[Ana] Esse é o primeiro vídeo de uma série de vídeos sobre diabetes. E aqui você vai encontrar história, fofoca e muita treta nessa longa jornada que foi a descoberta do que é o diabetes e de como tratar essa doença que era uma sentença de morte agoniante pra quem recebia o diagnóstico. ♪ 1552 a.
C. Esse é o ano do primeiro grande registro de sintomas do diabetes, escrito no Papiro de Ebers. Nesse papiro tá registrado que o Imotepe, um alto sacerdote do faraó, tinha um sintoma bem conhecido da doença hoje em dia: excesso de urina, que tem o nome chique de poliúria.
[grunhidos selvagens] [Ana] Muitos, muitos anos depois, por volta de 130 a 200 d. C. , tem mais registros de descrição da doença.
O médico grego Areteus da Capadócia é considerado o autor das melhores descrições médicas da doença da literatura antiga. Foi ele que criou o termo diabetes, que significa sifão. "Ai, mas o que que tem a ver sifão com diabetes?
" Pois é, sifão é um tubo usado pra passar líquidos de um recipiente pro outro, certo? Igual o que você tem aí embaixo da sua pia de cozinha. O Areteus usou esse termo por causa da maior frequência e volume de urina nas pessoas com a doença.
Foi esse o jeito que ele encontrou pra dizer que a água entra e passa pelo corpo como se fosse um sifão, e isso vai "consumindo" a carne e os ossos. Posso ler um trechinho da descrição do Areteus? -Não.
[Ana] Prometo que é bem legal, mas vai valer a pena, pera aí: "O diabetes é uma afecção maravilhosa, se caracteriza pela liquefação da carne e dos membros em urina. Os pacientes nunca param de produzir água e o fluxo é incessante, como na abertura de aquedutos. Portanto, a natureza da doença é crônica, levando um tempo bastante longo pra se formar.
Porém, a vida do paciente é curta se a doença se estabelecer completamente, pois a liquefação é rápida e a morte, mais rápida ainda. " É isso aí, nossa, dá até um arrepio aqui, meu Deus do céu. Essa descrição resume todo o conhecimento que a humanidade tinha sobre a doença até, pasme, metade do século XVII.
-Não diga? -Digo! -Que coisa!
[Ana] Por mais de 2. 800 anos, desde a primeira descrição da doença até 1600 e pouco, o diabetes foi considerado uma sentença de morte, onde o paciente definhava até o coma e depois morria. Foi em 1674 que o conhecimento da doença começou a progredir, depois que um médico inglês ousado, né, o Thomas Wills descobriu pelo sabor que a urina dos diabéticos é doce.
-Hã? [Ana] Sim, é pelo sabor, é isso mesmo que você ouviu. Olha isso.
. . [Ana] Na verdade, isso foi uma redescoberta.
O Willis não sabia, né, porque os documentos ainda não tinham sido descobertos, mas um documento antigo hindu de 400 a. C. já mostrava que os médicos indianos teriam sido os primeiros a detectar a doçura na urina de pacientes com diabetes, a partir da observação de que a urina atraía formigas e moscas.
Eu achei aqui os indianos mais ligeiros, né? Não precisaram beber xixi de ninguém. -É verdade!
[Ana] Bom, mas enfim, ficou por isso mesmo, porque por mais que ele tenha provado, né, e comprovado que a urina é mesmo doce, não dava pra falar que isso era açúcar, porque existem várias substâncias que são doces na língua. Mas, em 1776, mais de 100 anos depois, outro médico inglês foi um pouquinho mais esperto. Ele ferveu a urina de diabéticos e viu que sobrava um material com aparência de açúcar mascavo.
Foi mais ou menos nessa época que criaram o termo "mellitus", que significa "doce como o mel". E foi mais ou menos nessa época também que viram que tinha pelo menos dois tipos de diabetes: o diabetes mellitus, né, que tem muita urina e essa urina é doce, e o diabetes insipidus, que tem muita urina não adocicada, né? Insipidus é sem sabor.
Isso porque existiam relatos raros, mas existiam, de pacientes que também produziam muita urina, mas ela era totalmente diferente, de cor muito clara e sem gosto doce. Tá ok, diabetes mellitus, muita urina doce. Até esse momento, os sintomas estavam muito claros, mas não se sabia qual que era o órgão com defeito que causava a doença.
