Na madrugada do dia 24 de Dezembro de 2019, a sede da produtora do canal Porta dos Fundos foi alvo de um atentado com coquetéis molotov. Horas depois, em vídeo divulgado nas redes sociais, três homens encapuzados e vestindo camisas verdes reivindicaram a autoria do crime. ".
. . reivindicamos a Ação Direta Revolucionária que buscou justiçar os anseios de todo o Povo Brasileiro contra a atitude blasfema, burguesa e antipatriótica.
. . " Segundo o grupo, o motivo teria sido o especial de Natal satirico, lançado semanas antes pela produtora, que retratava Jesus como homossexual.
Em Setembro do ano seguinte, um desses homens seria preso na Rússia por agentes da Interpol e julgado no Brasil por crimes de terrorismo. Em seu endereço, entre os itens apreendidos pela polícia estavam dois livros: “O pensamento revolucionário” de Plínio Salgado e “O imbecil coletivo” de Olavo de Carvalho. O indivíduo era membro da Frente Integralista Brasileira, movimento político de cunho neofascista.
Mas por mais que não pareça, esse não foi um caso isolado, ações promovidas por grupos e agentes fascistas se repetiram algumas vezes na história recente do Brasil e tem sua origem em um movimento ainda mais antigo: o Integralismo, criado oficialmente em 1932 com a fundação da Ação Integralista Brasileira. As ideias do movimento atravessaram quase um século, tendo eco em diversos governos e diferentes setores da sociedade, e até os dias de hoje, continuam a gerar novas consequências na política brasileira. Essa é a história de como o Brasil produziu o maior movimento fascista fora da Europa.
ra uma vez no Brasil, a história de um líder de extrema-direita que com um discurso autoritário, religioso e anticomunista formou um dos mais proemientes movimentos políticos do país. Ele tinha como lema: “Deus, pátria e família”. Você com certeza já ouviu algo assim antes, né?
"Deus, Pátria, Família. Muito obrigado! " A gente tá falando de Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira, que ficaria conhecida como o maior movimento fascista das Américas e um dos mais bem estruturados do mundo.
Só que para entender esse movimento a gente precisa voltar para a Itália lá no ano de 1930. Naquela época o país vivia sob o regime de Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista. Mussolini se tornaria o primeiro ministro italiano em 1922 e de 1925 até 1943 estabeleceria a Ditadura Fascista no país.
Mas como ele chegou lá? O Fascismo italiano surgiria logo após o fim da Primeira Guerra Mundial. Era um momento de profunda crise na sociedade europeia - a fome, o desemprego e a desigualdade produziam um sentimento de desconfiança com a democracia liberal.
Sentia-se a necessidade de um novo regime político, de uma forma mais moderna e eficiente de organizar a sociedade, coisa que a democracia e o liberalismo de mercado, estabelecidos no século anterior, pareciam não ser mais capazes de fazer. É nessas condições que nasce o Fascismo. Essa demanda por um novo regime político e econômico produziu dois traços característicos do movimento - o autoritarismo em contraponto à democracia e o ultranacionalismo em oposição ao liberalismo.
E, é por isso, que os fascistas defendiam a construção de uma sociedade coordenada por um Estado totalitário de partido único. Mas tem mais um detalhe importante: para o Fascismo existe uma hierarquia social natural - ou seja, há pessoas que são naturalmente superiores a outras e por isso devem ocupar espaços sociais mais elevados. Foi uma Itália submersa por essa ideologia que o brasileiro Plínio Salgado encontrou quando se reuniu com Mussolini em 14 de junho de 1930, no Palácio Venezia em Roma.
Plinio escreveria meses depois que esteve, naquele dia, frente a frente com o gênio criador da política do futuro. Ele voltaria para o Brasil um dia antes da Revolução de 1930, capitaneada por Getúlio Vargas, se consumar e iniciar um novo momento político no país. Naquele período, ele formularia o pensamento integralista que iria servir como base para a conformação da Aliança Integralista, uma versão brasileira do que ele teria visto na Itália anos antes.
