A gente traz gênero pra tudo na nossa vida E um dia eu estava na praça com minha cachorra e sei lá quem abaixou pra fazer carinho e disse "aí, como ele é lindo! " e perguntou: "como ele chama? " Eu respondi: "É Mika!
" E ela respondeu: "me perdoa! " Eu: "Por quê? !
" "Porque eu achei que fosse um menino! " Eu respondi: "olha, acho que ela não tá se importando" Você vê como isso incomodou o simples fato dela ter achado que ela deu o gênero errado pro meu cachorro. E não é uma crítica, a gente realmente trouxe isso para todos os âmbitos Então, você vê um nenê se você não souber imediatamente se esse nenê é menino ou menina.
. . "como eu vou me relacionar?
" Eu lembro que a minha mãe ficou muito brava comigo porque eu não queria me pentear e aí, ela falou pra mim "Se penteia! Por que você não se penteia? " "Por que você não se cuida?
" E eu pensava "nossa, eu não acho que tô sendo. . .
eu não me achava descuidada. . .
pro que uma criança conseguia ser, né? Mas eu vejo que minha mãe não queria que os outros ficassem comentando porque isso é uma realidade e eu via muito as pessoas comentando Eu chamava muita atenção por conta. .
. acho que por conta do meu cabelo cacheado loirinho, então. .
. O que se espera de uma pessoa com o cabelo cacheado e loirinho? Que ela seja angelical, eu acho.
. . Teve essa situação que eu pensei "meu, eu não sei o que é, mas eu já sei que eu sou diferente" Independente do que significasse porque eu era muito pequena pra entender Depois descobri.
. . Ok, gosto de meninas, beleza, da hora, né?
Nesse momento não foi muito da hora. . .
Eu sofri muito, mas. . .
tá. . .
pelo menos teve uma uma explicação pra isso tudo, né? Quando eu tinha uns 21 anos, mais ou menos eu comecei a namorar um menino Eu namorei ele por dois anos e tal depois que eu terminei com ele, beleza. .
. fui começar sair com mais meninas e aí foi. .
. eu só fiquei com meninas durante um tempo Num dado momento, eu tava ficando com uma menina e aí, a gente falava sobre muitas coisas porque eu entrei no mundo da problematização também a gente tava falando sobre muitas coisas e ela falou assim "ai, às vezes quando eu tô com você eu sinto que eu não sou nem menino, nem menina" E foi muito esquisito escutar isso, confesso Eu pensei: "quê? !
? " Ela falou "é, não sei. .
. tem uma coisa dentro de mim que me diz que eu não sou nem menino, nem menina" E essa coisa dentro dela é o que a gente como sociedade, não se permite ouvir o nosso corpo. .
. a nossa cabeça fala coisas pra gente o tempo todo E são tantos medos que a gente tem como sociedade, tanto medo de se tanta coisa, que a gente acaba não ouvindo essas vozes que tão dentro da gente Não sabia que isso existia Taí o papel da representatividade! Se a gente pudesse ter contato com todas as existências desde sempre, a gente eu sei que eu teria sofrido muito menos Ela teria sofrido muito menos, as pessoas.
. . Eu namorei por dois anos uma outra menina e eu tava ali com ela, e eu falei "Meu.
. . Acho que eu sou nem menino, nem menina Tô sentindo alguma coisa" E aí, se você pedir pra colocar em palavras, isso não existirá porque é muito difícil.
. . porque você só sente Você só sabe o que você é Agora se você pedir pra eu desenhar, talvez eu consiga desenhar o que eu sinto, mas isso é imagem mental.
E aí teve o dia fatídico real da minha vida, que foi quando eu tava assistindo o Canal das Bee, um canal LGBT que eles trazem muitas pessoas com existências muito diferentes, pra falar sobre a existência deles, e são existências que são, às vezes, as que a gente conhece por exemplo, os homens gays e as mulheres lésbicas e ok, são coisas que, por mal ou por bem são faladas Na TV, por exemplo. . .
enfim, são coisas que a gente conhece um pouco melhor Quando eu olhei tinha lá uma pessoa e tava bem escrito. . .
