É possível dizer que Lula foi inocentado na Lava Jato?

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BBC News Brasil
Após ficar 580 dias preso e ser impedido de disputar a eleição presidencial de 2018, o ex-presidente...
Video Transcript:
Lula foi condenado em mais de uma instância na Justiça, não pôde disputar a eleição de 2018, e ficou 580 dias na prisão. Depois, reviravolta. Teve todas as condenações anuladas pelo STF, foi solto e está concorrendo à Presidência.
Mas afinal, ele foi ou não inocentado das acusações de corrupção? Eu sou Mariana Schreiber, da BBC News Brasil, e é isso que eu explico neste vídeo. Hoje, o ex-presidente exibe a reviravolta como prova da sua inocência e afirma que foi perseguido pela operação Lava Jato.
Mas a polêmica continua: afinal, qual é a situação de Lula com a Justiça? Eu vou explicar esse debate em três pontos. Primeiro, vamos lembrar as acusações contra Lula e o que diz a defesa.
Depois, explico por que as condenações foram anuladas. E por fim: afinal, Lula foi inocentado? É inocente perante a Justiça?
Começamos com um rápido histórico das denúncias. Lula enfrentou uma série de acusações na Lava Jato, operação que revelou um grande escândalo de desvio de bilhões de reais na Petrobras e em outras empresas e obras públicas durante os governos do PT. Hoje, todos os desdobramentos da Lava Jato contra Lula na Justiça estão encerrados ou suspensos.
Grosso modo, houve dois caminhos para esses processos: em alguns, Lula foi absolvido, ou seja, a Justiça considerou que não havia provas de que havia cometido crimes. Foi o caso, por exemplo, do processo conhecido como “Quadrilhão do PT”, em que Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff e outros petistas eram acusados de formar uma organização criminosa. Ao absolver todos os acusados, o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal em Brasília, considerou que a denúncia tentou "criminalizar a atividade política".
Outro exemplo foi a absolvição da acusação de tentar atrapalhar as investigações, numa suposta tentativa de comprar o silêncio do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. A maioria dos processos contra Lula, porém, foram anulados ou interrompidos principalmente por uma razões técnicas: a justiça entendeu que houve ilegalidades na forma como o então juiz federal Sergio Moro conduziu os processos. Ou seja, não houve uma análise final de mérito das acusações, para decidir se elas eram verdadeiras ou falsas, porque a Justiça entendeu que não é possível fazer essa análise em um processo em que os direitos do acusado não foram respeitados.
Isso aconteceu, por exemplo, nos dois processos mais conhecidos, em que Lula chegou a ser condenado: o do tríplex do Guarujá e o do sítio de Atibaia. No primeiro, Lula foi acusado de receber uma cobertura no Guarujá, no litoral paulista, do grupo OAS como um suposto toma lá dá cá por desvios de recursos da Petrobras. Ele tinha comprado com sua mulher Marisa Leticia um apartamento menor, no mesmo prédio, em 2005, no valor de 195 mil reais.
Mas a cooperativa que iria construir o empreendimento faliu e a obra foi assumida pela OAS em 2009, quando o casal tinha pago 57 prestações no valor total de quase 180 mil reais. A acusação sustentava que, após a OAS assumir o empreendimento, a cobertura teria sido reservada para Lula no lugar do outro apartamento. Lula e Marisa Leticia chegaram a visitar o imóvel em 2014 para ver as obras realizadas pela OAS na cobertura.
Ainda segundo a acusação, o tríplex estava sendo personalizado para o casal e não tinha sido passado formalmente para o nome de Lula como forma de ocultar o crime. Segundo a Lava Jato, a diferença entre o que o petista pagou no imóvel menor e o valor da cobertura com as obras feitas pela OAS seria de 2,2 milhões de reais. Já a defesa diz que a OAS estava tentando vender o tríplex ao ex-presidente.