Por lá os camisas pretas, aqui verdes; no lugar do feixe lictório - símbolo utilizado por Mussolini - a sigma, o emblema integralista. Na hora das saudações, o braço esticado era o mesmo, mas a palavra proferida era “Anauê” - saudação indígena apropriada por Salgado. Pelas paredes de cada sede dispunha-se uma foto do fundador Plínio Salgado e um relógio com a frase “Nossa hora chegará”.
Não demoraria muito para que as chamadas “escolas integralistas” fossem fundadas com objetivo de formar “as mentes e corações” das crianças e jovens do movimento. Eles possuíam também seus próprios rituais de batismo, casamento e funeral. A sigma estamparia desde camisetas e braçadeiras até pratos e colheres.
Os integralistas desenvolveriam até mesmo bens de consumo próprios, como cigarros e fósforos. O ultranacionalismo seria tanto que os Integralistas rejeitariam até a figura do papai do noel, em seu lugar o vovô índio - um velhinho amigo da natureza que vestindo uma roupa com penas de várias cores distribuía os presentes para as crianças brasileiras. Segundo os autores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, todos esses rituais e símbolos colocavam os indivíduos em um “ciclo místico de repetição”, de modo a estabelecer um sentido de unidade, quase totalitário.
O Integralismo se tornava então mais que uma ideologia política: era a própria vida de seus membros, todas essas famílias estavam conectadas em práticas e métodos compartilhados por todo o movimento. O integralismo nascia como um movimento intelectual, composto por membros de uma elite artística e acadêmica, que defendiam uma luta contra a mediocridade do establishment. Para se ter uma ideia, outros dois nomes de relevo da AIB eram o historiador Gustavo Barroso, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, e Miguel Reale, um dos mais importantes juristas brasileiros do século XX.
Plínio dizia que eles, os intelectuais, estavam “fartos de viver à sombra dos poderosos", era sua “hora de mandar”. Era uma proposta clara de rompimento com as tradições da “velha política”. O Fascismo brasileiro defendia algo bem parecido com o que era pregado na Europa - era autoritário, antiliberal e anticomunista, baseado em uma visão nacionalista e cristã radical e conservadora.
Essa junção entre religião, nacionalismo e conservadorismo daria origem ao lema “Deus, Pátria e Família”. O integralismo, assim como Fascismo italiano, tinha três principais inimigos: o capitalismo liberal, o comunismo e o povo judeu. O teor racista da ideologia seria reformulado no Brasil a partir da ideia de democracia racial e miscigenação.
Ao contrário da raça pura, comumente defendida na Europa, aqui se falava da “raça brasileira”. Sem qualquer menção aos problemas reais da questão racial no país, os integralistas defendiam o valor dos negros na construção nacional e escondiam atrás do discurso pró-miscigenação uma defesa do embranquecimento e da prevalência da tradição europeia. Foi esse endereçamento da questão racial que permitiu a presença de militantes negros na organização e a aproximação da Frente Negra Brasileira com a AIB.
As mulheres também eram bem vindas no Integralismo e ocupavam papel considerado importante na condução da célula-familiar integralista. Havia aqui uma estratégia eleitoral clara de cooptação dos votos dos negros e das mulheres. O que não tornava o partido menos racista e machista - os negros ainda estavam relegados a espaços limitados e a exclusão, enquanto as mulheres ainda estavam sujeitas a papeis familiares e do lar.
Fato é que o Integralismo, mesmo nascendo do Fascismo Italiano, se descolava da matriz europeia a partir da assimilação de particularidades brasileiras, como forma de se viabilizar no país. O movimento integralista cresceria de forma exponencial nos anos seguintes. Em 1936, apenas quatro anos depois da fundação da AIB, a organização elegeria 20 prefeitos, 4 deputados estaduais e aproximadamente 500 vereadores, obtendo cerca de 250 mil votos no país inteiro, número que representava mais de 10% de todo o eleitorado nacional.
