quando a gente chega a essa idade 78 anos o que fica é a memória memórias boas ruins algumas que a gente queria esquecer Mas que insistem em ficar eu não sei porque demorei tanto tempo para contar essa história talvez fosse vergonha talvez fosse medo mas hoje com tudo que Vivi sinto que é hora de falar meu nome é Dolores eu cresci numa fazenda num canto esquecido desse Brasil grande era só mato e sil ao redor quebrado às vezes pelo som dos porcos no chiqueiro minha mãe morreu quando era pequena e meu pai bom ele era
tudo que eu tinha e ao mesmo tempo ele era meu maior pesadelo Eu nunca achei que fosse contar essa história passei décadas guardando tudo para mim achando que se eu simplesmente ignorasse As Memórias iriam desaparecer Mas elas nunca foram embora elas me acompanhavam em cada noite silenciosa em cada sonho interrompido o hoje com 78 anos eu decidi que era hora hora de contar o que Vivi não porque seja fácil mas porque talvez isso ajude alguém a encontrar sua própria voz eu nasci e cresci em uma fazenda isolada no meio do nada minha mãe morreu quando
eu tinha 6 anos a partir dali meu pai era tudo que eu tinha Ou pelo menos era o que eu achava ele nunca foi carinhoso sempre foi um homem bruto mas depois que minha mãe se foi ele mudou ele ficou no começo ele só gritava depois os gritos viraram Tapas e antes que eu entendesse o que estava acontecendo ele passou a entrar no meu quarto à noite eu era só uma menina tinha 9 anos não sabia o que era certo ou errado só sabia que aquilo não parecia certo ele dizia que era nosso segredo que
ninguém podia saber e eu acreditei porque o que uma criança sabe sobre o mundo não é eu achava que era assim que as coisas tinham que ser durante o dia ele me fazia trabalhar como gente grande eu carregava baldes de água alimentava os porcos limpava o chiqueiro e à noite bom à noite ele dizia que eu tinha que ser obediente mas teve um dia em que eu disse não e foi aí que a verdadeira punição começou se não quer obedecer Então durma que ele disse com a voz firme cheia de raiva ele me empurrou para
dentro do chiqueiro trancou a porta e foi Bora eu fiquei lá no meio doss porcos com aquele cheiro insuportável de fezes e lama tentei me encolher num canto mas os porcos vinham perto curiosos empurrando com os Focinhos eu chorei até não ter mais forças naquela noite alguma coisa dentro de mim mudou eu não sabia o que era mas me sentia suja perdida como se eu mesma fosse parte daquele chiqueiro mas essa foi só a primeira vez depois disso toda vez que eu tentava resistir ele me jogava de volta lá era o castigo dele um castigo
que parecia dizer se você não serve para mim então você não serve para nada eu cresci achando que isso era verdade essa foi só a primeira das muitas noites que passei no chiqueiro Eu nunca imaginei que algo tão humilhante e doloroso fosse me acompanhar por tanto tempo mas naquela época eu só queria sobreviver e para sobreviver eu precisava ficar em silêncio depois daquela primeira noite no chiqueiro eu percebi que minha vida nunca mais seria a mesma eu tinha apenas 9 anos mas parecia carregar o peso de uma existência inteira cada vez que meu pai me
lançava naquele lugar algo dentro de mim se partia ainda mais o cheiro de lama fezes e suor misturava-se ao medo e a vergonha que tomavam conta de mim era como se eu estivesse desaparecendo virando ninguém o chiqueiro ficava logo atrás da casa às vezes durante o dia eu ouvia os porcos unindo e sentia meu estômago revirar eles eram os únicos que testemunhavam meu castigo mas não podiam fazer nada e eu comecei a me perguntar Será que no fundo eu também era um deles meu pai não dizia diretamente mas era como se suas ações gritassem que
eu não valia mais que aqueles animais na Vila as pessoas me olhavam diferente eu não sabia explicar mas sentia seus olhos sobre mim talvez porque muitas vezes o cheiro do chiqueiro ainda estivesse impregnado na min minha pele as crianças Riam chamavam-me de coisas que eu não queria ouvir adultos balançavam a cabeça em reprovação mas ninguém fazia perguntas Eu queria gritar contar a alguém o que estava acontecendo mas nunca tive coragem Meu pai sempre dizia se você abrir a boca Ninguém vai acreditar e quem vai te proteger hein nem no fundo ele estava certo quem iria
acreditar numa menina de 9 anos eu era só mais uma criança sem uma fazenda esquecida sem mãe sem saída uma das noites mais difíceis aconteceu quando uma tempestade atingiu a fazenda meu pai estava bêbado como de costume quando ele veio me buscar para a cama eu me neguei eu gritei ele ficou furioso arrastou-se pelos cabelos até o chiqueiro e me jogou lá dentro com tanta força que batia a cabeça na madeira eu fiquei deitada no chão vendo tudo girar enquanto a chuva começava a inundar o lugar a lama sub rápido os porcos corriam de um
