncias químicas de forma diferente dos mamíferos. Ele logo pensou que deveria existir alguma substância tóxica para os insetos que não fizesse mal para outros animais e para as plantas.
Depois de 4 anos de trabalho e pesquisas tentando encontrar essa substância, ele apresentou uma solução barata, eficaz e que mudaria a história do controle de pragas: o DDT. O DDT foi o primeiro agrotóxico inseticida usado amplamente no mundo. Ele fez sucesso porque além de suas aplicações na agricultura, era possível cuidar dos jardins de casa e também usá-lo contra o mosquito da malária e os insetos transmissores do tifo.
O DDT abriu a porteira. A partir daí, novos agrotóxicos passaram a ser desenvolvidos ano após ano. Mais tarde, em um período pós Segunda Guerra Mundial, a inovação tecnológica na agricultura alcançou níveis astronômicos, um movimento conhecido como Revolução Verde.
O mundo precisava produzir mais alimentos. A fome era uma realidade na Europa que estava em crise e também nos países em desenvolvimento. Muitos países investiram em máquinas mais modernas, irrigação automática no campo, fertilizantes, alimentos transgênicos e… mais agrotóxicos.
Foi nesse momento que o uso dos agrotóxicos também passou a ser incentivado no Brasil. O Plano Nacional de Desenvolvimento, lançado em 1975, estimulou a adoção generalizada deles. O governo brasileiro simplesmente criou uma regra que estipulava que somente aqueles agricultores que comprassem agrotóxicos poderiam ter acesso ao crédito rural para investir nas suas plantações.
Essa e outras medidas realmente fizeram a produção brasileira aumentar. A produção de frutas foi de quase 14 milhões de toneladas em 1975, para 30 milhões em 1990, chegando a quase 40 milhões de toneladas em 2020. Nesse mesmo período, a produção de cereais quintuplicou.
Mas quem cresceu mesmo foi a produção de soja, que era de quase 10 milhões de toneladas em 1975, foi para 19 milhões em 1990 e em 2020 alcançou incríveis 121 milhões de toneladas. Não foi só a produção total que cresceu, mas o rendimento por área plantada. Com os agrotóxicos e menos pragas, foi possível produzir mais com menos área de plantio.
A revolução verde foi, de fato, revolucionária. Mas ela não conseguiu entregar o que prometeu: acabar com a fome. Apesar de o Brasil ter se tornado um dos quatro maiores exportadores de alimento do planeta, 33 milhões de brasileiros não têm o que comer hoje.
E o Brasil não está sozinho. O mundo já produz alimento suficiente para suprir toda a população mas, mesmo assim, quase 1 bilhão de pessoas ainda estão desnutridas. E pior: a expansão dos agrotóxicos deixou uma herança inesperada.
Infelizmente, a ideia de Paul Muller de uma substância totalmente inofensiva para plantas e animais não se concretizou. Com o passar dos anos, pesquisas na área de toxicologia chegaram a conclusões chocantes. O agrotóxico mais usado no mundo, o DDT, também matava peixes e pássaros, desequilibrando o ecossistema.
E em humanos, afetava a reprodução e era potencialmente carcinogênico. Por conta disso, já a partir de 1970 ele foi proibido em vários países e no Brasil a proibição veio em 1985 para fins agrícolas. Isso gerou questionamentos.
Será que todos os agrotóxicos que se popularizaram faziam mal como o DDT? Existem dois tipos de efeitos na saúde que os agrotóxicos podem causar. Um efeito agudo, que aparece logo após a exposição acima do limite tolerável ou um efeito crônico, a longo prazo, que aparece ao consumir pequenas quantidades da substância… dia após dia.
Os efeitos agudos podem se manifestar de forma leve com uma dor de cabeça, uma ardência na pele, náuseas e outros sintomas. Mas dependendo da quantidade, a intoxicação aguda pode ser fatal. Já os efeitos crônicos envolvem consequências mais sérias que vão desde problemas neurológicos e reprodutivos até câncer.
À medida que as pesquisas avançavam, a ANVISA, foi reavaliando e banindo diversos agrotóxicos. Eles mostravam efeitos carcinogênicos no longo prazo, alta periculosidade em intoxicações agudas e também alta persistência ambiental. Mas a lista de agrotóxicos perigosos que estão liberados ainda é extensa.
