Cap 3.7 - Ensinar Exige Reconhecer que a Educação é Ideológica (Parte 1) Pedagogia da Autonomia

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Prof. André Azevedo da Fonseca
É preciso ter a consciência de que toda educação é ideológica, e que a força dessa ideologia é ainda...
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Um dos saberes fundamentais da prática docente é a consciência de que toda educação é ideológica, e que a força dessa ideologia é ainda mais intensa quando ela fica oculta sob a máscara da neutralidade. Saber que todo ensino é ideológico é a melhor forma de não cair na armadilha da ideologia. E aí a gente tem que fazer uma breve discussão sobre o conceito de ideologia para compreender o que Paulo Freire está realmente dizendo.
Um pouco depois da Revolução Francesa, teóricos criaram o termo ideologia para se referir à criação de uma ciência que estudaria a origem das ideias e que teria como objetivo o desenvolvimento de uma ciência moral capaz de guiar a sociedade com princípios tão objetivos quanto os das ciências naturais. Mas o próprio Napoleão criticou os ideólogos, dizendo que, na verdade, eles não eram nada objetivos e que aquelas especulações, que eles juravam que eram científicas, estavam longe da realidade. Mesmo assim, os positivistas, aqueles que queriam mesmo criar uma ciência social tão exata quanto a física, capaz de prever qualquer fenômeno social com precisão, eles passaram a atribuir dois significados para o termo ideologia: 1) O conjunto de ideias de uma época, incluindo tanto a opinião do senso comum como a elaboração dos pensadores; e ideologia era também sinônimo de: teoria; 2) de organização sistemática de todos os conhecimentos científicos.
Então, para os positivistas, a sociedade deveria ser dirigida somente por aqueles ideólogos que possuíam formação científica. A política deveria ser um direito apenas dos sábios, dos técnicos, e de quem, na cabeça deles, dominava a física social. Agora, Durkheim, um dos fundadores da sociologia, entendeu que a ideologia, na prática, se referia a ideias pré-científicas, subjetivas, mais antigas, cheias de preconceito.
Então, para ele, um sociólogo não-científico seria apenas um ideólogo, ou seja, subjetivo, incapaz de tomar distância do seu objeto para analisar os fenômenos com objetividade. Esse ideólogo também inverteria a ordem de análise. Então, em vez de analisar os fatos para gerar conceitos, ele chega com a sua conclusão pronta e torce os fatos para se encaixarem nas suas ideias; e por isso o ideólogo acaba usando palavras vazias, justamente por não dominar os conceitos sociológicos objetivos.
E aí substitui a ciência por mera invenção pessoal. Mas foi Marx quem melhor sistematizou o conceito de ideologia. Em primeiro lugar, ele parte do princípio de que a produção das ideias está diretamente ligada às condições sociais e históricas em que essas ideias são produzidas.
A gente não pensa fora da nossa sociedade, dos nossos valores e das nossas referências. Nós somos fortemente condicionados pelas ideias que circulam em torno de nós, somos condicionados pela nossa própria realidade social, nós nos acostumamos a viver de um jeito e a tendência é que a gente imagine que essa fração da realidade que vivemos corresponde à realidade total, como se fosse a única possibilidade. Por isso, Marx percebeu que as pessoas tendem a naturalizar o mundo social.
Ou seja, como o sujeito aprende desde cedo, na família, na escola, na igreja, no seu cotidiano, como ele aprender a se colocar no seu lugar, a se colocar socialmente, a agir de determinada maneira, a cumprir os seus papeis, as relações sociais, que são relações construídas historicamente, acabam passando a ser vistas como se fossem relações naturais, regidas por uma força superior, e não relações que se tornaram assim, que se configuram de determinada maneira, por causa da ação humana na história. E o nome para isso é alienação. Isso ocorre quando as pessoas não percebem que são produtoras da sociedade.
Que não se sentem capazes de transformar a sua realidade porque imaginam que esse poder é exclusivo de alguma outra instância superior: a natureza, Deus, o chefe, o governante, de alguém que, na ordem social, tem o poder de definir como a realidade é. E o indivíduo alienado não consegue se ver como criador da realidade e não enxerga outra alternativa para a sua existência a não ser se submeter ao poder daqueles que ele imagina serem os verdadeiros e únicos criadores do mundo. E é aí que entra a ideologia, invertendo tudo.
Então, em vez de perceber que é a própria sociedade que forja as ideias, o alienado é convencido que há ideias superiores, anteriores à realidade, que teriam a capacidade de governar os seres humanos. E é aí que se manifesta a ideologia na sua mais alta expressão. Um sistema de ideias interpretado como algo separado ou independente das condições materiais.