Afirma também que o casal de fato visitou o apartamento para avaliar sua compra, mas que acabou desistindo do negócio. No caso do sítio de Atibaia, Lula foi acusado de ser beneficiado por obras realizadas por OAS e Odebrecht no imóvel, no interior de São Paulo, que pertencia a um amigo seu e que o ex-presidente frequentava com sua família. Ou seja, eles viam uma forma de benefício indireto a Lula.
A defesa lembrava que o sítio não pertencia a Lula e dizia não havia qualquer prova concreta de que as obras foram pagas com dinheiro desviado da Petrobras. Insistia que as acusações se baseavam na palavra de delatores ou de outros réus do processo, que estariam tentando se beneficiar na Justiça ao envolver Lula no esquema. Lula e seus advogados diziam que as acusações eram uma perseguição política da Lava Jato contra Lula, com apoio de parte da grande imprensa brasileira com o objetivo de tirá-lo da vida política.
Nos dois processos, Lula foi considerado culpado pelo então juiz Sergio Moro. Nas sentenças, Moro considerou que os imóveis não estavam no nome de Lula como forma de ocultar os benefícios que estaria recebendo ilegalmente. Ele condenou o petista por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
As duas condenações foram confirmadas depois pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região. No caso do tríplex, isso ocorreu ainda em 2018, o que tornou Lula inelegível naquela eleição. Ele também foi preso naquele ano porque o STF autorizava a prisão após condenação em segunda instância.
Agora vamos entender o que levou às anulações dessas sentenças e o que isso significa. Primeiramente, o STF entendeu, em março de 2021, que esses processos não deveriam ter tramitado na Justiça de Curitiba. Pouco depois, em junho, a corte decidiu também que Moro não julgou Lula com imparcialidade.
Com isso, as condenações foram consideradas nulas, mas Lula ainda poderia responder às acusações em novos processos, que deveriam tramitar na Justiça de Brasília. Mas esse retorno à estaca zero acabou provocando a prescrição da pretensão punitiva. Ou seja, acabou o prazo legal para punição dos crimes, caso Lula fosse considerado culpado.
Mas você deve estar se perguntando: que diferença faz Lula ser processado em Curitiba ou Brasília? E por que somente após tantos anos o STF decidiu que a Justiça Federal do Paraná não era o foro adequado? Existe uma regra que determina que um processo criminal deve ocorrer na vara do local onde o suposto crime ocorreu.
Por exemplo, se um assassinato acontece em Copacabana, o julgamento ocorre na Justiça do Rio de Janeiro. Isso serve para evitar que um processo seja direcionado para um juiz específico, contribuindo para a neutralidade do julgamento. Inicialmente, os casos da Lava Jato estavam concentrados na vara do então juiz Sergio Moro.
Isso ocorreu porque a operação, que teve sua primeira fase em março de 2014, começou a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros e o ex-deputado federal do PP José Janene. Com o avançar das investigações e as informações obtidas em acordos de delação dos primeiros investigados, a operação passou a apurar crimes em outras regiões do país, nem sempre relacionados à Petrobras. A Lava Jato, porém, argumentou que havia uma conexão entre esses crimes e que todos deveriam ser investigados pela operação e julgados por Moro.
Desde o início, a defesa de vários investigados contestaram essa decisão e pediram que os casos fossem redistribuídos para outras varas de outros Estados. Diversos processos acabaram redirecionados principalmente para Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Mas o STF determinou que todos os casos que envolvessem a Petrobras deveriam ser mantidos com Moro – e Lula era acusado de ter sido beneficiado com recursos desviados da estatal.
Mas em março de 2021, o ministro Edson Fachin acolheu o argumento da defesa de que, na verdade, não havia elementos concretos na acusação comprovando que o petista teria interferido diretamente em contratos da Petrobras para favorecer OAS e Odebrecht em troca do tríplex ou das obras no sítio. Sua decisão depois foi confirmada pela Segunda Turma do STF. Eu conversei sobre isso com a professora da FGV e procuradora da República Silvana Battini, que atuou em casos da Lava Jato do Rio de Janeiro.