Eu nem lembro o título do vídeo, mas tava "uma pessoa não-binária" E pra mim binário era coisa de número, né? E aí, eu pensei "não-binário? " E eu tava assistindo e ela explicou que uma pessoa não-binária, pra ela na vivência dela, é uma pessoa que não se identifica nem como homem, nem como mulher mas pode, ao mesmo tempo, se sentir tanto homem quanto mulher pode sentir nenhum dos dois.
. . pode.
. . dentro do não-binário tem milhões de possibilidades Então a gente sai de duas caixinhas que é homem e mulher, certo?
Que é o binário Quando a gente sai tem milhões de outras caixinhas que eu não quero me encaixar em nenhuma dessas caixinhas já que eu sai de uma caixinha, deixa eu aqui. . .
flutuando, entendeu? mas essa sou eu, tá? E eu valido todas as existências que querem entrar em outras caixinhas e querem.
. . porque eu acho que dá um conforto quando a gente descobre que aquilo que a gente sente tem nome por favor!
Traga conforto pra gente que é uma coisa que às vezes falta, né? e eu fui ouvindo. .
. e pensei "esquisito isso daí" E eu lembro que eu assisti até o fim e pensei "meu, que besteira! " e fechei a tampa do computador e aí eu brinco que nunca mais eu dormi depois desse dia nunca mais!
Porque eu falei, meu. . .
tem uma pessoa falando exatamente o que tá dentro de mim nesse momento não foi muito fácil Assim, por um ano e pouco, não foi muito fácil posso dizer que ainda não é fácil porque a gente até imagina o que é ter cara de mulher, a gente imagina o que é ter cara de homem mas se eu te perguntar o que é uma pessoa não-binária. . .
não tem uma cara, assim. . .
Pensei, bom. . .
existo, então. . .
o que eu vou fazer com isso? aí que foi o momento em que eu comecei a olhar pra dentro de mim e pensar: tá eu preciso fazer alguma coisa com isso? Hoje a resposta pra mim é não Eu preciso ser eu e continuar sendo eu e o que eu acho que eu preciso fazer e isso é uma coisa minha é falar com as pessoas sobre isso porque.
. . hoje eu sou uma pessoa que tem a autoestima muito boa que tem muitas oportunidades sempre tive, mas hoje eu consigo.
. . eu tenho as minhas relações que me apoiam muito e etc mas eu sei que temos aí as crianças e adolescentes que vão passar por isso também e eu queria muito dar uma mão porque não tem preço quando você olha do lado de fora alguém e pensa "sou eu!
" "essa pessoa está falando de mim" e não é uma imagem feia, não é uma imagem animalizada não é uma imagem ridicularizada é só uma imagem de uma pessoa que vive a vida dela, assim como eu vivo mas ai, eu comecei o processo de criar novas relações e querer que essas novas relações me conhecessem de uma forma diferente então, eu tenho lá minha família pai, mãe, todo mundo. . .
que me chamam de Ana Júlia e vão sempre me chamar de Ana Júlia E eu acho que é um nome lindo, antes que me perguntem Eu não disse que não gosto desse nome eu não quero mudar meu nome nos registros eu não quero. Mas as pessoas têm esse direito mas eu gostaria muito de ter esse eu, que sou eu mesma que fui eu que trouxe para o mundo reconhecido pelas pessoas Respeito muito a minha família e tudo o que eles são pra mim, e o que eles abraçam mas para as novas relações que eu fui criando durante a vida eu sou AJ. E é muito legal porque eu acho que todo mundo deveria experimentar Fazer algo assim, tipo.
. . se questionar mesmo se tá sendo quem é porque é quem se é mesmo, ou.
. . se é porque falaram, do lado de fora "Ah, você gosta disso porque você.
. .