"Jeitinho": o problema do Brasil é o brasileiro?

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DW Brasil
O que chamamos de jeitinho brasileiro é a base da corrupção sistêmica no país? A pergunta vem sendo...
Video Transcript:
O que vem a sua cabeça quando  você pensa em jeitinho brasileiro? Corrupção? Ele pode estar associado à corrupção quando a pessoa busca levar  uma vantagem relacionada à rede de relações que ela experimenta.
Quando a gente está falando de corrupção, a  gente está falando de algo muito mais sério, de uma elite que tem capacidade de gerir  recursos públicos e está desviando recursos que deveriam ser repartidos entre todos  ou servir para diminuir a desigualdade. Se você fizer uma pesquisa rápida na internet,  vai se dar conta que a expressão jeitinho carrega uma ambiguidade. Pode servir para descrever  um simples conserto dentro de casa que alguém faz sozinho e diz: "dei um jeitinho".
. .  até situações negativas em que o jeitinho pode estar inserido numa manobra maior para  burlar a lei em favor próprio ou da família.
Eu acho que é um perigo muito  grande reforçarmos essa mentalidade de que o jeitinho brasileiro é  associado a uma corrupção sistêmica. Mas, afinal, por que é que  a gente age dessa forma? Dá para dizer que a coisa só de brasileiro?
D  DW, conversou com especialistas para entender: seria esse um traço do nosso espírito criativo,  adaptado a um contexto de desigualdades e luta por sobrevivência? Ou um disfarce social  para tentar tirar vantagem de tudo? Como eu disse, jeitinho é um termo amplo.
A  gente poderia falar em jeitinho pra contar sobre uma gambiarra que fez em casa, um atraso para  um compromisso, seguido de desculpa criativa, uma fila furada com a ajuda de alguém. Mas também  poderíamos nos referir a casos em que um jeitinho aqui e outro ali acabam em desvio de verba pública  para favorecer um determinado grupo de pessoas. É tudo jeitinho mesmo?
O brasileiro seria,  então, uma espécie de corrupto por natureza? Calma. A pergunta é uma provocação, claro,  só que nós vamos chegar a essa resposta ao longo do vídeo e saber ainda se essa  coisa de jeitinho é exclusividade nossa.
Antes, porém, é importante olharmos  no espelho um pouquinho, compreendemos melhor o que é esse famoso jeitinho e como  ele se tornou parte da nossa identidade. Existem muitas definições. Para não  complicar tanto nosso começo de conversa, a gente separou uma: a deste livro  aqui.
A autora, referência no tema, escreveu o seguinte: jeitinho é uma forma  especial de resolver algum problema ou situação difícil ou proibida. E continua:  uma solução criativa para alguma emergência. Ou seja, todo jeito parte, na perspectiva do  texto, de um imprevisto que precisa ser resolvido.
O tipo de solução faz essa característica, flutuar  entre duas categorias mostradas neste gráfico: o favor e a corrupção. O primeiro  como um aspecto positivo; o segundo, claro, como negativo. Um crime até.
O jeito está, na análise do livro,  justamente entre uma coisa e outra. Mas não é necessariamente  nenhuma das duas: complicou mesmo assim? Vamos ouvir então a Suylan Almeida, líder do grupo de pesquisa Estado e Sociedade  no Combate à Corrupção.
O jeitinho brasileiro ele se configura pela busca da vantagem  pessoal em detrimento dos outros, com quebra de regras estabelecidas,  e com uso dessa mesma simpatia, né? Do brasileiro, do jeitinho brasileiro, com fins  de ganho pessoal de de ganho pessoal. Espera aí?
Isso não é corrupção? Não  precisa responder tão rápido. Pode pensar duas vezes.
É que depende. Você vai  entender as nuances com as nossas especialistas ao longo do vídeo. E para fazer essa distinção, é fundamental nos aprofundarmos um pouco  nos exemplos de jeitinho no nosso dia a dia.
Vocês podem, inclusive, contribuir aqui  nos comentários. Fiquem à vontade para escrever. Um exemplo: você faz um apelo numa  determinada repartição pública para que seu processo ande.
Teoricamente, tudo dentro da  lei. Ocorre uma flexibilização por parte do funcionário público, talvez um amigo, diante de  uma burocracia desnecessariamente complicada, enferrujada. Outro exemplo: o atraso e a  tolerância a ele na sociedade brasileira.
Não seria isso um grande trato social  não falado que acabou se desenvolvendo, um jeitinho, num lugar em que muita gente está na Batalha para sobreviver?  Num lugar em que o trânsito e o transporte público muitas vezes  são tão caóticos e imprevisíveis? É nesse sentido que o proibido, o incorreto, é relativizado numa espécie de  acordo informal entre as pessoas, como explica a professora do departamento  de comunicação da PUC do Rio, Bruna Aucar.