Isso porque, na teoria, uma pessoa comum se alimentando em casa e um trabalhador treinado com equipamentos de proteção nunca entrariam em contato com a dose acima do limite permitido, que seria tóxica. Na teoria. Vamos conhecer a história de José, um trabalhador rural da cidade de Limoeiro do Norte, no Ceará.
Assim como vários de seus colegas, José acorda de madrugada, dá um beijo em sua esposa e em suas filhas pequenas, coloca o seu uniforme e vai trabalhar. Ao chegar, ele veste sua máscara para dirigir um trator que irá pulverizar um dos muitos agrotóxicos à sua disposição em uma plantação de bananas. Aquele era pra ser um dia como qualquer outro.
Mas quando chegou em casa, José reclamou com a esposa que estava com dor de cabeça e enjoado. Diante de tantos vírus e parasitas que afetam a população, nem José e nem a sua esposa, pensaram que aqueles sintomas poderiam ser de uma intoxicação aguda pelo agrotóxico. José continuou trabalhando por anos naquela propriedade, levando o uniforme de trabalho para ser lavado em casa.
E sua esposa começou a reclamar que ele estava… fedendo a agrotóxicos. Mesmo quando ele tomava banho, sua pele ainda mantinha o cheiro de substância química. Mas a família tratava aquela situação com leveza.
A esposa de José sabia que algo estava errado… mas aquela era a realidade de quem trabalhava no campo. Cheirar a agrotóxicos era comum e até motivo de piadas entre os colegas. José continuou a trabalhar na propriedade e com 47 anos desenvolveu diabetes.
Estudos apontam que diversas substâncias químicas presentes em agrotóxicos podem desregular o sistema endócrino, responsável por produzir hormônios como a insulina. Não faltam estudos associando o uso prolongado dessas substâncias a danos no pâncreas e ao diabetes. Mas José nem poderia imaginar, pois diabetes é uma doença que pode surgir por muitos fatores.
Enquanto buscava tratamentos para sua nova condição de saúde, possivelmente disparada pelo seu trabalho no campo, sua filha mais nova, de apenas 1 ano de idade, começou a desenvolver mamas. Uma bebê, com endurecimento na região dos mamilos e aumento do volume dos seios. Mais uma vez, algum tipo de desregulação hormonal que nunca seria associada ao agrotóxico, já que a menina nunca havia feito uma pulverização no campo.
E esse não é o único caso desse tipo. Talvez o caso mais famoso de intoxicação a agrotóxicos no Brasil em população tenha sido o caso da cidade dos meninos em Duque de Caxias no RJ, onde tinha uma fábrica de DDT que ela foi inaugurada em 1950 e encerrada as atividades em 1961. Só que ali foi deixado toneladas de DDT e na década de 90 foi verificado que esse DDT estava sendo vendido em feira livre em Duque de Caxias.
Então pesquisadores começaram a acompanhar a população e viram que tinha uma alta prevalência de câncer e outros agravos de saúde naquela população. Chegaram a fazer os níveis de DDT, de Lindano e outros organoclorados que estavam bastante altos na população justificando aquele quadro de intoxicação crônica. É… o problema é muito mais complexo.
A intoxicação aguda dos trabalhadores rurais é provavelmente o efeito colateral mais conhecido dos agrotóxicos. Há quem coloque todos esses casos de intoxicação na conta do uso inadequado dos equipamentos de proteção individual, os EPI's, afinal, eles servem para proteger o trabalhador. Mas falta treinamento.
Mais da metade dos estabelecimentos que usam agrotóxicos não tinham recebido nenhuma orientação técnica sobre como usar. 20% das propriedades não adotavam nenhum tipo de EPI e quando o faziam, era apenas botas e chapéu, o que não é suficiente. Além disso, EPIs são desconfortáveis e foram padronizados para o clima europeu.
Experimente entrar em um trator, com uniforme de manga longa, debaixo de um sol rachando no interior do Ceará, com o suor embaçando os óculos de proteção e escorrendo por baixo da máscara. Ninguém aguenta. Muitas empresas não têm local de descarte de EPIs e o próprio trabalhador tem que levar as roupas para serem lavadas em casa, junto com a roupa da família.
Os agrotóxicos impregnam na pele e no cabelo. E mesmo que haja todo um cuidado com relação aos EPI’s, várias famílias moram literalmente de frente para as plantações e acabam respirando o produto químico pulverizado ali. E assim, o agrotóxico chega em quem nunca pegou em um pulverizador.
