Me chamo Rafael, tenho 24 anos, moro em Belo Horizonte e nunca fui muito de acreditar em coisas sobrenaturais. Sempre fui mais ligado em lógica, ciência, explicação racional para tudo. Mas tem uma coisa sobre estar no meio do mato, longe da cidade, sem sinal de celular nem luzes por perto.
Parece que muda a forma como a gente enxerga o mundo. Foi numa dessas viagens que vivi algo que até hoje não consigo explicar direito. Era começo de julho, quando fui passar um mês na fazenda da minha avó em Santa Bárbara.
Fazia anos que eu não ia para lá desde adolescente. A vida na cidade me engoliu num ritmo acelerado entre faculdade, estágio, trânsito e obrigações que se empilham. Quando meu pai comentou que minha avó estava precisando de ajuda com algumas coisas na fazenda, vi ali uma chance de respirar, literalmente.
A fazenda fica a uns 15 km do centro de Santa Bárbara, uma casa antiga feita de madeira escura. e paredes grossas de Adobe. O telhado rangia com o vento.
Os móveis ainda eram os mesmos da minha infância. E o cheiro de café fresco misturado com lenha queimada ainda me dava aquela sensação de voltar no tempo. Minha avó era do tipo firme.
Desde que meu avô faleceu, há alguns anos, ela se manteve sozinha por lá com a ajuda de um vaqueiro que aparecia só durante o dia. Não era mulher de muito papo, mas fazia questão de cozinhar para mim todos os dias. e me ensinar algumas coisas da vida rural que eu já tinha esquecido.
A rotina era simples. Acordar cedo, ver o gado, consertar alguma coisa, descansar à tarde, jantar e dormir cedo. Ou pelo menos era para ser assim.
Logo no segundo dia, fui até o estábulo e reencontrei um velho conhecido, Caramelo, o cavalo que meu avô me deu quando eu tinha 13 anos. Um quarto de milha baio calmo, mas com personalidade forte. Lembro até hoje da tarde em que ele me entregou as rédias dizendo que aquele era meu presente, um símbolo de responsabilidade.
Era o tipo de gesto simples, mas cheio de significado. Quando ele faleceu, uns 4 anos depois, minha avó passou a cuidar do cavalo com um carinho quase ritual. E mesmo agora com mais idade, Caramelo ainda estava lá firme, me reconhecendo com aquele olhar manso.
Aquilo me tocou mais do que eu esperava. Nos primeiros dias, confesso que foi até tranquilo demais. O silêncio me incomodava.
À noite, deitado na cama de colchão duro, dava para ouvir tudo. Os sapos no brejo, os galhos estalando lá fora, o gado se movimentando ao longe, o tipo de som que a cidade encobre, mas que no mato parece amplificar. Foi no quinto dia que percebi algo estranho.
Acordei com um barulho metálico, um som rápido, como se alguma coisa tivesse sido solta ou arrastada. Mas quando saí para olhar, não vi nada fora do lugar. O curral lá no fundo do terreno estava como sempre, silencioso e escuro.
Voltei paraa cama, achando que era impressão minha. Na manhã seguinte, minha avó comentou uma coisa enquanto tomávamos café. A porteira do curral apareceu aberta hoje cedo.
"Você chegou a ir lá ontem? ", neguei com a cabeça. Ela não insistiu, mas aquela informação me deixou com a pulga atrás da orelha.
Depois daquele comentário da minha avó sobre a porteira, comecei a prestar mais atenção. Não disse nada para ela, até porque podia ser algo simples. Vento forte, madeira soltando, bicho passando.
Era mais fácil acreditar nisso do que pensar em qualquer coisa fora do comum. Mesmo assim, algo me incomodava, uma espécie de pressentimento que eu não sabia explicar. À noite ficava escutando cada barulho do lado de fora, como se fosse um aviso.
Às vezes o vento soprava mais forte e fazia barulho nas telhas. Outras vezes ouvia um estalo vindo da direção do curral, como se alguém pisasse em gravetos secos. Eu dizia para mim mesmo que era o gado se movimentando, mas era difícil ignorar a frequência com que acontecia sempre por volta da mesma hora, entre 2 e 3 da manhã.
No sexto dia, antes de dormir, fui até a varanda com uma lanterna. O céu estava limpo, estrelado, mas o vento estava mais frio do que nos outros dias. Caminhei até o começo do caminho de terra que levava ao curral.
A escuridão parecia mais espessa do que o normal. Apontei a luz da lanterna para a cerca e vi tudo no lugar. A porteira estava fechada, cadeado no lugar, corrente firme, voltei para dentro com uma sensação estranha, não medo exatamente, mas um desconforto silencioso, como se estivesse sendo observado de longe.
Na manhã seguinte, a porteira estava aberta de novo. Dessa vez, fui eu quem notou. Saí cedo para ver caramelo e percebi o portão escancarado, a corrente caída no chão, o cadeado a uns 2 m dali.
Nada quebrado, sem marcas de arranhão, sem sinal de invasão. O que quer que estivesse acontecendo não era obra de animal. Voltei para casa e comentei com minha avó: "A senhora tá deixando o cadeado solto?
" "Claro que não. Eu mesma tranquei ontem à noite. " Ela respondeu sem desviar os olhos do café que passava.
Tá estranho isso. Já é a terceira vez que isso acontece desde que cheguei. E ela me responde de volta.
