No episódio anterior você viu um pouco dos anos dourados da diplomacia cultural brasileira, com cinema, Bossa Nova, Brasília e futebol. Nesse episódio a gente fala sobre o momento de ruptura da ditadura e como o regime militar impactou a imagem do Brasil lá fora A dissonância entre a imagem “oficial” que o Brasil quer projetar e a que o mundo vê se aprofunda depois de 1º de abril de 1964, quando o país sofre um golpe militar. O processo que levou o Brasil a romper mais uma vez com a democracia é um mosaico de fatores.
Um deles surgiu no Nordeste, o ponto de partida de uma história que desemboca no apoio americano ao golpe militar no Brasil. Foi lá que, em meados dos anos 50, ganharam fôlego as ligas camponesas, movimento que lutava pela reforma agrária. Uma de suas lideranças, Francisco Julião, que estava no movimento desde a década de 50, chegou a se eleger deputado por Pernambuco em 62 pelo Partido Socialista Brasileiro.
Em paralelo ao ativismo político de esquerda, esse foi um período em que o Nordeste também assistiu ao fortalecimento de movimentos que pregavam a valorização da cultura popular local, o fortalecimento da educação e a alfabetização. Porque precisava saber ler e escrever para votar, e queriam aumentar a democracia da região. Não foi um ato comunista, foi um ato de querer fortalecer a democracia.
Um dos protagonistas desse movimento foi o pedagogo pernambucano Paulo Freire. É dele o método de alfabetização de adultos que nas décadas de 50 e 60 se popularizou na região, baseado no uso de palavras próximas à realidade social dos alunos. Tudo isso se mistura e acaba entrando em rota direta de colisão com o anticomunismo do fim dos anos 50 e o aprofundamento da Guerra Fria.
Especialmente depois da Revolução Cubana de 1959. A Revolução Cubana criou muita preocupação por parte do governo norte-americano de um contágio do comunismo pelo hemisfério… um medo de que Cuba ia exportar a revolução para outros cantos. Então qualquer agitação que parecia um pouco comunista já preocupava o governo norte-americano E é justamente por conta dessa preocupação que os Estados Unidos enviam em 1961 uma comitiva a Pernambuco.
Quem está à frente é um dos irmãos do então presidente americano John Kennedy - o caçula Ted Kennedy, na época com 29 anos. O objetivo era entender melhor os problemas econômicos do Nordeste, pra que o governo americano pudesse elaborar um plano de auxílio e, com isso, tentar afastar o país da esfera de influência da União Soviética. Não por acaso, estava no roteiro, além do Recife, a pequena cidade de Vitória de Santo Antão, marco zero do movimento das ligas camponesas.
Então tinha essa preocupação no exterior, mas também tinha essa preocupação dentro do país, né? Tinha Miguel Arraes primeiro, que era do Partido Socialista Brasileiro, mas com apoio do Partido Comunista, que primeiro tava na prefeitura do Recife, depois virou governador do Estado, né? Então existia essa preocupação com o Nordeste, que já era visto como uma região complicada por causa da seca, por causa da pobreza, da miséria, e agora complicada ainda mais pelo ‘comunismo’ Os Estados Unidos chegaram a lançar um programa econômico, a Aliança pelo Progresso, com a ideia de evitar que a miséria no nordeste brasileiro fizesse da região um alvo em potencial para grupos comunistas.
Mas o receio de contágio pela esfera comunista acaba falando mais alto. Chegando 1964, os Estados Unidos não apenas aceitam o golpe militar, como o endossam - assim como uma parte da sociedade brasileira. Quando houve o golpe em 1964 os Estados Unidos estavam prontos para dar um apoio militar.
Estavam prontos para dar um apoio militar que no final não foi necessário, não foi preciso. O Brasil não precisava do apoio dos Estados Unidos, mas os Estados Unidos estavam ali para apoiar no caso A operação Brother Sam previa o envio pela Marinha americana de uma esquadra pra ajudar os militares que queriam depor o governo de João Goulart. O auxílio nunca chegou a ser usado - o golpe foi rápido e Jango não ofereceu resistência.
O episódio só foi descoberto anos depois, quando documentos até então secretos dos Estados Unidos perderam o sigilo. Começa o primeiro período da ditadura. As ligas camponesas estão entre os primeiros movimentos colocados na ilegalidade e perseguidos.
Francisco Julião é preso e posteriormente vai se exilar no México. Mas não é essa a imagem que o regime quer mostrar para a comunidade internacional. À diplomacia cultural que tinha ganhado fôlego com a Bossa Nova nos anos 50 se soma um esforço massivo de propaganda.