Hoje, ela avalia que foi um erro do STF não ter criado critérios mais objetivos para delimitar isso no início da operação. Essa, aliás, é uma das questões técnicas processuais mesmo que a gente podia ter naquele momento, fixado critérios. Quando aquilo tudo começou, era a primeira vez que você lidava com uma mecânica tão vasta de fatos ligados entre si.
Então, você podia ter uma interpretação sobre competência técnica muito extensa, que tornava o juiz de Curitiba quase um juiz universal. Isso aconteceu e o Supremo deixou. Depois, quando o Supremo veio colocar um freio, colocou criando um critério que não existia na lei.
Disse: “Olha, Curitiba, só o que for Petrobras”. Não existe competência em razão da vítima. Inventaram aquilo.
Então isso tudo realmente, dá uma visão de como a insegurança jurídica que o próprio Supremo acabou plantando mesmo. E o que explica essa mudança no STF anos depois? Aqui entra o contexto de enfraquecimento da Lava Jato.
Em 2019, uma série de reportagens do portal Intercept Brasil revelou supostos diálogos privados da força-tarefa da operação, inclusive conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e Sergio Moro, que indicavam uma espécie de conluio entre Ministério Público e o juiz nos processos contra Lula e outros acusados. Moro e os procuradores negam isso. Esses diálogos mostravam, por exemplo, que Moro teria sugerido aos procuradores ouvir uma testemunha que poderia incriminar o ex-presidente.
Foi nesse contexto que ganhou força o pleito antigo da defesa de Lula para que Moro fosse declarado suspeito nos processos em que havia julgado o petista antes de deixar de ser juiz para virar ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. Com o aumento do desgaste da Lava Jato, foi aumentando a expectativa de que Moro seria declarado parcial nos processos contra Lula. O que se diz nos bastidores de Brasília é que Fachin queria evitar que Moro fosse declarado suspeito e, por isso, decidiu aceitar o pedido da defesa para retirar os processos da vara de Curitiba.
O ministro argumentou na sua decisão que, após a mudança dos casos para outra vara, não fazia mais sentido julgar se Moro era ou não parcial. A preocupação de Fachin era que a declaração da suspeição do ex-juiz tivesse efeito mais amplo de anular não só as condenações, mas todas as investigações contra Lula em Curitiba. A maioria do STF, porém, discordou de Fachin e, com isso, a Segunda Turma analisou a suspeição de Moro e declarou que ele foi parcial contra Lula, provocando a anulação de todas as investigações.
E aí chegamos ao nosso terceiro e último ponto: afinal, é possível dizer que Lula foi inocentado nos casos do tríplex e do sítio? O professor de direito processual penal da USP Gustavo Badaró explica que o termo inocentado não existe dentro da linguagem jurídica e é usado de forma coloquial. Dentro das normas jurídicas, lembra ele, uma pessoa acusada pode ser condenada ou absolvida.
Na sua avaliação, não seria adequado numa linguagem leiga dizer que Lula foi inocentado nos casos do tríplex e do sítio porque isso passa a ideia de que ele foi absolvido. Eu acho que são duas situações diferentes. Uma é uma pessoa é acusada de alguma coisa, aquela acusação é julgada e ela é absolvida.
Outra coisa é uma pessoa ser julgada, ser acusada de alguma coisa, o processo acabar sendo anulado ou ser declarada a prescrição, sem que um juiz, ao final, diga que ele é culpado ou inocente. Essa é a situação do Lula em relação aos processos que começaram com Sérgio Moro. E se não tem declaração de culpabilidade, aí estão certos defensores dele: ele é considerado inocente, tão inocente quanto quem nunca foi processado.
O que me parece que tem um certo jogo de palavras é que ao querer dizer “o Lula foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal, parece que você está querendo dizer que o Supremo deu um atestado de idoneidade pra pessoa,. Mas afirmar que o Poder Judiciário inocentou, pelo menos numa linguagem leiga, a mim parece que dá uma ideia de que o Poder Judiciário declarou absolvição. Já para o professor de direito penal da UERJ Davi Tangerino, não faz sentido colocar a questão se Lula foi ou não inocentado, a partir do momento em que os processos foram considerados nulos.