Quarta. já tinha acontecido antes de você vir. Ela falou sem dar muita importância, como se fosse apenas mais uma dessas coisas que acontecem na roça.
Mas eu percebi que ela evitou olhar para mim quando disse isso e ficou quieta o resto do dia. Naquela noite, comecei a sentir dificuldade para dormir. A janela do meu quarto dava pro lado da mata e o luar forte deixava tudo meio prateado.
Fiquei encarando o teto por um tempo até ouvir um barulho. Um clique metálico curto. Me levantei devagar.
Peguei a lanterna e fui até a janela. Nada. O campo parecia imóvel.
Nenhuma folha se mexia, mas juro por tudo. Senti como se alguém estivesse parado ali fora, olhando para casa. Talvez fosse só o vento, ou talvez fosse a primeira vez que algo estava de fato olhando de volta.
Depois daquela noite, novamente encontrei a porteira aberta. Então decidi que não dava mais para ignorar. Eu precisava entender o que estava acontecendo, mesmo que fosse algo simples, até bobo.
Parte de mim queria acreditar que era só alguém passando trote, algum moleque da região tentando assustar, mas outra parte, uma que eu tentava calar, sabia que tinha algo diferente naquela situação. Passei o dia observando os arredores. Verifiquei a cerca inteira, olhando se havia buracos, pegadas, qualquer sinal de passagem.
Nada, nem sinal de pegadas humanas ou de bicho. A terra batida ao redor do curral estava lisa, só com as marcas normais do gado. Voltei para casa com a cabeça fervendo.
Naquela noite esperei minha avó dormir e fui até o paiol. Levei uma cadeira dobrável, uma coberta grossa, lanterna e meu celular, sem sinal como sempre. Me escondi numa parte lateral, onde tinha uma boa visão da porteira, mas ainda estava encoberto pelas sombras.
O frio da madrugada era mais cortante do que eu lembrava. Cada rajada parecia passar direto pelo tecido da roupa. As horas foram passando devagar.
O tempo no mato tem um jeito estranho de desacelerar. Não havia barulhos nem movimento. Só o rangido ocasional do vento na cerca ou o mugido distante de alguma vaca.
Era perto das 3 da manhã quando senti algo mudar. Não ouvi um som específico. Foi mais uma sensação, como se o ambiente ao meu redor mudasse.
O ar parecia mais difícil de respirar. O frio piorou de repente, como se tivesse caído vários graus de uma vez. E então eu vi.
No limite do campo de visão da lanterna perto da porteira havia uma figura alta, magra e móvel. A luz era fraca demais para ver o rosto, mas dava para distinguir a silhueta. Chapéu largo, calça escura, uma camisa que parecia antiga, meio folgada demais no corpo.
A figura não se movia, apenas estava ali de pé. Meu coração acelerou, a mão tremia, mas eu mantive a lanterna firme. Apontei diretamente para ele.
Nada. Ele não se mexeu, nem um passo, nem um gesto, mas havia algo errado. A luz da lanterna parecia não iluminar ele.
Era como se houvesse uma sombra fixa ali, impedindo de ver qualquer traço. Fiquei congelado por alguns segundos, esperando que fizesse algo, um passo, um gesto, qualquer coisa. Mas o que aconteceu foi pior.
Ele olhou diretamente para mim. Não teve movimento de cabeça, nem gesto visível, mas eu senti como se o peso do olhar dele atravessasse à noite e me acertasse em cheio. Era um olhar antigo, frio e completamente vazio.
Pisquei. A luz da lanterna falhou por meio segundo. Quando voltou, ele não estava mais lá.
Corri de volta para casa, sem olhar para trás. Tranquei a porta, sentei no chão da cozinha e fiquei ali por quase uma hora tentando entender o que tinha acontecido. Eu não sabia o que era aquilo.
Não parecia real, mas também não podia ser um sonho. No dia seguinte, encontrei a porteira escancarada novamente. A corrente estava caída no mesmo lugar de sempre, o cadeado intacto.
Mas agora eu sabia, não era o vento. Eu precisava tirar aquilo da cabeça, precisava falar com alguém. E a única pessoa ali era minha avó.
Encontrei ela varrendo o terreiro, como fazia toda manhã. O sol mal tinha nascido. Fiquei parado por alguns segundos, segurando a caneca de café, observando ela em silêncio.
Quando percebeu, ela parou de varrer e me olhou com aquele olhar calmo de sempre. Aconteceu alguma coisa? Perguntou ela.
Vó, eu vi alguém no curral. noite, respondi direto, sem saber direito por onde começar. Ela soltou a vassoura devagar, encostando-a na parede da varanda, sentou-se no banquinho ao lado da porta, sem desviar os olhos de mim.
"Alguém? Como assim alguém? ", ela perguntou sem parecer surpresa.
Uma pessoa alta, magra, tava usando um chapéu. Eu fiquei escondido perto do paiol, vigiando a porteira. Era quase 3 da manhã.
A figura apareceu ali e ficou parada me olhando. Eu apontei a lanterna, mas não consegui ver o rosto. Ela respirou fundo, cruzou os braços e falou com uma calma que me deixou ainda mais tenso.
Você viu então? Como assim? Viu?
A senhora sabia disso? Perguntei, sentindo uma sensação estranha e um calafrio. Ela balançou a cabeça concordando devagar.