Por envolver urina, o consenso até essa época era de que os diabéticos tinham problemas nos rins, mas em 1788, outro médico inglês fez uma autópsia de um paciente diabético. E registrou que ele tinha um pâncreas atrofiado. Lembrando que abrir corpos humanos depois da morte pra estudar foi tabu e foi proibido por muito tempo na história, e só foi um método de estudo aceito ali depois da Idade Média.
Por isso, não tem registro de ninguém que tenha feito isso antes. -Eu fiz o que se chama autópsia pra saber por que ele morreu. [Ana] Esse registro do pâncreas atrofiado da pessoa com diabetes foi a primeira referência conectando pâncreas e diabetes.
Mas mesmo assim, isso não teve muita força na época porque tava surgindo uma hipótese quentinha de que o problema não eram os rins, e sim o intestino. Vermes? Não, nem perto disso.
[risada] [Ana] O que aconteceu foi que, no final do século XVIII, o médico John Rollo usou essa história aí de ferver a urina até sobrar o açúcar pra quantificar o açúcar do dia todo. E assim ele viu que o tanto de açúcar na urina variava de acordo com o que a pessoa comia. E aí ele relatou que materiais que ele chamou de origem vegetal, como grãos, frutas, pães, aumentavam o açúcar na urina, e os de origem animal, como carne, diminuíam.
E ele concluiu que o intestino dos diabéticos era defeituoso e que aumentava a produção de açúcar com materiais vegetais. E por isso ele indicava dieta baixa em, o que sabemos que é hoje, carboidratos e alta em proteínas. Esse é o primeiro tratamento da doença com dieta que foi baseado em observação concreta.
Porque assim, tiveram muitos "tratamentos" ao longo da história que eram só baseados em vozes da cabeça, como sangria, ópio, jejum, doce em abundância, aveia, banana e até isolamento do paciente trancado às chaves por vários meses. -Deus me defenderá. [Ana] Inclusive, o John Rollo suspeitava que o açúcar tava alto não só na urina, mas no sangue também.
Mas naquela época não era tão fácil provar isso, não era só evaporar o sangue, né, não era tão simples. Muita gente tentou medir o açúcar no sangue, mas sem sucesso. Na verdade, essa recomendação desenvolvida pelo John Rollo de cortar carboidratos só mudou de verdade bem mais pra frente, com a chegada da insulina na história, já no século XX.
Ou seja, pessoas com diabetes passaram séculos tendo como tratamento apenas a dieta no carb, né? Olha só que desgraça. -Que "tistreza".
[Ana] Mas antes de chegar na insulina, no século XIX, várias pessoas estavam estudando profundamente a doença. Surgiram várias hipóteses de que o órgão defeituoso era o cérebro, ou também que era o fígado. E claro, a ideia de ser o pâncreas sempre ficava ali em segundo plano, até porque o próprio pâncreas ainda não era um órgão muito bem conhecido.
Já se sabia que era um órgão envolvido na digestão, porque ele libera suco pancreático no intestino, mas uma descoberta de 1869 deixou a galera intrigada. Paul Langerhans descreveu que o pâncreas tinha umas estruturas arredondadas, né, em formatinho de ilha, umas ilhotas. E a presença dessas ilhotinhas, aparentemente sem nenhuma relação com a digestão, foi uma incógnita na época.
Guarda essa informação! Nesse mesmo período, dois cientistas franceses, o Lancereaux e o Bouchardat. Eu não sei se é assim que fala, tá?
-Oui. [Ana] Eles concluíram que existiam dois tipos de diabetes mellitus: um que era em pessoas mais jovens, que era mais grave e também que não respondiam a essa dieta de tirar o carboidrato, e o outro em pessoas com mais idade e mais frequente em pacientes obesos, onde a dieta e exercícios funcionavam muito bem. E aí eles chamaram esses dois de "diabète maigre", que é diabetes dos magros, e "diabète gras", que é diabetes dos gordos.
Gastei o francês aqui, eu nem sei se tá certo, mas enfim. . .
Então, até esse momento tinha conhecimento de pelo menos três tipos: insipidus, aquele com muita urina só que sem sabor; e diabetes mellitus dos jovens magros e diabetes mellitus dos adultos obesos. Agora, marca esse ano: 1889. Foi o ano de um dos experimentos mais clássicos da Medicina.