lado para o outro assustados com o trovão eu pensei que fosse morrer que aquela lama ia me engolir que eu nunca mais sairia dali quando meu pai veio me buscar na manhã seguinte olhou para mim com desprezo da próxima vez obedeça ele disse como se eu fosse uma criança rebelde e não uma menina tentando sobreviver a um pesadelo na escola os professores começaram a perceber que algo estava errado eu estava sempre com roupas sujas marcas nos braços e um olhar vazio uma delas a professora Clara tentou se aproximar Dolores você está bem ela perguntou um
dia enquanto eu estava no Recreio sentada sozinha eu olhei para ela querendo desesperadamente contar tudo mas quando abri a boca as palavras não saíram era como se meu pai estivesse lá segurando minha língua aos 12 anos a rotina já era uma parte de mim eu sabia o que esperar as noites no chiqueiro os gritos do meu pai o trabalho sem fim na fazenda eu tinha parado de sonhar porque sonhar era perigoso toda vez que eu imaginava uma vida diferente parecia que o castigo ficava pior era como se meu pai pudesse sentir que eu estava tentando
escapar Nem que fosse só na minha mente Mas mesmo nas piores situações há pequenos momentos de esperança um dia enquanto eu limpava o chiqueiro vi uma porquinha sem nascida lutando para se levantar ela era pequena frágil e todos os outros porcos pareciam ignorá-la por algum motivo senti que precisava ajudá-la peguei-a nos braços e a levei para um canto mais seco Aquela pequena criatura tão vulnerável quanto eu tornou-se minha companheira chamei-a de estrela não sei porquê talvez porque ela era a única coisa naquele lugar sujo que parecia trazer um pouco de luz para minha vida sempre
que eu era jogar no chiqueiro estrela vinha até mim deitando ao meu lado era como se ela entendesse a dor que eu carregava com o passar dos anos aprendi a esconder minhas emoções meu pai podia gritar bater me humilhar mas eu não deixava mais que ele visse as lágrimas no fundo eu sabia que era isso que ele queria quebrar-me completamente e embora ele tivesse conseguido em muitos aspectos havia uma parte de mim que ainda resistia uma pequena chama que se recusava a apagar eu comecei a contar os dias não sabia Para que exatamente mas sentia
que precisava manter alguma noção do tempo cada riscar de linha na madeira do chiqueiro era um lembrete de que eu ainda estava ali de que eu ainda existia mas também era um lembrete de que aquela vida precisava acabar de um jeito ou de outro eu tinha 13 anos quando percebi que precisava de algo mais do que esperança para sobreviver meu pai era um homem cruel mas também era previs eu comecei a estudar seus padrões seus horários a maneira como ele se comportava quando estava bêbado ou sóbrio não era um plano não ainda mas era um
instinto de sobrevivência naquela época eu já sabia que ninguém viria me salvar a professora Clara Que tantas vezes tentou me ajudar havia se afastado talvez porque viu que eu nunca respondia a suas perguntas ou porque entendia que havia coisas que ela não poderia mudar os vizinhos bem eles tinham suas próprias vidas minha existência se resumia à Fazenda ao chiqueiro e ao silêncio foi nessa solidão que comecei a ouvir minha própria voz no chiqueiro à noite eu falava comigo mesma baixinho repetia histórias que minha mãe contava antes de morrer inventava finais felizes para uma vida que
parecia não ter futuro estrela minha companheira de lama era minha única audiência Eu segurava aquela porquinha nos braços e um dia estrela nós vamos sair daqui mas meu pai parecia perceber quando eu começava a criar essas pequenas esperanças era como se ele pudesse sentir o mínimo traço de felicidade em mim e fazia questão de esmagá-lo uma noite quando eu estava no chiqueiro Ele entrou lá com uma corda você acha que esses porcos são seus amigos ele disse com um sorriso Cruel antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo ele pegou o estrela eu gritei
implorei mas ele não me ouviu ele levou-a embora e tudo que ouvi foi o som dela guinchando enquanto ele desaparecia na escuridão eu nunca mais vi estrela no dia seguinte quando sentei para comer havia carne de porco na mesa eu sabia o que era mas não consegui dizer nada apenas engoli o choro junto com cada pedaço que ele me obrigou a comer depois disso algo dentro de mim morreu não chorei mais nem gritei passei a obedecer em silêncio porque sabia que resistir significava perder mais do pouco que eu ainda tinha mas também comecei a planejar
meu pai era forte mas eu sabia que ele tinha fraquezas a bebida era uma delas e foi a bebida que me deu a ideia eu não sabia muito sobre venenos Mas sabia que algumas plantas da Fazenda eram perigosas minha mãe costumava avisar sobre elas quando eu era pequena nunca toque nisso Dolores pode matar uma pessoa na época essas palavras pareciam apenas uma advertência agora elas pareciam uma solução passei meses observando meu pai esperando o momento certo enquanto isso continuei riscando as paredes do chiqueiro marcando os dias cada riscar era um passo a mais rumo à