Seu avô também viu uma vez só. nunca falou muito sobre isso, mas depois daquela noite ficou diferente. "E por que nunca me contaram?
", perguntei surpreso e um pouco revoltado. "Porque ninguém acredita e quem acredita prefere não falar. Quando a gente fala demais parece que convida a coisa, dá força, entende?
", respondeu ela, olhando fixamente pro chão. "Mas o que é? " "Algum espírito, um homem?
", perguntei, ficando cada vez mais assustado. Ninguém sabe. A única certeza é que ele só aparece quando alguma coisa vai acontecer.
Acontecer o quê? Perguntei quase sem voz. Ela não respondeu.
Logo. Ficou alguns segundos em silêncio, olhando pro horizonte, como se esperasse encontrar uma resposta na neblina que cobria o campo. Depois falou com um tom baixo: "Às vezes é só um bicho que morre, às vezes é pior.
Já teve vaqueiro que saiu correndo de noite e nunca mais voltou. Teve bezerro que sumiu, sumisso mesmo, sem rastro. E teve um vizinho nosso.
Acordou com o cavalo morto, pendurado na cerca, com o pescoço virado. Senti um nó no estômago. E o que a gente faz?
Ela olhou para mim com firmeza. Nada. Não chama, não olha, não fala, só cuida da porteira e reza.
Mas eu já tinha olhado e ele já tinha olhado de volta. Aquela conversa com minha avó não saiu da minha cabeça o resto do dia. Fiquei andando pela fazenda sem rumo, tentando pensar em alguma explicação, tentando me convencer de que o que vi tinha sido um erro, um devaneio causado pelo frio, pelo escuro, pelo cansaço, mas eu sabia no fundo que não era.
A imagem da figura parada diante da porteira me encarando, me acompanhava como sombra. E agora que minha avó tinha confirmado que aquilo não era novo, que já tinha acontecido antes, tudo pareceu ganhar um peso diferente, mais antigo, mais inevitável. Naquela noite não consegui dormir.
Fiquei deitado na cama, olhos abertos no escuro, ouvindo cada som lá fora. Às 2as da manhã, levantei e fui até a janela. A brisa estava fria e úmida.
Tudo parecia parado. Sem coragem de sair de novo, voltei paraa cama e fiquei ali acordado até o céu clarear. Quando o sol finalmente apareceu no horizonte, fui direto pro estábulo.
O caminho estava silencioso, quase respeitoso demais. Quando me aproximei, senti uma coisa estranha no peito, como se algo já soubesse que eu estava prestes a ver. E então vi.
Caramelo estava caído no pasto, perto da cerca de madeira, o corpo estendido de lado e móvel. Corri até ele, ajoelhei ao lado e toquei seu pescoço. Estava frio, os olhos abertos, sem marcas de ferida, sem sangue, sem sinal de luta, apenas morto, como se tivesse parado de viver do nada.
"Não", murmurei sem conseguir conter o nó que apertava minha garganta. Minha avó apareceu pouco depois, em silêncio, com as mãos cruzadas na frente do corpo. Ficou ali me olhando ajoelhado ao lado do cavalo.
Não falou nada por um tempo. Quando finalmente disse algo, foi quase num sussurro. Eu te disse, ele aparece e algo acontece.
Por que o caramelo? Perguntei com a voz trêmula. Porque ele era importante para você", respondeu ela.
Porque você viu? Fiquei ali por mais de uma hora sem saber o que fazer, sem conseguir me levantar. Caramelo era uma das poucas conexões que eu ainda tinha com meu avô, com a infância, com algo bom.
E agora aquela presença sem nome, aquela coisa tinha tirado isso de mim sem deixar nenhuma explicação. Enterramos o cavalo perto da figueira, no fundo do terreno. Minha avó fez uma oração simples e eu fiquei olhando pro chão por muito tempo depois que ela entrou.
Naquela noite a porteira permaneceu fechada, mas eu sabia que isso não era o fim. Era só a pausa até que alguém olhasse de novo. Fiquei na fazenda por mais alguns anos depois daquele mês, ajudando minha avó no que fosse preciso, tentando devolver um pouco do cuidado que ela sempre teve com a família e com aquele lugar.
Foi um período silencioso, mas cheio de sentido. A rotina voltou ao normal, dentro do possível. O gado, o terreiro, o fogão, a lenha.
Mas uma coisa mudou em mim. Nunca mais olhei para a porteira à noite, mesmo quando saía para fechar o galinheiro ou quando ouvia um barulho vindo do curral, evitava virar o rosto naquela direção. Era como se instintivamente meu corpo soubesse que era melhor não convidar aquilo de novo, melhor deixar quieto.
Minha avó nunca mais falou sobre o que aconteceu, mas às vezes durante a noite eu havia sentada na varanda, olhando pro escuro em silêncio, como se escutasse coisas que eu não conseguia ouvir, e eu respeitava aquele silêncio. Quando ela faleceu, anos depois, foi tudo muito rápido. Um dia estava bem, no outro simplesmente se foi, como se o tempo tivesse apenas expirado ao redor dela.
Depois do enterro, meu pai e meus tios decidiram vender a fazenda. Disseram que era o melhor a fazer. Eu entendi.
Mas quando vi o portão de entrada sendo fechado pela última vez, senti um nó no peito. Era como deixar para trás uma parte de mim e uma parte daquilo também. Nunca mais voltei lá.
