Queridos irmãos e irmãs, no mistério da epifania do Senhor, nós celebramos três acontecimentos: a visita dos Magos, celebrada no último domingo; o batismo do Senhor, celebrado hoje; e as Bodas em Caná, que comemoraremos no próximo domingo. O Evangelho está, por assim dizer, dividido em duas partes. Os dois primeiros versículos nós já os lemos e comentamos durante o tempo do Advento; por isso, eu vou me ocupar apenas dos dois últimos versículos, aqueles que falam sobre o batismo do Senhor.
Porém, para que não fiquemos um pouco em suspenso, eu vou começar, na verdade, pelo último verso do Evangelho: quando do céu veio uma voz: "Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem. " Essa frase é tomada de dois textos da Escritura. O primeiro é o Salmo 2, quando Deus diz ao Messias: "Tu és meu Filho, eu hoje te gerei.
" Porém, essa segunda expressão: "Tu és o meu Filho amado, o meu Filho querido; em ti ponho o meu bem-querer" ou "em ti eu me comprazo, em ti eu coloco a minha predileção", tem a ver com a primeira leitura que escutamos: "Eis o meu servo, eu recebo; eis o meu eleito, nele se comprás minha alma. Pus meu Espírito sobre ele; ele promoverá o julgamento das nações. " Esse trecho abre o chamado livro do Servo Sofredor dentro da profecia de Isaías.
O Servo Sofredor é uma imagem contida no livro do profeta Isaías, que tem uma múltipla possibilidade de interpretação. Em primeiro lugar, significa o povo de Israel sofrido; significa também o próprio profeta Jeremias, que sofreu e é considerado como um profeta sofredor, um Servo sofredor. Mas também se refere ao Messias, a Jesus, aquele que vem para carregar o sofrimento do seu povo.
Ou seja, no relato do batismo do Senhor, São Lucas toma o relato do Servo Sofredor e coloca aqui a imagem do Cristo como aquele que vem para realizar um sacrifício. Portanto, nós temos um paralelismo entre o batismo do Senhor e a sua paixão. O batismo é uma espécie de antecipação da paixão.
Então, o versículo 21, partindo do início, diz: "Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo. " Ora, queridos irmãos, vejam que coisa interessante: nos outros Evangelhos, fica claro, por exemplo, no Evangelho de São Mateus, claríssimo que quem batiza Jesus é São João Batista. Inclusive, há uma espécie de resistência: São João Batista diz: "Não és tu quem me deves batizar.
" E aí Jesus lhe retruca, dizendo: "Mas eu vim para cumprir toda a justiça; convém que eu seja batizado por ti. " Aqui, o texto não diz que Jesus foi batizado por São João Batista. É interessante que a primeira parte do Evangelho recupera algo da pregação do Batista, mas nos dois versículos, aliás, nos quatro versículos que se omitem, que nós lemos: 15 e 16, depois se omite 17, 18, 19, 20, e aí voltamos a ler 21 e 22.
Nesses quatro versículos omitidos, se fala da prisão e da morte de São João Batista. Portanto, São Lucas estaria dizendo que Jesus não foi batizado por São João Batista? Não, não me parece.
Se nós concluíssemos isso, estaríamos forçando o texto. O que São Lucas quer aqui salientar é o fato de que Jesus se fez contar entre os pecadores. Ele não chegou para ser batizado como quem chama a atenção sobre si; não existe nenhum diálogo, nada de diferente como um a mais.
Ele chega e é batizado. Por que São Lucas coloca isso desse modo? Ora, é porque, como ele descreve a cena do batismo do Senhor em paralelo com a sua missão mentora-sacrifical, nosso Senhor aqui representa a todos nós, pecadores.
Ele se torna solidário com a nossa condição; ele chama sobre si o nosso pecado, fazendo-se contar entre todos os pecadores. Ele, que é santo, que é imaculado, puro, ele se faz solidário a nós. Continua São Lucas: "Enquanto rezava, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como de pomba.
" O texto, mais literalmente traduzido, seria "em forma corporal, como pomba". São Lucas é o evangelista que mais fala sobre a oração; ele mostra Jesus orando em diversas circunstâncias. Então, o texto diz que Jesus foi mergulhado e, enquanto ele rezava, o céu se abriu.
Vejam que coisa interessante: no mesmo relato do Servo Sofredor, agora no capítulo 53, aliás, de Isaías, o profeta diz: "Por isso, vou partilhar muitos com ele, e com os fortes dividirá os despojos; pois entregou à morte sua própria vida, foi contado entre os criminosos; ele, porém, estava carregando os pecados de muitos e agora intercede pelos transgressores. " É a mesma sequência que aparece aqui, descrita no ato do batismo: ele se faz contar entre os pecadores, ele é mergulhado, levando os pecados de todos nós, e ele sai das águas intercedendo pelos transgressores. A oração de Jesus, a oração de Jesus é o que abriu o céu.
Enquanto rezava, o céu se abriu; a intercessão do Senhor por nós, a oração, a interpolação de Jesus em nosso favor é isso que abriu o céu. O céu estava trancado pelo nosso pecado. São Marcos diz que os céus rasgaram-se, inclusive diz no plural, “os céus rasgaram-se”.