Então, essa informalidade, essa ideia de trazer uma flexibilidade  para resolver certos processos, né? Essa negação da burocracia, da institucionalidade  ou das figuras de autoridade podem também trazer soluções criativas,  maneiras cordiais de se resolver problemas. Esse seria o polo positivo do jeitinho. 
Uma atitude que não faz mal a ninguém e fica dentro da legalidade, como reforça a diretora  executiva do transparência Brasil, Juliana Sakai. O jeitinho brasileiro ele é uma pecha  em cima do brasileiro, da sua capacidade de se adequar, vamos dizer  assim, a algumas situações, né? Então, de forma positiva, ele  pode mostrar uma flexibilidade, um jogo de cintura pra é ter um  resultado melhor de de algumas situações que lhe desfavoreceriam.
O problema  é quando cruzamos a fronteira que eu mostrei a ele atrás, aquela  do favor e da corrupção, pro lado da corrupção. E uma determinada  atitude deixa de ser um mero jogo de cintura. Tudo vai depender sempre do contexto e da natureza  da relação entre os indivíduos envolvidos.
Ele está. associado à corrupção, quando a pessoa busca levar uma vantagem relacionada à  rede de relações que ela experimenta. Então, por exemplo, você cometeu uma infração, né?
Foi pego na Lei Seca. E você  conhece um funcionário público ou de qualquer instituição que possa abrandar  determinada penalidade oriunda dessa infração. Né?
Então você, através do jeitinho,  dessa amizade, dessa proximidade, você tenta instituir um ato de corrupção,  de modo que você leve vantagem de que você resolva aquela situação de forma informal,  que desobedeça os padrões regulatórios. do país. Viu que a professora  falou em funcionário público?
Porque o ato de corrupção é entendido como tal por envolver alguém que deveria estar  prestando um serviço à população e aí usa as ferramentas que possui para benefício  pessoal ou para beneficiar alguém. Ou seja, mistura o público e privado e comete ilegalidades. O que a gente precisa evitar é igualar  jeitinho e malandragem mal intencionada.
Mas o malandro, o corrupto, pode sim  recorrer ao jeitinho para trapacear. Será então que o jeitinho  está na base, por exemplo, do que chamamos de corrupção sistêmica no Brasil? E como será que essa história começou?
Desde quando damos jeito pra quase tudo? E talvez o principal: por quê? Nós começamos a nos enxergar donos desse jeitinho, na imprensa e na literatura,  em meados do século passado.
De acordo com historiadores, foi por causa de  diferentes transformações vividas no Brasil nas décadas de 30, 40. A industrialização  e a implementação de leis trabalhistas, por exemplo, impuseram a vida  cotidiana burocracias, regras. A autora do livro que eu citei no início do vídeo  diz que, nessa época, a gestão pública deixou de ser tão personificada e deu lugar a um modelo  mais impessoal, ou seja, envolto de protocolos.
E o jeitinho passou a ser justamente a forma de  lidar com as mudanças. Até porque o brasileiro, sem generalizar, claro, é um tanto  resistente à formalidades. Porque teria aprendido a ser assim.
O jeitinho  aí diz muito sobre essa ideia, né? Essa prática do brasileiro de misturar, de promover uma amálgama entre os códigos da  vida pública e os códigos da vida privada, porque o brasileiro ele tem essa característica.  E isso está fundado nas origens históricas.
De estabelecer uma relação de  proximidade, uma relação de amizade, né? Nós somos muito resistentes à  ideia de formalidade, de rigidez, de institucionalidade, de  burocratização dos processos, né? E isso já é natural da nossa  essência.
Como eu falei: o jeitinho, ele está estruturado no modo como a  gente leva a vida. As nossas origens históricas também explicariam o caminho  desse traço cultural ao longo do tempo. Em entrevista à DW em 2017, o  historiador Sidney Chalhoub, da universidade de Harvard, atribuiu o jeitinho  à formação escravista da sociedade brasileira.
Quando a solução de problemas só era possível pela troca de favores com senhores  de terra e pessoas escravizadas. Uma prática que, ao longo dos anos, foi  combinada a outras lógicas e dinâmicas sociais. Mas como o termo, o jeitinho só  aparece em dicionário a partir da década de 80.
Dessa forma, na avaliação das  especialistas com quem falamos, seria imprudente falar que uma característica imemorial  da nossa cultura é querer levar vantagem em tudo. A gente precisa entender o nosso contexto  histórico. Todos os processos de exploração que o brasileiro foi submetido  desde o processo de colonizador.
Para a gente entender, de fato, como essa nuance tão particular da nossa  cultura, que se diferencia de outras, ela pode ser melhor compreendida. Agora, o jeitinho, esse  atalho para contornar normas, redesenhar cerimoniais é  coisa de brasileiro mesmo? Com frequência, somos levados a pensar que sim, que só nós tentamos fugir da burocracia  e resolver problemas na informalidade.