E até hoje, toda vez que penso naquela noite, lembro do olhar. Aquele olhar sem rosto parado do outro lado da porteira e do que ele levou de mim. O sol em Cuiabá não perdoa ninguém.
Quando aceitei cuidar da fazenda do meu tio durante a seca de 2017, sabia que ia ser difícil. O calor, o pó, a secura, tudo aquilo parecia grudar na pele e nos ossos. Mas o que eu não sabia naquela época é que o maior peso não viria do clima ou do trabalho, seria o silêncio.
A fazenda ficava a uns 40 minutos do centro, numa área cercada de mata seca e campo aberto. Não era grande, mas era bem cuidada. Meu tio nunca foi de morar lá direto.
Ele ia e voltava quando precisava, porque já contava com dois funcionários fixos que cuidavam da parte prática do dia a dia. Eu só fui porque naquele mês ele precisava que alguém dormisse na casa principal e cuidasse das coisas mais administrativas enquanto ele resolvia pendências na cidade. Era para ser simples.
Eu até gostei da ideia de me isolar um pouco. Na chegada, tudo parecia normal. Os funcionários, José e Marlene, faziam o que sempre fizeram.
Alimentavam os animais, cuidavam da cerca, limpavam o curral, mantinham o lugar funcionando. Eles iam embora no fim da tarde e voltavam cedo no outro dia. Durante o dia, a fazenda era viva, mas à noite ela virava outro lugar.
As noites ali eram secas e densas. Quando o sol se punha, a temperatura caía rápido e um vento constante soprava pelas janelas da casa. Ouvia-se o estalar dos galhos secos, o uivar distante de algum animal no mato e, principalmente, aquele silêncio sufocante que só existe quando não há mais nada em movimento ao redor.
Logo na primeira noite, deitei mais cedo, exausto da mudança, mas o sono não veio. Fiquei ouvindo aquele silêncio por horas. Tinha algo nele que incomodava.
Não era exatamente o barulho, era a ausência dele. Uma ausência que parecia atenta demais. Levantei no meio da madrugada, fui até a cozinha beber água e, por impulso olhei pela janela que dava pro paiol.
A lua iluminava levemente o terreno seco. Tudo estava quieto, normal. Mas mesmo assim, meu olhar ficou preso ali por um tempo, sem motivo aparente.
Havia algo naquele paiol que me deixava inquieto. Nada de concreto, apenas uma sensação esquisita de desconforto, como se o silêncio em volta dele fosse mais denso, mais preenchido. Na manhã seguinte, esqueci o assunto.
Havia tarefas, ligações, listas de coisas para verificar. O dia seguiu normalmente, como se nada tivesse acontecido. Mas naquela noite o silêncio voltou e com ele aquela mesma sensação estranha, como se tivesse algo ali, apenas esperando o momento certo para se revelar.
Me convenci de que era só o cansaço da viagem, o silêncio exagerado da roça, talvez até a mudança de rotina. Trabalhei o dia todo, revisei algumas planilhas que meu tio deixou comigo, ajudei a Marlene com uns registros de gado. E logo depois do almoço, José me avisou que ia ficar até mais tarde naquele dia.
A cerca lá do fundo arrivou terminar de consertar antes de escurecer, disse ele enquanto ajustava a cinta de couro na cintura. Tá bom, qualquer coisa me chama. respondi.
Quando ele voltou, já estava quase anoitecendo. Me entregou as ferramentas e comentou: "Se escutar algum barulho estranho à noite, não se assusta não, Gabriel. Esses matos falam sozinhos.
" Dei uma risada, mais para disfarçar do que por achar graça, mas foi ali que escutei meu nome em voz alta pela primeira vez desde que cheguei. Gabriel, ouvi tantas vezes na vida, mas naquela noite ele soou diferente, mas exposto. Depois que José foi embora, fiquei sozinho novamente.
Sentei na varanda após o jantar, como no dia anterior. casa já estava às escuras, exceto pela luz fraca da varanda e pelo clarão branco da lua cheia que iluminava o terreno seco. Tomei um gole de café morno e fiquei olhando pro campo, pro curral vazio, pro velho paiol ao fundo.
Era um barracão de madeira com teto baixo e estrutura antiga, onde guardavam ferramentas velhas, palha empilhada, arreios e algumas tralhas que ninguém mais usava. Não era um lugar onde eu gostava de entrar, nem durante o dia. Cheiro forte de coisa guardada, poeira e teias nos cantos.
Mas agora, à aquela hora da noite, ele parecia maior, mais escuro do que deveria. Foi então que ouvi um som suave, vindo de longe, quase imperceptível. Inclinei o corpo, tentando captar melhor.
A princípio, achei que fosse o vento passando por entre as tábuas do paiol, mas havia uma cadência estranha, como se fossem sílabas. Fechei os olhos e ouvi com mais atenção. Nada.
Silêncio total. Balancei a cabeça meio rindo de mim mesmo. É só o vento, pensei.
Entrei e fui dormir sem dar muita importância. Na terceira noite, porém, a coisa se repetiu. Dessa vez foi mais direto.
Eu estava deitado, quase pegando no sono, quando ouvi de novo. Um som abafado, curto, vindo da direção do paiol. Levantei, peguei a lanterna e fui até a varanda.
