Olá, eu sou Ligiana Costa e seguimos hoje com as nossas aulas sobre ópera. Nesse segundo encontro, falaremos dos três principais acontecimentos que contribuíram para o nascimento da ópera enquanto gênero decisivo e longevo de teatro musical. Na cidade de Florença: "Dafne" e "Euridice", o "Orfeo" de Claudio Monteverdi, em Mântua, e o surgimento da ópera a pagamento em Veneza.
Voltando ao fim da aula passada, estávamos em Florença, cidade riquíssima em produção artística e intelectual. Vimos, na aula anterior, algo dos intermédios realizados em 1589. Ali vimos a monodia, o canto acompanhado por um ou mais instrumentos, tomar forma e começar a se consolidar.
A ária começando a nascer, né? Importante, só, vocês saberem que esta prática dos intermédios entre os atos voltará a tomar forma no século 18 e até se consolidará como um tipo específico de ópera, como é o caso da "Serva Padrona" de Pergolesi. Nesse caso, nós chamamos de "intermezzo".
Mas voltemos ao nosso século 17. Acho que já falamos um pouco sobre o quanto a cultura grega clássica era fundamental para a consolidação do Humanismo, o quanto os textos fundadores desta cultura foram traduzidos, estudados, imitados, dissecados. Entre esses textos se destaca a Poética de Aristóteles, na qual o autor descreve e dita as regras de como uma tragédia deve ser escrita e encenada.
Esse tratado foi um dos textos mais estudados pela famosa Camerata Fiorentina ou Camerata Bardi. Esse grupo de artistas, intelectuais, estudioso inquietos se reunia na casa do conde Giovanni Bardi. O primeiro encontro desse grupo data do dia 14 de janeiro de 1573 e, desses momentos, participaram nomes como Giulio Caccini, Jacopo Peri Emilio de' Cavalieri.
Depois dos bem sucedidos intermédios de diversos autores de 1589, a próxima experiência de um espetáculo teatral todo cantado acontece em 1598, quando Jacopo Peri escreve a música de "Dafne" a partir do libreto de Ottavio Rinuccini. Este espetáculo, inteiramente cantado, no qual já se apresenta a origem do que depois conheceremos como "recitativo", uma forma de colocar o texto falado em música, "stile recitativo". Dessa obra, infelizmente, nos restam apenas alguns fragmentos.
A "Dafne" foi apresentada, inicialmente, em um contexto privado. Caiu nas graças da família Médici, que logo encomendou mais uma, dessa vez, para a celebração do casamento entre Maria de' Medici e Henrique IV da França. O libreto também é de Rinuccini e o título da ópera é "Eurídice" ou "Euridice".
Aqui já teremos a presença de um dos tipos de personagem que permeará a ópera por pelo menos um século: os personagens alegóricos, personificações de conceitos, sentimentos, como é o caso aqui, abrindo a história de "Euridice" teremos a Tragédia. O musicólogo Paolo Fabbri, italiano, comenta sobre esse período: "confluíam então estímulos múltiplos, a paixão pelo espetáculo cada vez mais difundida e arraigada na cultura italiana, o uso político da produção artística, as aspirações cultas e arqueológicas de uma elite que mais ou menos declaradamente, pretendia reinvocar os modelos teatrais perdidos da Antiguidade. " Um dos conceitos defendidos por Aristóteles na sua poética para a construção do drama é a verossimilhança, ou seja, as artes deviam ter um conteúdo verossímil, quer dizer, coerente, possível.
Bem, então aqui temos uma questão: se a arte deveria ser coerente com a realidade, como fazer, então, um ser humano cantar num drama inteiro se ninguém vive o tempo inteiro cantando? Quem, então, poderia ser este ser personagem a não ser um semideus cantor, como é o caso do Orfeu? Não é à toa que ele e a sua amada Eurídice serão tema desta e da próxima experiência operística da qual falarei: o "Orfeo", de Claudio Monteverdi.
