vida seca um romance de Graciliano Ramos diretor de dublagem Gustavo Lisboa Capítulo 1 mudança na planície avermelhada o juazeiros alargavam duas Manchas Verdes os infelizes tinham caminhado o dia inteiro estavam cansados e Famintos ordinariamente andavam pouco mas como haviam repousado bastante na areia do Rio Seco a viagem progredida bem três Léguas fazia horas que procuravam uma sombra a folhagem do juazeiros apareceu longe através dos Galhos pelados da Caatinga rala arrastaram-se para lá devagar sim a Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça Fabiano Sombrio cambaio uai tiracolo
a cuia pendurada numa Correia presa ao cinturão a espingarda de pederneira no ombro o menino mais velho e a cachorra baleia iam atrás o juazeiros aproximaram-se recuaram sumiram-se o menino mais velho possa Chorar sentou-se no anda condenado do diabo gritou-lhe o pai não obtendo resultado fustigou com a bainha da faca de ponta mas o pequeno esperneou acuado depois sossegou deitou-se fechou os olhos Fabiano Ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse como isto não acontecesse espiou os quatro cantos zangado praguejando baixo a caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas
que eram ossadas o voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos andas comungado o pirralho não se mexeu e Fabiano desejou matá-lo tinha o coração Grosso queria responsabilizar alguém pela sua desgraça a seca aparecia ali como um fato necessário e a obstinação da criança irritava-o certamente esse obstáculo miúdo não era culpado mas dificultava a marcha e o vaqueiro precisava chegar não sabia onde tinham deixado os caminhos cheios de espinho e seixos fazia horas que pisavam a margem do rio a lama seca e rachada que escaldava os pés pelo Espírito atribulado do
sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado pensou nos urubus nas ossadas coçou a barba ruiva e suja e resoluto examinou os arredores sem a Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons culturais que estavam perto Fabiano meteu a faca na bainha guardou no cinturão a cocorou-se pegou no pulso do menino que se encolheria os joelhos encostados ao estômago frio como um defunto aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena impossível abandonar o anjinho ou esse bicho do mato entregou a espingarda assim a Vitória pois o filho no
cangote levantou-se agarrou os bracinhos que ele caiam sobre o peito moles finos como cambitos tinha Vitória aprovou esse arranjo lançou de novo a interjeição cultural designou o juazeiros invisíveis e a viagem prosseguiu mais lenta mais arrastada num silêncio grande ausente do Companheiro a cachorra baleia tomou a frente do grupo arqueada as costelas à mostra corria ofegando a língua fora da boca e de quando em quando se Detinha esperando as pessoas que se retardavam ainda na véspera eram seis viventes contando com o papagaio coitado morreram na areia do rio onde haviam descansado à beira de uma
poça a fome apertar demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida baleia jantar aos pés à cabeça os ossos do amigo e não guardava lembrança disso agora enquanto parava dirigir as pupilas brilhantes a oeste objetos familiares estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal Fabiano também às vezes sentia falta dela mas logo a recordação chegava tinha andado a procurar raízes à toa o resto de farinha acabará não se ouvia um berro de res Perdida na Caatinga sim a Vitória queimando o assento no chão
as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam festas de casamento Vaquejadas novenas tudo numa confusão despertará um grito áspero vida de perto a realidade e o papagaio que andava furioso com os pés apaletados numa atitude ridícula resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificar se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil não podia deixar de ser mudo ordinariamente a família falava pouco e depois daquele desastre viviam todos calados raramente soltavam palavras curtas o louro aboiava tangendo um gado inexistente e latia remendando a cachorra as manchas
do juazeiros tornaram a aparecer Fabiano ali gerou o passo esqueceu a fome a canseira e os ferimentos as alpercatas dele estavam gastas no saltos e a embira tinha ali aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas os calcanhares duros como cascos gritavam-se e sangravam num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca encheu a esperança de achar comida sentiu desejo de cantar a voz saiu-lhe rouca medonha calou-se para não estragar força deixaram a margem do rio acompanharam a cerca subiram uma ladeira chegaram ao juazeiros Fazia tempo que não viam sombra sim a Vitória acomodou os filhos
que arriaram como trouxas cobrimos como lambus o menino mais velho passado a Vertigem que o derrubara encolhido sobre folhas secas a cabeça encostada uma raiz adormecia acordava e quando abria os olhos distinguia vagamente noite próximo algumas pedras um carro de bois a cachorra baleia foi enroscar-se junto dele estavam no pátio de uma fazenda sem vida O Curral Deserto o chiqueiro das Cabras arruinado e também deserto a casa do Vaqueiro fechada tudo anunciava abandono certamente o gado se afinara e os moradores tinham fugido Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho avisou-se da casa bateu