De fato, uma pesquisa de 2017 encontrou agrotóxicos em amostras de sangue e urina de várias crianças da região de Limoeiro do Norte, no Ceará. É razoável pensar que isso se repita em várias cidades brasileiras. Mas agora, vamos sair de Limoeiro do Norte e viajar 2600km para o Sul até a cidade de São Paulo.
Betina é uma jovem que mora em um bairro de classe média e nunca visitou uma plantação de bananas. Será que o agrotóxico que intoxicou José e sua família no Ceará, tem alguma chance de chegar até ela? E quem sabe até você?
A Anvisa faz um acompanhamento recorrente do nível de agrotóxicos presentes em alimentos para verificar se estão dentro dos limites permitidos. A última análise feita entre 2017 e 2018 detectou que 23% das frutas, legumes, grãos e outros alimentos avaliados continham agrotóxicos proibidos ou acima do limite permitido. Está chegando mais agrotóxico que deveria.
Em todo mundo, não só no trabalhador rural e na sua família. Mas Betina não costuma comer muitas frutas ou legumes e pensa que está livre dos agrotóxicos. Bom, não está.
Entre 2014 e 2017, foram detectados agrotóxicos na água de mais de 2000 cidades do Brasil. E o problema é que em mais de mil cidades, incluindo São Paulo, foi identificada a presença de não um ou dois, mas 27 tipos de agrotóxicos na água. Apesar de mais de 99% das amostras analisadas estarem dentro do limite da lei brasileira, não sabemos qual é o valor seguro quando consideramos a soma de todos esses agrotóxicos chegando e interagindo no corpo.
Uma coisa é absorver uma quantidade pequena de UM agrotóxico. Outra completamente diferente é absorver uma combinação de pequenas quantidades que juntas podem interagir e produzir um efeito na saúde desconhecido. Existem sim inúmeros estudos em células e animais de laboratório mostrando que pequenas doses absorvidas de forma contínua podem causar problemas.
Mas provar isso em humanos é outra história. Existem limitações para relacionar o consumo diário dessas pequenas quantidades de agrotóxicos com o surgimento de algumas doenças que se manifestam no longo prazo, como o câncer e o Parkinson. Essas doenças não têm apenas uma causa e ao longo da vida temos contato com milhares de substâncias potencialmente prejudiciais e cancerígenas, além dos agrotóxicos.
A relação de causa e efeito não está clara ao ponto de banir completamente o uso deles. Esse é um dos fatores que explica, por exemplo, porque vemos agrotóxicos provavelmente carcinogênicos… aprovados. Pra gente entender melhor o impacto do agrotóxico na saúde humana é necessário ter estudos de biomonitoramento.
Então, avaliar populações que estamos, supostamente, estão expostas né? E estabelecer ali as concentrações, identificar os agrotóxicos, ver as concentrações no sangue e comparar com outros locais que, supostamente, está menos expostos a agrotóxicos. E aí, através desses dados, comparando com os agravos de saúde, então a incidência de câncer e outras doenças, conseguir estabelecer o nexo causal.
É necessário mais pesquisas no Brasil pra gente estabelecer e fazer a avaliação desse risco. Pois é, falar de segurança de agrotóxicos é complicado. Mas fechar os olhos para essa situação é definitivamente um risco à saúde pública.
Um risco alto, especialmente para o Brasil, que é um dos 3 países que mais consomem agrotóxicos por área plantada no mundo! Mas por que consumimos tanto agrotóxico? Para aprovar um agrotóxico no Brasil, é necessário o aval de três instituições: o Ministério da Agricultura, responsável por avaliar a eficiência agronômica do produto, a ANVISA, que avalia a toxicidade e os riscos à saúde humana; e o IBAMA, que avalia os riscos ambientais.
Um veto de qualquer uma das três hoje é suficiente para barrar a aprovação. Mas mesmo a liberação sendo algo teoricamente difícil, o Brasil, só em 2020, registrou 493 agrotóxicos. Por quê?
Apesar desse número chocante que apareceu em várias manchetes, é importante ir a fundo e entender que não se tratam de 493 novas substâncias. A liberação, foi em sua maioria, de genéricos, agrotóxicos que já estavam liberados no mercado com nome comercial, mas cujos princípios ativos agora podem ser comercializados por mais empresas. Desses 493, apenas cinco princípios ativos são realmente inéditos.