Infelizmente, nesse curso não teremos tempo de falar do maior amor da minha vida, que é Claudio Monteverdi. Posso recomendar, porém, a leitura das cartas dele, que eu tive a honra de traduzir. Mas em resumo total, Monteverdi nasceu em Cremona e prestou por anos serviços como instrumentista, compositor de capela e de câmara à família Gonzaga, na cidade de Mântua.
Monteverdi, vindo da profunda tradição do madrigal polifônico, soube, como nenhum outro, se aperfeiçoar na tradição e inovar constantemente, propondo novas formas e novos modos de ver a relação entre poesia e música. Para Monteverdi, era a poesia que ditava o fazer musical e não o contrário. Foi imbuído deste sentimento que ele escreveu "Orfeo", com libreto de Alessandro Striggio, estreado em 1607, em Mântua.
No papel de Orfeo, o mesmo cantor que havia cantado em Florença a Eurídice, de Peri: Francesco Rasi. Coincidência? Claro que não!
Temos aí, já, um olhar dramatúrgico pra coisa. Monteverdi tinha uma qualidade especial. Ele era, de fato, um compositor dramaturgo, pensando em música em função do drama.
Prova disso, é a inédita lista de instrumentos que devem ser utilizados, que aparece na publicação feita pelo próprio compositor apenas dois anos depois da estreia. Com esta lista, fica claro que Monteverdi percebia na sonoridade dos instrumentos grandes possibilidades de sublinhar o drama. No ambiente pastoral ouviremos flautas doces, alaúdes.
. . E no inferno, onde Orfeu descerá em busca de sua amada Eurídice, ouviremos metais e o "regale", um estranho instrumento.
Este grupo de instrumentos ainda não era chamado de orquestra, mas a função é a de uma. E aqui, Monteverdi inova. O autor faz uso de vários elementos.
Eu diria que, estilisticamente, ele usou tudo que tinha em mãos. Elementos que serão partes da ópera até os dias atuais. A abertura, o coro, recitativos e o "stile recitativo", diferentes tipos de árias, da simples ária estrófica ao lamento/prece ornamentado.
O libreto foi escrito por Alessandro Striggio, um diplomata e advogado, que trabalhava também na corte dos Gonzaga e foi um grande amigo de Monteverdi por toda a vida. Um detalhe: na versão do mito contada por Ovidio e por Poliziano, que são as influências desse libreto, Orfeu, depois de voltar do inferno sem Eurídice, é derrotado e morto pelas bacantes. Já na versão que nós conhecemos da ópera de Monteverdi, Orfeu sobe aos céus com seu pai, Apolo, num final feliz.
Essa é uma convenção cênica bem estabelecida no século 17. Mas a versão publicada do libreto de Striggio faz a versão final com as bacantes em fúria. Isso para dizer que nós não sabemos exatamente se a versão encenada em Mântua, em 1607, teve um final feliz ou se este foi modificado na edição da partitura.
No ano seguinte, Monteverdi apresenta a "Arianna", tragédia em música, com libreto de Rinuccini encomendada para as celebrações do casamento entre Francesco IV Gonzaga, e Margherita di Savoia. A música dessa ópera, que sequer sabemos exatamente se era inteiramente cantada, não sobreviveu, mas o "Lamento da Ariadna" sim! E este "Lamento" foi um sucesso tamanho que foi publicado em diversos países e se tornou inclusive madrigal pelas mãos do próprio Monteverdi.
Contam testemunhos da época que o público ouviu este lamento em lágrimas. Além das palavras e do lamento pungente, o papel havia sido escrito para a soprano Caterina Martinelli, uma cantora que havia sido preparada pelo próprio Claudio Monteverdi e que morreu dias antes, sendo substituída, de última hora, pela atriz de Commedia dell’Arte Virginia Ramponi. Vejam que interessante.