Fiquei parado por alguns minutos, encarando o escuro. Nada se movia. Mas então veio o som de novo, como um sussurro arrastado, um chamado Briel, meu nome?
Pisquei várias vezes, tentando ter certeza do que tinha ouvido. Não era alto, não era claro, mas parecia familiar. Fiquei ali por um tempo tentando encontrar alguma explicação lógica.
Talvez algum bicho, talvez o vento, ou talvez só minha mente pregando peça. O que quer que fosse, vinha sempre da mesma direção, o paiol. Voltei para dentro sem me aproximar mais, mas dormi mal naquela noite porque no fundo comecei a perceber que aquela voz parecia querer algo.
Acordei mais cedo do que o normal naquela manhã, não por vontade, mas porque tive uma noite mal dormida, um daqueles sonos quebrados, cheios de imagens que a gente não lembra ao acordar, mas que deixam o corpo cansado. Fiquei deitado por uns minutos, olhando pro teto, tentando me convencer de que era só o silêncio da fazenda que estava mexendo comigo. Mas não era só isso.
Desde que cheguei, algo parecia fora do lugar, não em algo específico, mas no ar, no clima, na forma como as coisas pareciam mais quietas do que deveriam. Depois do café, fui checar a área de trás da casa. O tempo estava abafado e nublado.
O ar parecia pesado. Caminhei pelo curral, dei uma olhada na caixa d'água, observei o pasto lá no fundo. Tudo aparentemente em ordem.
Foi aí que meus olhos pararam no paiol. Não aconteceu nada demais, nenhum som, nenhum movimento. Mas por algum motivo senti uma necessidade estranha de dar uma olhada ali dentro.
Era como se minha atenção tivesse sido puxada para lá, sem motivo claro. A porta estava fechada, mas sem tranca. Empurrei com cuidado.
A madeira rangeu como sempre, o que me fez hesitar por um instante. O cheiro do lugar era o mesmo de sempre. Poeira, palha seca e o velho óleo que o José usava nas ferramentas.
A luz do lado de dentro era fraca, entrando pelas fras das tábuas. Caminhei devagar, passando os olhos por tudo. Prateleiras com latas vazias, uma bicicleta velha encostada num canto, algumas cordas penduradas.
Foi quando notei algo no chão entre os fardos de palha pegadas. Na palha espalhada havia um rastro fresco. Não era muito profundo, mas dava para ver a marca do solado.
A princípio, não me preocupei. Podia ser do José ou da Marlene, talvez de quando guardaram algo ali. Mas quando me aproximei, as pegadas eram iguais às minhas, não parecidas, iguais.
O mesmo padrão na sola, o mesmo desgaste no canto do calcanhar, como se eu mesmo tivesse andado ali na noite anterior. Mas eu não entrei. Eu lembraria.
Ajoelhei devagar e toquei a palha com a ponta dos dedos. estava revirada, como se alguém tivesse passado por ali há pouco tempo, mas o lugar estava fechado. Eu mesmo não usava aquele espaço e os dois funcionários também não entravam ali sem motivo.
Fiquei parado por alguns segundos, tentando racionalizar. Talvez tivessem usado minhas botas em algum momento. Talvez eu mesmo tivesse entrado e esquecido, mas nada disso fazia sentido.
Saí do paiol devagar. Fechei a porta e caminhei de volta para casa com um nó no estômago. Não sabia o que estava acontecendo.
Só sabia que aquilo não era normal. E pela primeira vez considerei que talvez o que eu estava vivendo não pudesse ser explicado com lógica. Naquele dia, depois de ver as pegadas no paiol, fiquei o resto da tarde tentando achar alguma explicação razoável.
Me forcei a fazer coisas normais. Almocei, revisei os registros do rebanho, ajudei Marlene a separar ração. Quando ela e José foram embora no fim do dia, me despedi, como sempre, tentando não demonstrar que algo estava errado, mas estava e eu sabia.
Voltei para casa com a cabeça pesada. A luz do fim da tarde batia por entre as árvores retorcidas, deixando o terreno com um tom meio avermelhado, quase queimado. O calor parecia mais abafado do que o normal.
Fechei as janelas cedo, fiz um café forte, liguei o rádio por alguns minutos, mas desliguei logo em seguida. O som da estática, no fundo, me incomodava. Tentei me distrair lendo um livro velho que achei na estante da sala, mas não consegui passar da terceira página.
Meus olhos não paravam de voltar pra direção do paiol, mesmo com a porta da casa fechada. Quando anoiteceu, fui dormir mais cedo. Me deitei com as luzes apagadas, tentando acalmar a mente, mas o silêncio lá fora estava diferente, pesado, como se o ar carregasse alguma coisa.
Fiquei um tempo imóvel, ouvindo o som do meu próprio respirar. Foi quando escutei de novo, Gabriel. O som veio de longe, quase como um eco, mas era claro.
Sentei na cama em silêncio, tentando entender. Esperei nada. E então, poucos segundos depois, Gabriel, mais próximo agora, como se estivesse vindo do lado de fora da casa ou talvez da janela.
Não era um grito, nem um chamado comum. Era um sussurro arrastado, íntimo, direto. Fechei os olhos por um instante e então percebi.
A voz era minha, não parecida. Era exatamente a minha voz. O mesmo tom, o mesmo ritmo, até a mesma forma como eu falava meu nome quando pensava alto.