Estima-se que nessa época o partido contava com mais de 1 milhão de filiados. As eleições presidenciais de 1938 se aproximavam e Plínio Salgado, pré-candidato a presidente, já despontava como um dos principais nomes ao pleito. O Integralismo tinha tudo para conquistar a presidência da República… Se não fosse um personagem da história: Getúlio Vargas.
Em 10 de Novembro de 1937, o então presidente daria um autogolpe, estabelecendo a ditadura do Estado Novo, as instituições democráticas seriam fechadas, a Constituição seria suspensa e a tão sonhada eleição de 1938 jamais aconteceria. Os Integralistas até teriam certa participação na nova ditadura - inclusive o capitão Olímpio Mourão Filho, responsável pela criação do chamado “Plano Cohen” que foi utilizado como pretexto para o golpe de Vargas, era um adepto do movimento integralista. Na verdade, quando se instituiu o Estado Novo, os integralistas se encontram bastante próximos do governo.
Afinal, naquele momento, Salgado e Vargas combatiam, ao menos em tese, um inimigo em comum: o comunismo. E o presidente gaúcho sabia que para estabelecer seu projeto autoritário e centralizador, precisaria enfrentar um lado de cada vez. Por isso, naquele primeiro momento, o apoio dos integralistas foi bem vindo.
No entanto, em dezembro daquele mesmo 1937, todos os partidos políticos foram extintos, inclusive a AIB. Nos meses seguintes, sedes integralistas seriam fechadas, reuniões impedidas e diversos membros do partido iriam para a prisão. Vargas concluía seu plano e caminhava para a neutralização completa do seu segundo inimigo.
Ainda assim, o movimento seguiria na ilegalidade e no dia 11 de maio de 1938 se organizaria numa tentativa de golpe. Um grupo de integralistas chegaram armados ao Palácio da Guanabara com a intenção de depor Vargas. Os revoltosos alcançaram os jardins da residência presidencial, onde foram contidos por tropas do governo.
A chamada “Intentona Integralista” fracassou, mas causou confusão o suficiente. Após o ocorrido, diversos envolvidos foram sumariamente fuzilados, cerca 1. 500 integralistas foram presos e o líder supremo do partido, Plínio Salgado, partiu para o exílio em Portugal.
Com o fim da Ditadura de Vargas, o líder integralista voltou para o Brasil para fundar o Partido da Representação Popular - um fascismo mais moderado. O integralismo e suas ideias já não tinham mais tanta capilaridade social e o movimento, agora sob a sigla do PRP, não era mais o mesmo. A prova viria em 1955 quando Plínio saiu candidato a presidente e obteve apenas 8% dos votos.
O fascismo brasileiro havia fracassado eleitoralmente. Pelo menos até aquele momento. Com a Ditadura de 64, Plínio foi para a Arena e suas ideias ganharam mais espaço no governo militar.
Enquanto deputado federal ele seria o autor do projeto de lei que estabelecia a censura prévia com a intenção de impedir erotismo e pornografia no Brasil, que segundo ele, estavam associados ao “comunismo internacional” e a sua tática de “a desmoralização dos costumes”. O congressista seria ainda o criador da disciplina escolar conhecida como “Educação Moral e Cívica” - lembra dela? "Eu gostaria imediatamente colocar educação moral e cívica.
. . um montão de coisa lá" o entanto, apesar de certa inspiração integralista em determinados projetos da Ditadura, o movimento se via, ano após ano, com menos espaço na política nacional.
Em 1975, quando Plínio Salgado morreu, tudo indicava que o integralismo morria junto com ele. Só que a nossa história não acaba aqui. Pra entender de verdade o Fascismo brasileiro, a gente precisa avançar um pouco no tempo.
Você já deve ter ouvido falar de alguns desses políticos aqui, né? "Meu nome é Enéas, 5656" "Direitos humanos para você e sua família. Quero Deus, Pátria e Família" "Deus, Pátria, Família.