São Lucas diz: "O céu se abriu. " Ou seja, a imagem é a do Paraíso fechado; quando Adão pecou, segundo o livro do Gênesis, Deus colocou dois querubins com espada de fogo para que fechassem a entrada do jardim. Ou seja, o Senhor abriu para nós as portas do céu, e do céu o Espírito Santo desceu sobre Jesus.
Do céu, o Espírito Santo desceu sobre a humanidade de Jesus em forma corporal, como pomba. Significa que o Espírito Santo se encarnou numa pomba. Não significa forma corporal, mas com a aparência visível.
Então, nesse sentido, a tradução um pouco dinâmica aqui do lecionário está bem: o Espírito Santo apareceu visivelmente sobre Jesus. Essa vinda do Espírito Santo em forma de pomba tem muitos significados; ela remete, por exemplo, à criação. Quando nós lemos o livro do Gênesis, logo nos primeiros versículos: "No princípio, criou Elohim os céus e a terra.
A terra era sem forma e vazia, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas". Também no livro do Gênesis, lá no capítulo 8, quando do fim do dilúvio, Moisés solta uma pomba, e a pomba volta trazendo um ramo de oliveira no bico para dizer que a vida ressurgiu. E mais do céu veio uma voz; no livro do Gênesis, nós vemos essa construção: "O Espírito de Deus pairava sobre as águas", e disse Deus: "Haja luz".
Ou seja, a voz de Deus se fez ouvir. Ora, portanto, aqui o que São Lucas está nos mostrando é que o início do ministério de Jesus é o início de uma nova criação. O Pai ratifica a sua identidade.
O Espírito Santo vem sobre ele porque, afogando os nossos pecados nesse dilúvio, e vale a pena lembrar aquilo que dizia o profeta no Velho Testamento: "Eu lançarei ao mar os vossos pecados". Ele abre para nós o céu e Deus recomeça a obra da sua criação em Cristo. Como diz São Paulo na segunda carta aos Coríntios: “Aquele que está em Cristo é nova criatura”, porque ele é o princípio da nova criação de Deus.
“Tu és o meu Filho amado; em ti ponho o meu bem querer. ” Essa é a sua identidade: quem ele é. Ele é o Filho, e nós somos filhos na filiação dele.
Nele, nós nos tornamos filhos amados, e o Pai encontra o seu prazer em nós, se encontrando com o seu Filho, a vida do seu Filho em nossa vida. Qual a conclusão ou qual lição nós podemos tirar do evangelho de hoje? Eu queria simplesmente salientar aquilo que é característico em São Lucas: um aspecto.
Jesus recebeu o batismo e, enquanto rezava, o céu se abriu. Ou seja, a oração é o prolongamento do mergulho batismal. A oração é o meio pelo qual nós continuamente buscamos mergulhar em Deus.
É pela oração que o céu se abre, graças a Jesus Cristo, pelos seus méritos, porque ele nos lavou dos nossos pecados, e porque nele nós somos filhos de Deus Pai. A oração é o meio pelo qual nos vem a graça. O Espírito Santo é chamado na teologia de "graça incriada", como que é a síntese de todas as graças.
Portanto, meus irmãos, nós podemos, no início desse ano, ainda estamos começando, não esgotamos ainda a primeira quinzena, fazer o propósito de orar, de mergulharmos na misericórdia de Deus, de sermos cheios do Espírito Santo através da oração. Todas as graças que Deus tem a nos dar vêm através desse mergulho, o mergulho da vida espiritual. É nesse mergulho que a voz de Deus se faz ouvir; ele fala conosco.
Mas não apenas isso; a sua palavra é criadora. São Paulo diz na carta aos romanos que Abraão sacrificou seu filho, crendo no Deus que traz do nada à existência, ele faz as coisas que não são serem, ele chama à vida pela sua palavra. Você e eu não fomos apenas batizados com água; nós também fomos batizados no Espírito Santo.
Ou seja, o batismo de João Batista era apenas um banho corporal que acompanhava o arrependimento dos homens, mas o batismo de Jesus não. Quando você molha uma pedra, você só a molha por fora; mas quando você rega uma planta, ela absorve a umidade, pois ela é viva. Ora, Jesus nos batiza no Espírito Santo, nessa vida de Deus que flui em nós, que flui em nossa vida, que nos transforma por dentro, que nos torna não apenas vivos, mas que nos permite não apenas sermos nutridos, mas que também nos faz férteis.
Tudo isso é acessível a nós através da oração, que em São Lucas é o prolongamento, o perfeito prolongamento do batismo. Peçamos ao Senhor que ele crie em nossos corações espírito de súplica, e que nós, queridos irmãos, sejamos profundamente tomados por Deus, para que, neste ano, nós possamos dar um salto na nossa vida espiritual e sairmos das margens. Como disse Jesus no capítulo 5 de São Lucas aos discípulos: "Lança a barca para o alto mar".
Ou seja, vai para águas mais profundas. Mergulha na oração, mergulha! Não tenha medo de mergulhar, porque é dali que Deus faz brotar vida; ele nos traz, no Espírito Santo, todos os bens, mas sobretudo ele nos faz redescobrir a nossa verdadeira identidade como filhos amados, no Filho em quem ele se compraz.