O gelo subiu pela espinha. O coração acelerou de um jeito estranho. Não como quando a gente leva um susto, mas como quando percebe algo que simplesmente não deveria ser possível.
Levantei devagar, fui até a porta do quarto e fiquei ouvindo imóvel, silêncio. Mas não era um silêncio vazio, era tenso, cheio, como se o som estivesse escondido atrás das paredes, esperando que eu respirasse de novo. Voltei paraa cama sem acender nenhuma luz.
Me encolhi sob o lençol e fiquei com os olhos abertos no escuro, encarando o teto, tentando encontrar uma explicação. Mas eu já sabia. Aquela coisa, seja lá o que fosse, não estava tentando me assustar, estava tentando se parecer comigo.
No dia seguinte, acordei com o rosto pesado e a cabeça latejando. O sol já estava alto e o calor batia forte contra as janelas da casa. Caminhei devagar até a cozinha, como se meu corpo estivesse tentando esquecer a noite anterior, mas minha mente não deixava.
Tomei o café quase frio e fiquei um tempo parado, encarando a porta da frente. Resolvi que precisava falar com alguém. Quando José chegou no meio da manhã, fui direto ao ponto.
Esperei ele terminar de descer do trator e chamei num tom mais baixo. José, posso te perguntar uma coisa? Ele me olhou de lado, como quem já imaginava o que viria.
Pode sim. Fala, você já ouviu alguma coisa à noite lá pro lado do paiol? Ele demorou uns segundos para responder.
Tirou o boné da cabeça, coçou a testa e suspirou fundo. Sabia que uma hora você ia perguntar isso. Fiquei em silêncio.
Ele continuou. É por isso que seu tio não gosta de ficar aqui muito tempo. Ele fala pouco, mas já passou uns perrengues quando era novo.
Disse que uma vez ouviu a voz do pai dele, que já tinha morrido. E por que ele nunca me contou nada? Perguntei.
José deu de ombros. Porque ninguém acredita ou então acredita demais. E também por isso que aqui nunca teve um caseiro fixo.
Já tentaram, mas ninguém aguenta ficar mais de uma semana. Tem gente que ouve coisa, gente que sonha esquisito, gente que vai embora de madrugada sem dar explicação. Aquela conversa me desmontou, não porque eu estivesse surpreso com o que ele disse, mas porque, no fundo, era exatamente o que eu esperava ouvir.
Fiquei o resto do dia meio calado, tentando manter a rotina. Ajudei com umas planilhas, organizei uns arquivos no computador da casa, acompanhei o gado por alto, mas no fim da tarde, quando o sol começou a cair, tomei minha decisão, arrumei minhas coisas e fui embora antes de escurecer. Não expliquei muito, só disse que voltaria outro dia e voltei.
Mas nunca mais passei a noite ali. Continuei ajudando meu tio com a fazenda por mais uns meses. Ia umas três vezes por semana.
Resolvia tudo o que dava, mas sempre voltava antes do pô do sol, mesmo que isso significasse enfrentar duas horas de estrada. Não falei mais sobre o assunto com ninguém, nem com José, nem com meu tio, nem comigo mesmo. Nunca mais ouvi a voz.
Mas até hoje, quando fecho os olhos e lembro daquele sussurro, ainda ouço o jeito exato que ele me chamou com a minha própria voz. Faz muito tempo isso. Tempo suficiente para que muita coisa já tenha se perdido na memória.
Nomes, cheiros, até mesmo a cor da casa. Mas algumas lembranças, essas ficam. E eu lembro daquela parte da fazenda como se tivesse pisado lá ontem.
Eu era criança, devia ter uns 8 anos, morava com meus pais e meus avós na fazenda da família, no interior de Goiás, perto de Catalão. A casa era grande, simples, cercada por galinhas e silêncio. Tinha um fogão à lenha que minha avó usava o dia inteiro, um curral pequeno atrás e uma varanda que parecia sempre meio triste ao entardecer.
Naquela época eu achava tudo normal. Só depois percebi que havia uma certa sombra por ali, uma atenção que ninguém falava, mas que todo mundo sentia. Meu avô era um homem quieto, acordava cedo, fumava devagar na porta da cozinha, cuidava das coisas do campo sem falar muito, mas tinha um tipo de presença que fazia a gente prestar atenção.
Quando ele mandava, ninguém respondia, só fazia. E quando ele ficava em silêncio, era pior ainda. Tinha um pedaço do terreno que a gente criança evitava naturalmente.
Não porque fosse proibido, ninguém nunca disse com todas as letras que era, mas porque dava aquela sensação de que não era para estar lá. Era um campo aberto com uma figueira muito velha bem no centro. Os galhos eram grossos, curvados, e as folhas nunca pareciam mudar, nem com o tempo seco, nem com a chuva.
Ela era constante e aquilo me incomodava sem que eu soubesse o porquê. De vez em quando alguém falava da árvore, quase sempre em voz baixa, como quem comenta o tempo ou o gado doente, mas nunca entravam em detalhes. Meu pai evitava o assunto, minha mãe mudava de conversa e meu avô, meu avô só dizia uma coisa quando eu perguntava: "Aquilo lá não se mexe".
E era só nenhuma explicação. Para uma criança curiosa, aquilo era como plantar um anzol na mente. Eu ficava pensando no que ele queria dizer com não se mexe.