O governo brasileiro vai empreender nessa direção, né? Eu acho que como esforço de compensar a projeção de uma imagem que é naturalmente negativa, né? Uma sucessão de notícias ruins é que chegam do Brasil.
A conversão do que foi um golpe de estado no regime militar, depois de um regime militar sangramento, a tortura, os desaparecimento de presos políticos, o exílio. Então há mais exposição dessa face terrível do Brasil, né? Os exilados, por exemplo, circulam diariamente como essas testemunhas digamos assim dessa face terrível do Brasil O regime passa a promover a ideia de que o Brasil vivia um milagre econômico - ainda que as taxas de crescimento não tenham sido consistentemente altas -, enquanto problemas como a expansão sem precedentes da dívida externa iria cobrar seu preço nos anos finais do regime e ajudar a selar o fim do governo militar.
Em outra frente, para vender o Brasil como destino turístico, em 1966 cria-se a Embratur e, com ela, o Brasil passa a reforçar os clichês e estereótipos que acompanham o país até hoje: a praia tropical, especialmente a do Rio de Janeiro, o Carnaval, a ideia do povo festivo, o futebol, as mulheres de biquíni na praia. Ainda assim, com o tempo vai ficando difícil para o regime autoritário da ditadura esconder a censura, a tortura e os assassinatos patrocinados pela violência do Estado. Desde meados dos anos 50 se consolidava nos Estados Unidos e na Europa uma geração de pesquisadores dedicados a estudar o Brasil - os brasilianistas.
- - - - É uma geração de antropólogos, de sociólogos, também de economistas, de de de especialistas de diferentes áreas do conhecimento que são também estimulados pelo pelo próprio governo americano, que no início da Guerra Fria estimula nas universidades americanas o aprofundamento do conhecimento sobre áreas geográficas Nos anos 70, no auge da repressão, quando muitos intelectuais brasileiros estavam amordaçados pela censura ou se viram obrigados a buscar exílio em outros países, esses estudos ganham novo fôlego com uma segunda geração de pesquisadores. Que falam sobre o autoritarismo, sobre as desigualdades regionais e as questões raciais. Algumas notícias conseguiram escapar do cerco da censura e viajar o mundo.
O caso que chama a atenção da opinião pública pela primeira vez, que é notável do que acontece no Brasil, da tortura, do extermínio de presos políticos é o caso do Stuart Angel Stuart Angel foi preso, torturado, assassinado pela ditadura e dado como desaparecido político em 1971. Era filho da estilista mineira Zuzu Angel e do americano Norman Angel Jones. Em busca do paradeiro do filho, Zuzu Angel chega a viajar aos Estados Unidos e faz contato com políticos e com a diplomacia americana, levando ao mundo a denúncia sobre as violações de direitos humanos que vinham acontecendo no Brasil.
Em 1976, ela morreria em circunstâncias suspeitas e até hoje não esclarecidas. Sob esse pano de fundo, a relação entre Brasil e Estados Unidos vai se deteriorando, e os atritos se intensificam quando o democrata Jimmy Carter assume a Casa Branca em 77 com um discurso de moralização da política externa americana e ações voltadas aos direitos humanos. O presidente Geisel tem uma reação difícil, digamos assim, às críticas que a diplomacia americana faz consistentemente às infrações de direitos humanos, aos casos de tortura - que já são públicos e notórios.
A visita da primeira-dama dos Estados Unidos ao Brasil, na qual ela recebe cartas de presos políticos. isso causa profundo mal-estar junto a diplomacia brasileira Geisel foi, aliás, um dos presidentes que mais ativamente se envolveram com o delineamento da política externa brasileira durante a ditadura. Chegou a visitar a Inglaterra, França e Japão em 1976, em uma tentativa de mostrar que o regime tinha apoio de nações importantes no xadrez geopolítico.
Não foi suficiente. Em Londres, por exemplo, a comitiva foi recebida com protestos e parte da cobertura da imprensa local não deixou de falar sobre as acusações de violações aos direitos humanos. O regime militar entra em crise no fim dos anos 70 e começo dos 80.
De um lado, inflação e crise econômica levam cada vez mais brasileiros às ruas. De outro, explodem os protestos contra as prisões arbitrárias e os assassinatos patrocinados pela ditadura. O período acaba formalmente em 1985.