Tudo porque seríamos um  povo naturalmente amigável. Boa praça. Não é assim, pelo menos não  em termos absolutos.
em outras partes do mundo, isso também acontece, segundo as  pesquisadoras ouvidas pela nossa reportagem. Então essa vantagem pessoal, esse uso de alguns de algumas habilidades interpessoais em benefício próprio, para ganho pessoal indevido, ela não está só no Brasil. Esse jeitinho, com outro nome, com outros  nomes, faz parte de toda a humanidade.
Faz parte de todos os países  e proporções diferentes. Esse relato aqui, publicado na folha de São  Paulo em 2017, corrobora a fala da especialista. A historiadora Márcia Cristina  fragas disse ao jornal que teve ajuda na Alemanha para burlar  algumas burocracias do país.
Pessoas que vieram com ideias fora  da curva para evitar que ela fosse prejudicada por trâmites legais. O Trinkgel  também costuma ser considerado em publicações científicas um tipo de jeitinho alemão  para fazer um dinheiro extra na calada. Ele é dado diretamente à pessoa que está  atendendo num restaurante, bar ou fazendo a limpeza do banheiro.
Está vendo? Tem jeitinho sim em outras partes do  planeta. Talvez o que diferencie o Brasil é que muitas vezes associamos o  nosso jeitinho à corrupção sistêmica.
Aquela rotineira que atinge os  mais diversos setores da sociedade. Mas como reflexão: até que ponto a  vulnerabilidade social nos coloca mais na posição de recorrer ao jeitinho? Será que o brasileiro de uma comunidade  pobre, abandonada pelo Estado, não está mais sujeito a isso do que um  alemão de classe média, por exemplo?
E você pode até argumentar que quem faz um país  é seu povo, mas não podemos esquecer que o Brasil nunca foi um país de oportunidades iguais.  E que uma parte enorme da população ficou à margem das estruturas de poder, sujeita  a regras que elas não ajudaram a criar. Eu acho que é um perigo muito grande reforçarmos  essa mentalidade de que o jeitinho brasileiro é associado a uma corrupção sistémica e,  por si só, esse jeitinho é endémico, né?
Ele, se ele é endémico, e  se a corrupção é sistémica, é muito difícil combater. Quando  a gente está falando de corrupção, a gente está falando de algo muito mais  sério, de uma elite que tem capacidade de gerir recursos públicos está desviando recursos que deveriam ser repartidos entre todos  ou servir para diminuir a desigualdade. Enquanto quando a gente está  falando de pequenas corrupções, jeitinho brasileiro, a gente  está falando de furar uma fila para qual as consequências são muito menores, né?
Então a gente está falando de ter  pequenas vantagens em pequenas. . .
Em situações muito menores, que não vão ter  impacto na desigualdade do país, não é que não vão ter impacto no acesso à educação,  à saúde e a outros direitos básicos, por exemplo. As falas das pesquisadoras convergem  para um raciocínio comum: não é nada proporcional equiparar um ato de corrupção, um crime,  com o que chamamos de jeitinho brasileiro. Em outras palavras, desvio de verba  pública não é o mesmo que passar na frente de alguém na fila do supermercado ou  do banco porque foi simpático ou conhece um funcionário.
Ou pedir atestado a um médico  amigo para adiar uma prova na universidade. Faltar ao trabalho. Ao menos é essa a  interpretação das nossas entrevistadas, que também acham difícil fazer uma relação direta  de causa efeito entre jeitinho e corrupção.
Na nossa visão, não há, não se  trata de uma questão causal. A gente vê uma série de é serviços, que  justamente por ser. .
. é funcionar bem, né, não correspondem a essa  lógica do jeitinho brasileiro. O Brasil, inclusive, tem bons destaques, em alguns serviços públicos.
Como, por exemplo, fornecimento de  documentos. Pode ter jeitinho na corrupção, sim, mas ao mesmo tempo que ele  abre espaço para atos ilegais, representa uma maneira que pessoas encontram  para sobreviver e superar obstáculos impostos por leis e instituições complexas e disfuncionais. A questão é que essa conexão pode  ser superficial e até nociva, na medida em que ela projeta uma  imagem ou uma identidade de uma nação perpetuamente atolada.
E essa percepção pode  acabar reprimindo mudanças sociais mais profundas. Sabe por quê? Por induzir à apatia e justificar casos de  corrupção sistêmica e individual ao propor uma suposta explicação cultural incorrigível: o jeitinho.
Parece que  corrupção, então, é imbatível. Por quê? Se uma sociedade, uma nação,  ela é composta porque pessoas que fazem parte desse jeitinho brasileiro, e está dentro  de um sistema que também é corruptível, então fica muito difícil combater. 
A gente tem que discutir. Se a gente fizer um exercício de discussão diário,  tentando promover reflexões que mostrem realmente que determinado ponto é negativo para nossa  vivência cotidiana, eu acho que sim, a gente pode transformá-la. É por isso que a gente luta por  melhores leis e pela implementação dessas leis, que às vezes não são bem implementadas.
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