Levy Fidelix" Se o Integralismo parecia ter acabado lá na Ditadura, como que anos depois políticos como Enéas Carneiro ou Levy Fidelix pareciam repetir as ideias de Plínio Salgado? A verdade é que os integralistas jamais desapareceram completamente da política nacional. A AIB só seria recriada de verdade em 1987 na presença de 50 integralistas, entre eles, Anésio Lara, irmão do Senador Eduardo Suplicy.
Lara ficaria conhecido por seu discurso neonazista e pela negação do Holocausto judeu. "Eu não acredito que tenha havido qualquer judeu morto em qualquer câmara de gás, porque as câmaras de gás eram só para matar piolhos". Nos anos seguintes, a AIB se aproximaria dos chamados Carecas do ABC - os skinheads brasileiros.
Anos mais tarde, uma nova organização: a Frente Integralista Brasileira, maior e mais bem organizada. Entre os anos 1990 e 2000, momento de certo vazio institucional do movimento, muitos neointegralistas se filiaram ao Prona, partido de Enéas Carneiro. A defesa da ordem, da hierarquia e da autoridade foram bandeiras que aproximaram esse grupos.
O conservadorismo radical e religioso faria com que os herdeiros de Plínio Salgado caminhassem em direção a partidos como o PTB de Roberto Jefferson e o PRTB, partido de Levy Fidelix e antigo partido do vice-presidente Hamilton Mourão. Em 2018, o lema integralista estamparia o material de campanha do partido. Por todo o Brasil, pequenos grupos neointegralistas se formaram pela internet e em sedes descentralizadas.
O próprio presidente Jair Bolsonaro surgiria na política em um ambiente muito próximo daquele cultivado pelos partidos como PRTB, PTB e Prona. Seus discursos seriam, desde o início, repletos de elementos religiosos, ultraconservadores e autoritários. "E fazendo um trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil".
A defesa do ideal de família, pátria e religião seriam uma constante em sua história política. Seu lema de campanha em 2018, de certa maneira, parecia uma reelaboração do próprio lema integralista. "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!
" Em vídeo divulgado nas redes, o ex-secretário de Cultura de seu governo, Roberto Alvim, pedia por uma “arte heroica e imperativa” "Será heroica e será nacional" em citação direta do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels. Nas imagens, a semelhança visual parece inquestionável. Mas, é possível dizer então que Bolsonaro seria um neointegralista ou que o Bolsonarismo seria uma nova forma de fascismo no Brasil?
O atual presidente compartilha de características de movimentos da extrema-direita, assim como também compartilha de características do integralismo. Porém eu também acho que hoje o Bolsonarismo foi além da figura do presidente. Ele vai levar o nome do Jair Bolsonaro, mas eu acho que ele já conseguiu ir muito além disso.
Então, sim, eles vão compartilhar essas características com esse discurso com a presença de Deus muito forte, esse discurso anticomunista, esse conservadorismo muito forte, mas a gente não pode pensar que é exatamente a mesma coisa. Acho que é importante a gente pensar nesses movimentos de extrema-direita não como uma continuidade. A gente precisa entender que eles vão se modificando conforme o período histórico, conforme o recorte geográfico, vai havendo essas modificações, mas a gente não pode dizer que o Bolsonarismo é a mesma coisa que a Ação Integralista Brasileira, os integralistas.
Além disso, o Bolsonarismo hoje ele vai ter um caráter e vai ter práticas neoliberais muito claras, diferentemente do Fascismo que vai ter um discurso anti-liberal. Fica claro que o Bolsonarismo não é por si só um movimento tão uniforme a ponto de ser entendido como uma simples manifestação neointegralista. O Fascismo tem em seu centro o ideal reacionário e revolucionário, já no Bolsonarismo esse último aspecto não parece existir.
Bolsonaro pode até defender um projeto retoricamente associado a Deus, Pátria e Família, mas não aparenta querer construir um novo tipo de Estado e sociedade como queria Plínio Salgado e os integralistas.