Para alguém ser inocentado ou condenado, existe um pressuposto lógico, no Estado Democrático de Direito, que ele tenha sido julgado, entre outras coisas, por um juiz imparcial. Então, nos casos da Lava-Jato (julgados por) Moro, quando você tem a declaração pelo Supremo de parcialidade do Moro, o binômio condenado ou inocente não faz mais sentido porque ele pressupõe uma denúncia recebida por um juiz competente e imparcial, um julgamento e aprovação de uma sentença. Quando você retira dessa equação o juiz imparcial, desaparece, via de consequência, o binômio condenado ou inocentado, e aí continua a valer o quê?
A presunção de inocência constitucional. A procuradora Silva Battini também diz que a discussão é irrelevante do ponto de vista jurídico. Já no campo política, nota ela, cabe a cada eleitor fazer seu juízo sobre Lula.
Essa história do Lula, da anulação dos processos dele, etc e tal, você pode desdobrar em dois aspectos: o aspecto jurídico e o aspecto político. O aspecto jurídico não tem a menor relevância o que aconteceu: assim, o fato de ele ser inocentado ou não ser inocentado. Os processos do Lula desapareceram porque foram anulados.
Juridicamente ele está absolutamente pleno no exercício de suas capacidades eleitorais. Também não existe nenhum juízo firmado sobre a culpa. Se você não tem nenhum juízo definitivo sobre culpa, o que prevalece é a presunção da inocência.
Isso é o que a lei diz, o que que a Constituição diz. No plano político, isso aí é absolutamente incontrolável, cada eleitor que faça as suas análises, mas isso aí é incontrolável para ninguém. A Constituição estabelece o princípio da presunção da inocência.
Isso significa que toda pessoa é considerada inocente até que se prove o contrário em um julgamento realizado dentro da lei. Dessa forma, com a anulação dos processos contra Lula, ele recuperou seu status de inocente perante a Justiça. Eu procurei a defesa de Lula.
Em nota, o advogado Cristiano Zanin diz que foram encerrados na Justiça “26 procedimentos que foram abertos indevidamente contra o ex-presidente”. Ele destacou também que a defesa obteve “a primeira decisão proferida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em favor de um cidadão brasileiro, reconhecendo que Lula sofreu violação aos seus direitos fundamentais”. Ele também voltou a dizer que seu cliente foi vítima de perseguição.
“Felizmente, conseguimos vencer o caso e permitir que Lula pudesse resgatar todos os seus direitos, inclusive os direitos políticos, permitindo que ele seja o candidato à Presidência da República mais bem posicionado nas eleições deste ano”, acrescentou ainda o advogado. E você deve estar se perguntando: o que acontece com eventuais novas acusações contra Lula caso seja eleito presidente? Todos os processos da Lava Jato contra Lula estão encerrados.
Ainda que qualquer nova acusação surja, a Constituição impede que um presidente seja processado durante o mandato por crimes anteriores à posse. Com o acirramento da corrida eleitoral, a tendência é que os adversários de Lula usem cada vez mais a Lava Jato para tentar tirar votos do ex-presidente. Até porque o escândalo de corrupção na Petrobras durante o governo petista ainda pesa contra o partido.
Mesmo que o STF tenha entendido que a operação cometeu abusos, 6 bilhões de reais desviados da Petrobras foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações. É claro que o PT também deve rebater esses ataques reafirmando a inocência de Lula e acusando a Lava Jato de ter perseguido o partido politicamente. Os petistas gostam de lembrar que Moro e Dallagnol entraram de vez para a política e são candidatos na eleição deste ano.
Bom, o saldo dessa batalha pela cabeça do eleitor o Brasil vai ser conhecido em outubro, nas urnas. Já a opinião pública segue bem dividida. Uma pesquisa da consultoria Quaest de junho mostrou que 48% dos eleitores acreditam que Lula foi condenado corretamente, enquanto 43% têm opinião contrária.
Espero que esse vídeo tenha ajudado você a entender melhor esse debate. Obrigada pela audiência e até a próxima.
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