O Brasil dá início à redemocratização e inaugura um novo capítulo na história da construção de sua imagem externa, quando o país passa, de certa forma, a reconhecer publicamente seus problemas e a necessidade de mudanças. O primeiro movimento importante nisso vai se dar exatamente com a realização da conferência do Rio de 1992, a conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento sustentável, porque é com aquele movimento nós reconhecemos que temos esse problema, mas nós temos que encontrar uma forma de lidar com isso Essa abordagem é uma virada em relação à política ambiental da ditadura, que muitas vezes associou degradação ambiental a desenvolvimento. Um episódio em particular nesse sentido teve ampla repercussão internacional.
Às vésperas da conferência do clima de 1972 em Estocolmo, na Suécia, o jornal The New York Times fez um editorial criticando o ministro do desenvolvimento brasileiro, João Paulo dos Reis Velloso, que, ao comentar sobre um projeto para atrair capital japonês, declarou: “Por quê não? Nós ainda temos muitas áreas para poluir. Eles, não”.
De um lado, o regime endossava a degradação que via como progresso. De outro, negava que a extensão do passivo ambiental. Quando começam a se produzir as imagens tiradas por satélite é do crescimento do desmatamento, por exemplo, o governo brasileiro nega que não seja verdade episódios que são interessantíssimos por exemplo é de um porta voz da presidência da república que é nega que a extensão do desmatamento naquela temporada tem sido tão grande.
A imprensa retruca: ‘Mas é a imagem de satélite? ’ Ele diz: ‘Não é verdade! ’ Essas imagens vinham do satélite do Landsat, que fazia parte de um programa gerenciado pela agência espacial americana, a Nasa.
Parte dos dados era enviada a uma antena de recepção do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais aqui no Brasil. E foi com base nas imagens que o INPE publicou um relatório extenso sobre o desmatamento na Amazônia. Nesse trecho do documento, o instituto ressalta que a análise dos dados mostra "que existem casos de desmatamento extremamente perigosos em relação ao equilíbrio ecológico da região”.
De volta à redemocratização, essa também é a época em que o movimento indígena brasileiro começa a ganhar projeção internacional. Em 89, o líder dos caiapó, Raoni Metuktire, sai em turnê com o cantor americano Sting pra denunciar a devastação da Amazônia. Essa visibilidade é fundamental pra construir a pressão internacional que, no início dos anos 90, vai levar o recém-eleito governo Collor a lançar uma grande operação na terra indígena Yanomami para expulsar milhares de mineradores ilegais e resgatar indígenas que morriam às dezenas de malária e outras doenças.
Nessa época aumenta a exportação via cinema de um elemento perturbador da realidade brasileira: a violência Mas vamos voltar no tempo por que isso não começa nos anos 90, mas bem antes Nos anos 50, o tema havia sido apresentado de forma quase folclórica no cinema com O Cangaceiro (1953), o primeiro filme brasileiro com sucesso internacional, que ganhou prêmio de Melhor Filme de Aventura no Festival de Cannes. O tema da violência no sertão do nordeste, aliás, seria retomado reiteradamente na sequência pelos cineastas do cinema novo brasileiro, com Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Os Fuzis, de Ruy Guerra. São quase 30 anos até o segundo filme brasileiro de grande repercussão internacional.
Lançado em 1981, Pixote se debruça sobre o tema dos menores infratores e conta, com uma estética crua e realista, a história de um garoto recrutado para o crime depois de viver jogado à própria sorte nas ruas de São Paulo. Seis anos depois, o ator que atuou como protagonista do filme morreria vítima de uma execução por parte da polícia alvejado enquanto se escondia embaixo da cama suspeito de ter participado de um assalto. Depois da repercussão do caso, os policiais admitiram terem executado Fernando Ramos da Silva e plantado uma arma para tentar incriminá-lo.
Foram condenados por fraude processual e por obstruir as investigações, mas não cumpririam um dia sequer das penas, que variavam entre 4 e 6 anos. O tema da violência policial volta aos holofotes nos anos 90, com o massacre da candelária, como ficou conhecida a execução de 7 crianças que viviam nas ruas do Rio pela Polícia Militar carioca em 1993, teve enorme repercussão internacional. Na virada do século a violência e a pobreza explodem nos cinemas com Cidade de Deus, lançado em 2002 e Tropa de Elite, de 2007.
Os filmes fazem bastante sucesso lá fora. Cidade de Deus teve 4 indicações ao Oscar e Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro. E é essa mistura de realidade e ficção que consolida para o mundo a imagem de um Brasil violento, corrupto e desigual.
No século 21, o tema do último vídeo da nossa série, o Brasil começa a aparecer mais para o mundo, e não só com o cinema.