O suprassumo do "stile recitativo", do “parlar cantando", chega aos ouvidos do público, pela primeira vez, pela boca de uma atriz! E uma atriz de Comedia dell’Arte! Pulamos agora alguns anos!
Trinta anos. Porque o próximo acontecimento que narrarei acontece em 1637, na cidade de Veneza. O surgimento da ópera a pagamento.
Diversos outros experimentos foram realizados em outras cidades da península, sempre em contextos de corte, mas esse acontecimento agora determinará a permanência da ópera consolidada assim como a gente conhece hoje. Como diz o musicólogo Wolfgang Osthoff: "Se não tivesse acontecido o transplante para Veneza, a ópera pareceria hoje para nós somente como uma curiosidade cultural do século 17. " Primeiramente, é importante lembrarmos que Veneza era uma cidade moderníssima, uma república cosmopolita e um pouco, ou quase nada, submissa aos poderes da Igreja.
Pois é nesta Veneza que, literalmente, desembarca a trupe romana comandada por Francesco Manelli, compositor, e Benedetto Ferrari, também compositor, libretista e alaudista. Imitando uma prática das trupes de Commedia dell'Arte, a companhia, que contava apenas com oito pessoas entre cantores e instrumentistas, alugou o Teatro San Cassiano, usado até então por trupes de Commedia dell'Arte, e apresentaram ali, para um público pagante, a ópera "Andromeda". Assim como a tradição teatral pedia, tais apresentações ocorriam durante o carnaval.
O funcionamento desta trupe de ópera e de uma outra também, fundamental nesta época, chamada Febiarmonici, era praticamente idêntico ao das trupes de Commedia dell'Arte. O acontecimento foi um sucesso. No ano seguinte, mais uma ópera foi apresentada, dessa vez, "La Maga Fulminata".
Para nossa tristeza profunda, ambas se perderam, mas nos resta todo o resto, o libreto, por exemplo. Uma curiosidade maravilhosa: existe atualmente um projeto ousadíssimo de reconstruir esse Teatro San Cassiano em Veneza, exatamente como ele era, para se dedicar a esse repertório. Depois dessa estreia, Veneza ganha mais e mais casas de ópera.
Toda esta história foi cuidadosamente descrita, cronologicamente, com erros, é claro, por Cristoforo Ivanovich nesse livrinho "Minerva al Tavolino – Memórias Teatrais de Veneza". Em 1780 (Ops, Ligiana quis dizer 1680! ) já eram sete os teatros em atividade apresentando temporadas de ópera, concorrendo entre si em Veneza, aquela cidade pequena.
Entre os principais compositores, para estes teatros e temporadas, temos: Francesco Cavalli, nascido curiosamente numa cidade ao lado da cidade onde nasceu Monteverdi, Antonio Cesti, Francesco Sacrati e um nome que já encontramos nesta aula, Claudio Monteverdi. Sim, Claudio, o Divino, havia sido demitido de seu posto em Mântua e fora admitido em Veneza como compositor da Capela de San Marco, compositor de música sacra, mas ainda assim, ele não deixou seu lado profano de lado e, aproveitando o grande sucesso e desenvolvimento da ópera em Veneza, ainda nos brindou com mais duas óperas inéditas antes de falecer em 1643. Em 1640, ele apresenta no teatro San Giovanni e Paolo, com libreto de Giacomo Badoaro, a ópera "Il Ritorno d'Ulisse in Patria", O Retorno de Ulisses à sua Pátria.
Em 1643, ano de sua morte, é apresentada sua última ópera, "L'Incoronazione di Poppea", A Coroação de Popeia. Poppea foi a cortesã amante de Nero, um personagem principal cheio de lascívia e vícios mundanos, e aqui mais uma inovação monteverdiana: essa é a primeira ópera que existe com tema histórico. Tudo que acontece, a partir de agora, mereceria mais um curso inteiro, mas esse módulo se encerra aqui.
E na próxima aula nós falaremos de dramaturgia musical! Até lá! Espero vocês!