Era perigosa, era frágil, tinha bicho. Nada fazia sentido. Mas com o tempo, como toda criança, fui me distraindo com outras coisas.
Ajudava a ordenhar vacas, corria atrás de galinha, jogava bolinha de good no terreiro e a figueira ficou lá. sempre presente, sempre no mesmo lugar, como se esperasse alguma coisa. Era comum nas tardes mais abafadas meu avô se sentar na beirada da varanda com o cigarro aceso e o olhar perdido no pasto.
Nessas horas, a gente, eu, meus dois irmãos e dois primos que também moravam na fazenda, sentava perto dele, no chão ou nos degraus esperando alguma história. Ele não era de falar muito, mas quando falava, ninguém interrompia. Nesse dia em específico, lembro que o céu estava meio encoberto, aquele calor estranho de chuva que não vinha.
A casa estava silenciosa e minha avó mexia em alguma coisa na cozinha. Foi aí que o vô falou do nada. Vocês sabem porque ninguém mexe na figueira velha, né?
A gente se olhou. Um dos meus primos respondeu meio sem graça. Porque é velha?
Meu avô deu uma risada curta, mas sem humor, porque tem coisa que não se cutuca. Aquela árvore não é só uma árvore. Ela guarda promessa antiga.
Promessa? Foi essa a palavra que me marcou. Ele olhou pra gente um por um e disse: "Se bater três vezes no tronco dela, coisa ruim acontece.
Sempre foi assim. Desde antes de eu nascer, já era. Ficamos quietos.
Ninguém riu, ninguém duvidou. Era o jeito dele falar. Não parecia brincadeira.
Teve um homem que fez isso faz tempo, por desafio. Disse que não acreditava nessas bobagens. Bateu três vezes no meio do dia na frente de todo mundo.
À noite, ele apareceu com a mão queimada. Fala que acordou com a dor, mas não lembrava de nada. Só a mão estourada, como se tivesse posto no fogo.
Um dos meus irmãos perguntou hesitando: "E foi por causa da árvore? " O avô assentiu com um gesto lento. Outro bateu de brincadeira, não contou para ninguém, mas naquela noite a mulher dele disse que escutou ele falando com alguém no quintal em voz baixa.
Só que ele jurava que estava dormindo. No outro dia, o bezerro mais novo sumiu. Nunca acharam nem rastro.
O vento soprou leve na varanda e, por um momento, ninguém falou nada. Ele deu a última tragada no cigarro. apagou na beirada do sapato e finalizou.
É só bater três vezes, nem mais nem menos, mas só quem não sabe o que tá fazendo faz isso. E se levantou. A gente ficou ali sem saber se era verdade ou só história para assustar moleque, mas no fundo dava para sentir que ele acreditava.
E por algum tempo isso foi o suficiente pra gente não chegar perto da figueira. Depois da história que o voo contou naquela tarde abafada, a figueira deixou de ser só uma árvore no fundo do quintal. Virou assunto, virou segredo, virou desafio.
Nos dias que se seguiram, eu e meus irmãos e primos começamos a comentar entre nós, quase sempre longe dos adultos, em tom baixo, como quem fala de alguma coisa errada que viu. Cada um tinha uma teoria. Alguns acreditavam que era verdade, outros achavam que era só história para assustar, igual as que inventavam sobre o lobisomem, que vivia no mato atrás do açude.
Mas mesmo os mais descrentes evitavam passar perto da árvore sozinhos. Aquela dúvida foi se instalando entre nós. Começamos a observar a figueira como quem observa um bicho dormindo.
Durante as brincadeiras, acabávamos sempre com o olhar voltado para lá. Quando alguém precisava ir até o galinheiro, que ficava mais perto do lado dela, sempre chamava outro para ir junto. Ninguém queria admitir, mas ninguém se sentia mais à vontade por ali.
Às vezes, sentávamos sob a sombra da varanda e conversávamos sobre o que poderia acontecer se alguém realmente batesse três vezes no tronco. Um deles disse que talvez fosse só coincidência. Outro lembrou que a história era antiga demais para não ter pelo menos um fundo de verdade.
Uma das meninas falou que sonhou com a árvore, mas se negou a contar o sonho inteiro. Quanto mais a gente falava, mais real aquilo tudo parecia. Mesmo sem presenciar nada de estranho, havia um ar diferente em volta da figueira, um silêncio peculiar, como se o vento desviasse dela, como se o tempo passasse mais devagar ao redor daquele tronco.
A mancha escura no meio, aquela que o vô disse que era onde se batia, parecia mais visível. Agora, a gente até chegou a se aproximar um dia, todos juntos, andando devagar, mas nenhum de nós teve coragem de tocar. Era engraçado.
Bastava um de nós mencionar a árvore e todo mundo calava por uns segundos, como se o simples fato de falar já fosse arriscar demais. O medo e a curiosidade andavam lado a lado e mesmo sem ninguém dizer em voz alta, todos nós sabíamos que mais cedo ou mais tarde alguém ia acabar batendo os três toques. O problema é que lá no fundo eu já sabia quem ia ser.
Eu não lembro exatamente o dia, mas lembro do momento. Tinha algo no ar naquela tarde. O céu estava de um azul pálido, quase branco.