Olha, até arrepia! Gente, pelo amor de Deus. [ri] Nessa época tava bem aceito o conceito de que existiam glândulas que secretam mensageiros químicos diretamente no nosso sangue, que mais pra frente vieram a receber o nome de hormônios.
E se acreditava que o pâncreas poderia ser uma dessas glândulas. Assim, eles achavam que era impossível retirar o pâncreas e algum animal continuar vivo, dada a importância desse órgão, né? Ele funciona tanto pra digestão quanto pra alguma coisa que ainda não se sabia.
E testando isso na prática, dois cientistas, o Joseph von Mering e o Oscar Minkowski, retiraram o pâncreas de dois "cachórros". . .
"Cachórros"? Cachorros. [latido] [Ana] De dois doguinhos.
E, pra surpresa deles, os animais sobreviveram! Só que em menos de um dia depois da cirurgia, os cachorros passaram a mijar muito. E mijar muito era uma coisa que já estava muito bem relacionada com diabetes.
E o estudo nem era sobre diabetes, mas isso acendeu uma ideia neles. E essa descoberta completamente acidental, assim como muita coisa na ciência, né, virou até hoje um modelo de pesquisa científica clássica em fisiologia, com observação, hipótese e experimentação. Gente.
. . ai, me arrepia inteira, sério!
E eles ainda mostraram que implantar de volta uma pequena parte do pâncreas retirado dos cachorros evitava o surgimento dos sintomas. [Laura] Ó, que bom! [Ana] A partir daí, gente, acendeu uma luz no mundo todo de que era quase certeza que o órgão defeituoso do diabético era o pâncreas.
Que deveria então secretar o tal hormônio que faltava no diabético. Foi sugerido que quando esse hormônio fosse encontrado, ele deveria se chamar insulina, porque ele vem da ínsula, da ilha, da ilhota, né, descoberta lá atrás pelo Langerhans. -Agora todas as peças se encaixaram!
[Ana] Mas até aí ninguém tinha conseguido isolar, produzir ou mesmo observar a tal da insulina. Nesse meio tempo, o Paul Langerhans tinha acabado de falecer, ele sofreu uma morte muito prematura. Então, em homenagem a ele, deram o nome de ilhotas de Langerhans.
E essas estruturas começaram a receber muita atenção dos especialistas da área no mundo todo. Vocês têm noção que o conhecimento da doença ficou travado por milhares de anos e só em duas décadas dá pra dizer que nasceu a endocrinologia moderna experimental e clínica? Bom, com tudo isso descoberto, começou um pega pra capar no mundo todo pra ver quem seria o primeiro não só a demonstrar a existência da tal insulina, como conseguir fazer o precioso extrato, o suco do pâncreas, que poderia ser o primeiro tratamento eficaz pros pacientes que até então tinham poucas perspectivas de vida depois do diagnóstico.
Até então, não se sabia que a insulina era um hormônio feito de proteína, né? E qual que é o problema disso? O problema é que, como toda proteína, se ela entrar no seu corpo pela boca, ela vai ser digerida pelo trato digestivo.
Ou seja, ela vai ser picadinha, né, dentro do corpo. E aí, quando ela entrar, ela não vai ser mais insulina, ela não vai mais funcionar, né, não vai ter efeito. E aí, sem saber disso, em vários estudos tentaram dar o suco de pâncreas pela boca, tanto em animais quanto em humanos, e esses estudos todos fracassaram.
E também todos os estudos que tentavam fazer extratos do pâncreas inteiro também fracassaram, porque o pâncreas, né, como eu já falei, tem a parte que secreta o suco pancreático com várias enzimas que ajudam na digestão, e isso acaba estragando a insulina. A insulina precisava ser retirada só das ilhotas pancreáticas. Então eles tinham meio que ficar, literalmente, com uma lupa pescando as ilhotas pra tentar extrair delas a insulina.
Pelo menos em pesquisa, né? Pra larga escala isso seria inviável, mas a gente chega lá. Eu fiz muito isso daí no mestrado e no doutorado pra estudar as ilhotas.