liberdade um lembrete de que minha vida não pertencia a ele por mais que ele tentasse me convencer do contrário aos 15 anos eu já não era mais uma criança meu corpo crescia mas minha alma parecia velha cansada de tanto sofrimento eu sabia que se não fizesse algo logo acabaria morrendo ali naquela Fazenda sem ninguém para lembrar que eu existi e foi nesse pensamento que encontrei minha força uma noite enquanto meu pai estava na varanda com a garrafa de cachaça na mão eu me aproximei pai quer que eu pegue mais bebida para você perguntei com a
voz mais submissa que consegui fazer ele apenas Balançou a cabeça sem sequer olhar para mim peguei a garrafa e fui até a cozinha lá escondida atrás do armário estava a planta que eu tinha colhido semanas antes meus dedos tremiam enquanto esmagava as folhas e misturava o líquido esverdeado na bebida eu sabia que não podia errar uma quantidade pequena demais não faria nada grande demais poderia levantar quando terminei voltei à varanda e entreguei a garrafa ele tomou um gole depois outro não disse nada mas também não pareceu desconfiar naquela noite fiquei acordada no chiqueiro esperando Meu
Coração batia tão forte quecia que ia explodir cada barulho na casa fazia meu corpo se encolher quando finalmente ouvi o som de algo Caino no chão soube que tinha funcionado na manhã seguinte encontrei meu pai desmaiado no chão da sala ele estava vivo mas fraco demais para se levantar a primeira cois que pensei foi que deveria ter terminar mas ao invés disso peguei a chave do chiqueiro e a escondi no meu quarto não sei porquê talvez porque parte de mim ainda tinha talvez porque mesmo depois de tudo eu não sabia se era capaz de tirar
uma mas naquele momento algo mudou pela primeira vez em anos eu me senti no controle meu pai não era Invencível ele podia cair e isso era tudo que eu precisava saber quando meu pai começou a se recuperar algo nele mudou ele não não sabia o que havia acontecido naquela noite mas parecia mais cauteloso talvez fosse o instinto dele dizendo que eu não era mais a mesma menina assustada eu ainda obedecia ainda trabalhava mas algo no meu olhar o fazia ele nunca mencionou diretamente Mas a forma como me olhava era diferente como se eu fosse uma
eu usei isso a meu favor continuei sendo a filha submissa na superfície mas dentro de mim uma força CR a cada dia que passava eu me sentia mais confiante mais capaz de tomar o controle da minha vida comecei a planejar minha saída daquela mas antes de partir Eu sabia que precisava garantir que ele nunca mais pudesse machucar n aos 16 anos meu corpo já não era o de uma criança eu estava mais forte fisicamente e emocionalmente mas ainda precisava agir com cuidado qualquer erro poderia ser eu passei meses colhendo informações observando as pessoas na Vila
aprendendo sobre os caminhos para fora também continuei recolhendo as folhas venenosas testando pequenas doses em alimentos para ter certeza de que a fórmula Era efic a fazenda era meu inferno mas também era o lugar onde eu tinha aprendido a sobreviver os porcos não estavam mais lá para me acompanhar mas eu ainda sentia o cheiro da lama e ouvia os grunhidos em minha às vezes durante as noites eu acordava suando com a sensação de estar novamente entre eles lutando para era como se meu passado se recusasse a me deixar ir mas eu estava determinada a romper
essa corrente foi em uma tarde abafada de verão que tudo chegou ao Ápice meu pai estava na cozinha reclamando como sempre enquanto eu preparava o ele tinha voltado a beber e eu sabia que era a oportunidade que eu estava esperando peguei a garrafa de cachaça que ele tanto adorava e adicionei a dose letal do veneno desta vez não havia hesitado quando servi o copo Ele olhou para mim com aquele olhar de superioridade que tanto me irritava você nunca vai sair daqui Dolores ele disse com um tom carregado de sarc eu não respondi Apenas fiquei ali
observando enquanto ele levava o copo à boca e os minutos que se seguiram foram os mais longos da minha vida ele começou a tosir a mão tremendo enquanto tentava se levantar o que você fez ele gritou mas a força dele já estava Se esvaindo Eu Apenas fiquei ali o olhando enquanto ele caía a eu deveria sentir alívio mas o que senti foi um vazio anos de dor sofrimento e medo estavam prestes a acabar mas não havia vitória apenas Sil fui até o chiqueiro vazio e sentei no lugar onde costumava passar as noites lá sozinha chorei
como não chorava quando voltei para casa ele já não respirava mais eu sabia o que precisava fazer enterrei o no fundo da Fazenda no mesmo lugar onde tantas vezes fui ctig depois juntei o pouco que tinha e deixei aquele lugar para o caminho até a Vila foi longo e silencioso a cada passo eu sentia o peso da minha decisão mas também a liberdade que nunca havia experimentado aos 18 anos finalmente era dona da minha eu não sabia o que o futuro reservava Mas sabia que nunca mais seria uma hoje aos 78 anos ao contar minha
história não procuro pena nem perdão apenas quero que as pessoas saibam que mesmo nas situações H uma Nem sempre é justa Nem sempre é bonita mas é possível porque no final a sobrevivência não é sobre vencer ou perder é sobre continuar apesar de