tentou forçar a porta encontrando resistência penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas rodeou a Tapera alcançou o terreiro do fundo viu um Barreiro vazio um bosque de catingueiras um pé de turco e o prolongamento da cerca do Curral trepou-se no Mourão do canto examinou a caatinga onde a voltavam as ossadas e o negrume dos urubus desceu empurrou a porta da cozinha voltou desanimado ficou um instante no copiar fazendo tensão de hospedar ali a família mas chegando a oeste juazeiros encontrou os meninos adormecidos e não quis acordá-los foi apanhar gravetos trouxe do chiqueiro das Cabras uma
abraçada de madeira meio roída pelo cupim arrancou touceiras de uma Cambira Arrumou tudo para a fogueira nesse ponto baleia arrebentou as orelhas arregaçou as ventas Sentiu o cheiro de preás farejou um minuto localizou-os no morro próximo e saiu correndo Fabiano seguiu com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do Monte tocou o braço da mulher apontou o céu ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do Sol enxugaram as lágrimas foram agachar-se perto dos filhos suspirando conservaram-se encolhidos temendo que a nuvem se tivesse desfeito vencida pelo azul terrível aquele azul que deslumbrava e
endoidecia a gente entrava dia e saía dia as noites cobriam a terra de chofre a tampa anilada baixava escurecia quebrada apenas pelas vermelhões do Poente miudinhos perdidos no deserto queimado os fugitivos agarraram-se somaram as suas desgraças e os seus favores o coração de Fabiano bateu junto do coração de sim a Vitória um abraço cansado aproximou os Farrapos que os cobriam resistiram a fraqueza afastaram-se envergonhados sem ânimo de afrontar de novo a luz dura receosos de perder a esperança que os alentava e foram despertados por baleia que trazia nos dentes um preá levantaram-se todos gritando o
menino mais velho esfregou as pálpebras afastando pedaços de sonho sem a Vitória beijava o focinho de baleia e como o focinho estava ensanguentado lambia o sangue e tirava proveito do beijo aquilo era caça bem mesquinha mas adiaria a morte do grupo e Fabiano queria viver olhou o céu com resolução a nuvem tinha crescido agora cobria eu morro inteiro Fabiano pisou com segurança esquecendo as rachaduras que ele estragavam os dedos e os calcanhares sim a vitória remexeu no baú Os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto baleia o ouvido atento o traseiro
em repouso e as pernas da frente erguidas vigiava aguardando a parte que ele iria tocar provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro Fabiano tomou a cuia desceu a ladeira encaminhou-se ao seco achou no Bebedouro dos animais um pouco de lama cavou a areia com as unhas esperou que a água marejasse e debruçando-se no chão bebeu muito saciado caiu de papo para cima olhando as estrelas que vinham nascendo uma duas três quatro havia muitas estrelas havia mais de cinco estrelas no céu o poente cobria-se de cirros e uma alegria doida enchia o coração de
Fabiano pensou na família sentiu fome caminhando movia-se como uma coisa Parabéns dizer não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás agora deitado apertava a barriga e batia os dentes que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás olhou o céu de novo os cirros acumulavam-se a lua surgiu grande e branca certamente ia chover se eu tomasse fugira também com a seca a bolandeira estava parada e ele Fabiano era como a bolandeira não sabia porque mas era uma duas três havia mais de cinco estrelas no céu a lua estava cercada de um Halo cor de
leite e a chover bem a caatinga ressuscitaria a semente do Gado voltaria ao Curral ele Fabiano seria o vaqueiro daquela Fazenda morta chocalho de badalos de ossos animariam a solidão os meninos gordos vermelhos brincariam no chiqueiro das Cabras sim a Vitória vestiria saias de ramagens vistosas as vacas povoariam O Curral e a caatinga ficaria toda verde lembrou-se dos filhos da mulher e da cachorra que estavam lá em cima debaixo de um Juazeiro com sede lembrou-se do pré-amordo encheu a cuia ergueu-se afastou-se lento para não derramar a água salobra subiu a ladeira araragem morna sacudia o
chique chiques e os mandacarus uma palpitação nova sentiu um arrepio na Caatinga uma ressurreição de garranchos e folhas secas chegou pois a cuia no chão escorou-a com pedras matou a sede da família em seguida a cocorou-se remexeu tirou o fuzil acendeu as raízes de Macambira soprou-as inchando as bochechas cavadas uma labareda tremeu e levou-se atingiu-lhe o rosto queimado a barba ruiva os olhos azuis minutos depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim Eram todos felizes sim a Vitória vestiria uma saia larga de ramagens a cara murcha de sim a Vitória remoçaria as nádegas
Bambas de sim a Vitória engrossariam a roupa encarnada de sim a Vitória provocaria a inveja das outras caboclas a lua crescia a sombra leitosa crescia as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite uma duas três agora havia poucas estrelas no céu ali perto a nuvem escurecia o morro a fazenda renasceria e ele Fabiano seria o vaqueiro Parabéns dizer seria dono daquele mundo os troços ajuntavam-se no chão a espingarda de pederneira o aior a cuia de água e o baú de folha pintada a fogueira estalava o preá chiava em cima das Brasas uma ressurreição
as cores da saúde voltariam a cara triste de sim a Vitória os meninos se esponjariam na terra fofa do chiqueiro das Cabras chocalhos tilitariam pelos arredores a caatinga ficaria Verde baleia agitava o rabo olhando As Brasas e como não podia ocupar-se daquelas coisas esperava com paciência a hora de mastigar os ossos depois iria dormir