O calor parecia mais denso do que o normal, como se o tempo inteiro tivesse prendido a respiração. Os adultos estavam ocupados com alguma coisa no curral. As outras crianças brincavam perto do chiqueiro, longe da figueira.
E eu fui ficando para trás. Fui andando em direção à árvore devagar, sem planejar. Meus pés pisavam no chão duro e seco, como se soubessem o caminho.
Cada passo parecia fazer menos barulho do que o anterior. E o ar? O ar estava estranho, quieto demais, como se até os passarinhos tivessem parado de cantar.
Quando cheguei perto do tronco, parei. A figueira era maior do que eu lembrava. A casca tinha rachaduras profundas e irregulares, como se tivesse sido moldada por dentro por alguma coisa que não era o tempo.
E ali, bem no meio do tronco, estava a mancha escura. Um círculo perfeito, polido, como se alguém tivesse passado a mão ali milhões de vezes. Um lugar onde a madeira não era áspera como o resto.
Eu encarei aquele ponto por um bom tempo, o coração acelerado, a garganta seca. Tentei pensar nas histórias do vô, nos exemplos que ele deu, mas minha mente não estava funcionando direito. Eu estava em transe, me sentia chamado e então fiz.
Toquei o tronco com os nós dos dedos. Uma vez, o som ecoou seco. A madeira parecia oca por dentro.
Duas vezes. O calor pareceu diminuir, o vento parou. Os pelos do meu braço se arrepiaram.
Três. O terceiro toque foi mais leve. como se minha mão já estivesse hesitando.
Mas o som saiu mesmo assim e depois dele, silêncio total. Por um instante, o tempo pareceu suspenso. Nem o barulho da fazenda ao fundo chegava até ali.
Era como estar num lugar onde o mundo inteiro tinha sumido. Não houve trovão, nem vento, nem nenhuma coisa grandiosa. Só a certeza.
Um silêncio pesado demais para ser só natural. Eu recuei dois passos ainda encarando a árvore. Senti o suor frio escorrer pelas costas.
Meu corpo parecia saber antes da minha mente. Eu tinha feito uma besteira. Voltei correndo, tentando parecer calmo.
Ninguém me viu, ninguém perguntou nada. Naquela noite dormi mal, mas dormi. Esperava alguma coisa, um som estranho, um grito, um pesadelo, qualquer sinal de que o que eu tinha feito tinha despertado o que o vô chamava de promessa antiga.
Mas não aconteceu nada. Nenhum boi morreu, nenhum uivo, nenhum calor súbito, nem vento gelado, nada. A casa seguiu em silêncio.
Os galos cantaram no horário de sempre. O café da manhã cheirava igual. Os adultos continuaram suas tarefas, as crianças voltaram a brincar e eu comecei a achar que talvez tudo aquilo não passasse mesmo de história.
Nos dois dias seguintes, continuei observando. Esperava algum sinal, por menor que fosse, mas não havia nada, nem sombra, nem ruído, nem acidente. Comecei a duvidar até de mim mesmo.
Será que eu realmente bati? Será que foi tão importante assim? E quando essa dúvida tomou conta, a tensão começou a virar alívio.
Comecei a rir por dentro de mim, do medo, da história, das pegadas invisíveis que imaginei sentir ao redor da figueira. Era só uma árvore, um pedaço de madeira cheio de lenda, nada mais. Foi no quarto dia que tudo desmoronou.
Era início da tarde, um daqueles dias secos em que a poeira parece pairar no ar. Eu estava na varanda jogando bolinha de good com meu irmão mais novo. Quando notamos a ausência, minha prima Clara, a menor de todos nós, não estava em lugar nenhum.
No começo, achamos que ela tinha entrado para beber água ou ido até o galinheiro, mas a busca foi se estendendo. Os adultos começaram a chamar. A avó largou o tacho no fogão.
O avô já saiu com a cara fechada, sem dizer uma palavra. A casa virou um burburinho abafado de medo. Fizemos o que todo mundo faz.
Procuramos nos lugares mais prováveis primeiro. Depois começamos a expandir indo até os limites da casa, do quintal da mata rasa. Chamávamos o nome dela de minuto em minuto.
Até os funcionários da fazenda vieram ajudar. Ninguém achou nada, nem rastro, nem marca de passo, nem um som sequer. Era como se ela tivesse evaporado.
E aí o mais estranho, a figueira. Não era o lugar mais lógico para procurar, mas meu corpo me levou até lá. Fui sozinho, sem dizer nada.
Me aproximei do tronco como quem se aproxima de um túmulo. O lugar estava igual, imóvel, quieto, frio, mesmo sob o sol. Mas ao lado da base da árvore havia algo, um laço de fita vermelha, pequeno, caído no chão, preso entre as raízes, igual ao que Clara usava no cabelo todos os dias.
Fiquei parado por um tempo, olhando para aquilo, o coração apertado, a boca seca. Eu não contei para ninguém. Guardei a fita no bolso e voltei para casa.
A busca continuou por mais dois dias, até que tudo virou silêncio. Nunca encontraram clara e eu nunca mais toquei naquela árvore. Faz muitos anos que deixei aquela fazenda, mas nunca mais fui o mesmo depois daquele dia.
Guardo aquele laço de fita até hoje, no fundo de uma gaveta. E desde então, nunca mais duvidei de nada que envolva o que a gente chama de coisa que não se deve cutucar. Bati três vezes por brincadeira e me arrependo até hoje.