Não há sentido e nem é ético promover um progresso científico e tecnológico que não responda aos interesses humanos. Que se limita aos interesses do mercado e da concentração de renda. E a ética é simples: todo avanço tecnológico deve ser direcionado no sentido de promover o bem-estar das pessoas.
Qualquer avanço tecnológico que ameace o trabalho e a vida de milhares de famílias, por exemplo, não poderia deixar de ser acompanhado de outro avanço tecnológico capaz de atender as vítimas do progresso anterior. É aí que está o caráter político da ciência. Não se trata de uma discussão tecnológica.
É uma discussão política. A inovação necessária para o desenvolvimento da ciência, é feita em favor de quem? O problema é claro.
Assim como o sujeito ético sabe que não deve usar a sua liberdade de pensar, de fazer, de questionar e de criticar para esmagar a liberdade dos outros, os avanços tecnológicos, em uma perspectiva ética, não podem ultrapassar os limites que fazem com que as mudanças levem milhares de pessoas à desesperança. E é preciso ficar claro também que isso não significa impor obstáculos à pesquisa científica ou mesmo frear os avanços tecnológicos, mas sim, colocar a ciência e a tecnologia a serviço dos seres humanos. A disseminação de tecnologias que levam ao sacrifício de milhares de trabalhadores é um exemplo importante de como as leis do mercado, insensíveis às pessoas, frequentemente transgridem a ética universal dos seres humanos.
E vale repetir. A implantação de uma tecnologia que leva milhares de pessoas ao desemprego não pode deixar de ser acompanhada por uma tecnologia capaz de atender a essas famílias, sobretudo no momento em que estão mais vulneráveis. Se a ciência tem conseguido soluções tecnológicas para tantos problemas, não é difícil observar que as escolhas dos problemas a seres resolvidos são escolhas políticas.
Agora, Paulo Freire sabe que, em uma sociedade capitalista como a nossa, é difícil mesmo formular uma política educacional e científica que valorize o ser humano, e não apenas o mercado. Até porque, como mencionamos nos vídeos anteriores, Paulo Freire nunca foi idealista, no sentido romântico da palavra. Então ele diz que, se por um lado, é óbvio que não há desenvolvimento sem lucro, sem capital, sem investimento, o objetivo do desenvolvimento, por outro lado, não pode ser a concentração de renda nas mãos de poucos.
E por consequência, a exclusão deliberada da maioria que não tem condições nem oportunidades de usufruir dos benefícios desses avanços. O que ele argumenta, portanto, é que se queremos mesmo superar essa crise sem fim, é preciso ter a coragem de escolher o caminho da ética. Para ele, essa concentração de privilégios não é boa nem para os privilegiados, porque eles acabam perdendo também.
Uma sociedade desigual tende a ser mais violenta para todos. Há um grande desperdício de potencialidades quando jovens não têm oportunidades de se formar e desenvolver os seus talentos, sejam eles científicos, artísticos, esportivos, empresariais. Então é nesse sentido que não vale nada uma sociedade tecnológica que opta por substituir pessoas por máquinas, ou seja, sujeitos por objetos, para poder descartar as pessoas da economia.
As famílias. Os homens e as mulheres. Os Pedros e as Marias, como Paulo Freire gosta de dizer, para nos lembrar que a gente não está falando de estatística ou de conceitos abstratos, mas de pessoas com um nome e com uma história.
Então, é por tudo isso que os professores e as professoras devem estar atentos ao poder do discurso ideológico, a começar por aquele que proclama a neutralidade. Paulo Freire até admite que alguns desses discursos não são necessariamente perversos, mas ingênuos, porque às vezes são formulados por pessoas que realmente não conseguem perceber a natureza ideológica de seus discursos. E certamente por ignorar que essa é a característica definidora da ideologia: a capacidade de deixar as pessoas míopes.
A ideologia é persuasiva justamente porque confunde a nossa visão, distorce a nossa percepção e nos leva a acreditar que uma construção histórica e cultural, feita por seres humanos que colaboram e disputam entre si, seria, na verdade, um dado natural, neutro, inquestionável. Nesse ponto, Paulo Freire nos dá alguns exemplos importantes para que a gente possa enxergar com clareza como é que a ideologia se infiltra na cultura e se expressa através de ditos populares, por exemplo, que parecem trazer verdades inquestionáveis, mas que, na verdade, devem ser objeto de reflexão crítica. Porque longe de seres naturais, longe de trazerem verdades definitivas, essas expressões estão carregadas de ideologia.
Ou estão carregadas de valores que buscam justificar ideologias, como se esses valores fossem naturais. Então, quando dizem coisas como: “O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz.
” “Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher. ” “Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra? ” “Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa.
Perguntar-lhe seria uma perda de tempo. ” “Maria é negra, mas é bondosa e competente. ” “Esse sujeito é um bom cara.
É nordestino, mas é sério e prestimoso. ” “Você sabe com quem está falando? ” “Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher.
” “Quando negro não suja na entrada, suja na saída. ” “O governo deve investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto. ” “Você não precisa pensar.
Vote em fulano que pensa por você. ” Então fica o convite para que vocês mesmos identifiquem as ideologias ocultas nessas sentenças. Existe racismo disfarçado em uma frase que diz que Maria é negra, mas é competente?
Existe misoginia em uma frase que justifica o assassinato de uma mulher por motivo de honra? Quais são os outros preconceitos infiltrados nessas frases que parecem trazer verdades tão naturais? Este é um exercício importante para estimular um olhar crítico sobre as ideologias.
E isso faz também com que o professor se predisponha, por um lado, a manter uma atitude sempre aberta em relação à realidade, e de outro, mantenha uma desconfiança metódica em relação às certezas, aos discursos que se apresentam como portadores de uma verdade inquestionável. Até porque, para que a gente possa resistir às artimanhas da ideologia, não devemos nem nos fechar aos outros, nem nos enclausurarmos nas nossas verdades. É o contrário: segundo Paulo Freire, o melhor caminho para a reflexão crítica é se expor às diferenças, ouvindo com respeito, sem cair na armadilha do dogmatismo aquele que imagina que é o portador da verdade e também, é claro, sem se tornar um objeto acomodado do discurso do outro.
Essa é uma atitude de quem se encontra em permanente disponibilidade para o diálogo, seja perguntando, seja respondendo, sejam concordando ou discordando. Agora, é claro que essa disponibilidade inclui os contratempos: há quem tenha simpatia, outros são antipáticos. Existem debates leais entre os antagonistas, mas também há muita deslealde.
Dialogar significa estar exposto tanto ao sorriso da aprovação quanto à cara carrancuda da desaprovação. Disponibilidade para a vida é isso. Mas é com essa disponibilidade para a vida, pensando as contradições de forma crítica, reagindo aos contratempos com criatividade, e fortalecendo a curiosidade em relação às diferenças é que podemos nos conhecer melhor.
E quanto mais a gente se permite vivenciar a experiência de lidar sem medo e sem preconceito com as diferenças, mais a gente tem oportunidade de nos conhecermos melhor e construir o nosso próprio perfil com mais consciência de nós mesmos.