Eu chegava a pescar mais de 5 mil ilhotas por dia. Era trabalho, hein! Foi em 1921 que tudo mudou, quando um médico chamado Frederick Banting decidiu que ia conseguir fazer funcionar o tal extrato do pâncreas.
Ele buscou a ajuda de um professor, o John Macleod, pra fazer os experimentos, mas Macleod era contra. Ele achava que era impossível ter um extrato de pâncreas pra tratar diabetes, porque ele tinha certeza que a parte do pâncreas que participa da digestão ia sempre estragar a insulina. O Banting conseguiu convencer o Macleod com um artigo que mostrava que fechar os ductos pancreáticos fazia as células que fabricam as enzimas digestivas atrofiar, mas as ilhotas de Langerhans ficavam intactas.
Desse jeito, seria possível extrair e preservar a insulina com mais facilidade. Então, a partir de experimentos cirúrgicos em vários animais, o Banting e um assistente chamado Charles Best. .
. o Macleod não participou dos experimentos, ele tava viajando na Europa. Eles conseguiram um extrato de pâncreas que diminuía o açúcar no sangue de cachorros sem pâncreas.
E sim, nessa época já tinham conseguido desenvolver um método pra medir o açúcar no sangue, não precisava mais ficar fervendo até evaporar a urina. -Vambora! [Ana] E aí, quando o Macleod voltou da Europa e olhou os resultados, ele percebeu que só aquele extrato de pâncreas não ia ser viável.
Tinha que ter um refino do hormônio, purificar a insulina pra evitar efeitos colaterais. E é aqui que entra o quarto nome dessa história: o químico James Collip. E aí, com esse refino do Collip, a insulina ficada a partir do suco de pâncreas deu certo nos testes nos animais.
Então, eles se sentiram encorajados pra partir pra experimentos em humanos. Foi em janeiro de 1922 que o mundo mudou pra sempre. Eles injetaram o extrato purificado no paciente Leonard Thompson, que era um adolescente que ia fazer 14 anos.
Ele era diabético tipo 1 e pesava menos de 30 kg, e era considerado um paciente terminal. Foram algumas injeções naquele mesmo mês, com adaptações da técnica de extração, baseado nos efeitos colaterais que o menino tinha, até conseguir que o açúcar no sangue dele abaixasse com bem menos efeitos colaterais e ele recuperasse as forças, voltando a ganhar peso. -Olha que bacana!
[Ana] Os jornais daquela época ficaram polvorosos, anunciaram o que seria a cura do diabetes, assim como os jornais de hoje noticiam também a cura do diabetes a cada unidade de paciente que entra em remissão por causa de um tratamento novo. Mas enfim, o menino foi salvo graças ao novo tratamento e não morreu de diabetes; ele morreu muitos, muitos anos depois, já adulto, de pneumonia. E ele é considerado o primeiro paciente a ser tratado de forma eficaz com insulina.
Essa descoberta fantástica rendeu o prêmio Nobel de Medicina em 1923, só um ano depois. Olha a agilidade que foi isso! A Banting e Macleod, lembrando que o Macleod era só supervisor, né, o professor do departamento, ele não participou dos experimentos.
Sim, gente, o comitê do Nobel deixou o Best e o Collip de fora do prêmio, mas isso gerou uma porrada de críticas e o Banting espalhou que o Best tinha sido essencial e dividiu o prêmio com ele, e o Macleod também fez a mesma coisa com o Collip. Esse é só um dos inúmeros bafafás da premiação do Nobel. Que, convenhamos, né, é muito conhecida por ser injusta.
Mas a partir desse momento histórico, o problema não era mais a descoberta da insulina ou qual o órgão defeituoso, mas sim como fazer que ela chegasse aos milhares de pacientes com diabetes no mundo todo. Até aqui, a gente fez uma viagem no tempo dos caminhos que levaram à descoberta e entendimento do diabetes e à descoberta da insulina. Agora a gente vai ver exatamente o que é o diabetes e seus vários tipos, e o que aconteceu depois da descoberta da insulina, contando inclusive a "nova corrida" que se iniciou a partir daí pra saber quem seria o primeiro laboratório a conseguir fabricar esse hormônio pra vender mundialmente.
Mas só no próximo vídeo, gente! Ah, não, aqui já ficou muito grande, já não dá! Ó, 26 minutos no vídeo, já não dá.
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