Mas isso não exclui o fato de que a Lei Brasileira de Agrotóxicos é… PERMISSIVA. No Brasil, o limite máximo de resíduos de agrotóxicos permitidos em vários alimentos é bem maior do que o da União Europeia, que está constantemente revisando esses valores de acordo com a ciência. Vejamos o caso do Feijão.
A União Europeia estabelece o limite máximo de 0,02 miligramas do agrotóxico Malationa por kg de alimento. O Brasil, por outro lado, permite 8 miligramas por kg. 400 vezes mais.
Com a Soja não é diferente. O limite de Glifosato na União Europeia é de 0,05 mg por kg. No Brasil é 200x maior.
Outro detalhe que chama a atenção é que a União Europeia reavalia a cada 10 anos a segurança e eficácia de todos os agrotóxicos liberados. Os Estados Unidos, revisam a cada 15. Mas, no Brasil, os agrotóxicos são registrados por tempo indeterminado e só serão revisados se houver alguma suspeita sobre a sua ineficácia ou prejuízo à saúde e ao meio ambiente.
O que como vimos, é algo bem difícil de estabelecer. E por fim, o Governo continua estimulando o uso de agrotóxicos até hoje. Desde 1997, existe redução de pelo menos 60% no imposto ICMS (e isenção do IPI, PIS/PASEP e COFINS sobre os agrotóxicos.
Realmente, no Brasil, o Agro é Pop. E apesar dos cientistas apontarem os riscos que o excesso de agrotóxicos pode ter na saúde dos brasileiros e no meio ambiente, o agronegócio tem levado a melhor. E pode piorar.
Em fevereiro de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 6299 de 2002 que altera a Lei 7802 de 1989, conhecida como Lei dos Agrotóxicos. Essa mudança centraliza no Ministério da Agricultura a palavra final sobre a aprovação de agrotóxicos, retirando poderes da ANVISA e do IBAMA, que passariam a ser apenas órgãos consultivos. Além disso, o PL sugere a troca do nome agrotóxico para pesticida ou produto de controle ambiental, o que esconde a real toxicidade desses produtos.
Por causa dessas e outras mudanças, esse projeto vem sendo chamado de PL do Veneno. Anvisa e Ibama já apontaram inconstitucionalidade dessa proposta em 2018, mas por alguma razão, esse PL seguiu para votação na Câmara em 2022 e agora vai para o Senado. Será que essa é uma decisão correta?
A meu ver, o ponto mais importante a ser avaliado é que nesse projeto de lei a gente deixa de lado o princípio da precaução. Por quê? Porque tira da ANVISA e do IBAMA o compartilhamento do registro e deixa apenas sob a tutela do Ministério da Agricultura.
Eles propuseram no projeto de lei fazer uma comissão com profissionais de saúde e com profissionais do meio-ambiente. Mas, obviamente que não é a mesma coisa de você submeter a um órgão regulador especializado em saúde e meio-ambiente. Então como eu falei precisa primeiro de biomonitoramente, das pessoas do meio ambiente, que a gente não tem.
Com toda a exigência que existe hoje na lei e nós não temos isso, eu imagino numa condição em que você registre apenas no Ministério da Agricultura. E que você tire o papel da ANVISA e do IBAMA. Então isso com certeza, a meu ver, como toxicologista, representa um retrocesso para a saúde humana e a saúde ambiental em relação aos agrotóxicos.
Com tantas alternativas concretas, como a utilização de inimigos naturais das pragas, o uso de sementes mais resistentes e a adoção de substâncias menos nocivas à saúde aprovadas mundo afora, por que ainda queremos incentivar mais agrotóxicos? Por que não incentivar práticas mais sustentáveis, como a agricultura orgânica? Todos os incentivos e a permissividade da lei brasileira para o agrotóxico revelam o efeito de um forte lobby nas políticas públicas nessa área, que, no mínimo, estão subestimando os riscos e o custo de doenças que podem surgir no futuro.
Será que incentivar agrotóxicos hoje é um investimento que vai gerar resultados econômicos maiores do que o custo de se tratar esses doentes daqui a algumas décadas? Nossos gestores precisam fazer esse questionamento. Assim como precisam se questionar se não vale a pena corrigir a falta de saneamento básico no Brasil, um problema negligenciado e que leva a custos bilionários, que poucos percebem.
Esse é o tema do próximo episódio da Série Saúde é Investimento. Um grande abraço e eu te vejo no próximo vídeo.