Como se as ideias fossem autônomas, independentes da realidade, puras, neutras, como se o próprio pensamento não fosse produzido por homens e mulheres situados em um contexto, e condicionados por ele, e por isso, um pensamento sujeito aos preconceitos, aos interesses e às próprias concepções morais da sociedade. É assim, por exemplo, que o Estado, que deveria funcionar para garantir o interesse comum das pessoas, acaba se tornando um instrumento para que os grupos mais poderosos e organizados garantam os seus interesses, criem regras que os beneficiem ainda mais, e escondem esses privilégios sob o discurso ideológico de que essas regras beneficiam toda a sociedade. Ao fixar as regras das relações sociais, e se apresentar como uma entidade sobre-humana, abstrata, neutra, imparcial, o Estado acaba fixando essas regras e todo o conjunto de relações sociais fica parecendo uma verdade natural, óbvia por si mesmo, e não, uma consequência histórica das ações e decisões humanas.
Em síntese, o conceito de ideologia, empregado por Paulo Freire, não se refere àquela noção de que ideologia seria um conjunto sistemático e encadeado de ideias. Não é isso. Paulo Freire parte da definição marxista de ideologia, que deve ser compreendida como um ideário histórico, social e político que na verdade oculta a realidade.
E o objetivo desse ocultamento é naturalizar as condições históricas de convivência social, ou seja, nos convencer de que as desigualdades são naturais, fazem parte da vida, e tudo isso para garantir uma determinada ordem que mantenha os privilégios daqueles que detém o poder. Então para Paulo Freire, ideologia tem tudo a ver com ocultação da verdade por meio de vários recursos de linguagem que tornam a realidade mais embaçada, de modo a nos fazer míopes. E aí somos convencidos de que a realidade é daquele jeito mesmo que nos contam na escola.
E aceitamos essa interpretação, mesmo que distorcida, justamente porque a ideologia atrapalha a nossa visão, para que a gente fique dependente da visão dos outros. Esse embaçamento é realizado em todos os campos ideológicos. Nas economias comunistas é o Estado que em geral detém os recursos para realizar essa ocultação da realidade através da propaganda ideológica.
Mas em países de economia capitalista, como o nosso, o Estado tem a sua força, mas é o mercado quem melhor manipula as ideologias para fazer com que a gente aceite docilmente discursos fatalistas, como os discursos do neoliberalismo, que dizem, por exemplo, que certo grau de desemprego é normal, ou às vezes até desejável; que sonhar com um mundo mais humano é bobagem, é falta de pragmatismo, e que a educação tem que treinar alunos até transformá-los em funcionários. É a ideologia que nos deixa mansos, de modo que a gente passa a aceitar passivamente uma ordem que frequentemente se mostra hostil a nós mesmos. E nós aceitamos porque somos convencidos, ideologicamente, que essa ordem é natural e que não há nada que a gente possa fazer para evitar.
É a ideologia que faz com que a gente aceite, passivamente, viver em uma ordem econômica que beneficia os países ricos, mas que, além de não nos beneficiar, ainda nos prejudica. Sabe quando criam acordos comerciais a partir de critérios que todos sabemos que não temos condições de cumprir, mas que ainda assim, somos convencidos de que são justos, porque são critérios iguais a todos? Então, mais uma vez: é a força da ideologia que embaça a nossa visão.
E Paulo Freire insiste. O papel da ideologia é convencer aqueles que são prejudicados por uma determinada ordem social e econômica a aceitar passivamente essa ordem, por acreditar que a realidade é assim mesmo. Então, desde os anos 90, período em que o livro foi escrito, o discurso da globalização tem sido um discurso ideológico voltado à liberdade do mercado.
E não à liberdade do ser humano, que tem como ponto de partida, se ele é livre, a sua capacidade de escolha. Se vivemos em uma realidade histórica, ou seja, uma realidade construída por seres humanos, em que a maioria não tem o direito de escolher, porque o direito de escolha está diretamente ligado ao poder econômico dos indivíduos, só quem tem dinheiro pode realmente escolher, não é difícil notar que nos falta uma ética universal do ser humano. Então, é isso que a educação, segundo Paulo Freire, precisa buscar: uma ética universal do ser humano, capaz de estabelecer uma crítica aos discursos da ideologia do mercado que criam a ilusão de que no neoliberalismo todos têm oportunidades iguais, que basta se esforçar individualmente que qualquer um pode vencer na meritocracia, que é normal que a fortuna de oito bilionários corresponda ao patrimônio de metade da humanidade, que é normal que 0,5% dos brasileiros concentrem 45% da renda do Brasil.
Que é normal uma economia que não esteja a serviço do bem estar das pessoas, que perpetua a concentração de riqueza nas mãos de poucas famílias, por um lado, e nega direitos básicos a milhões de famílias chegando a dizer que educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, segurança, lazer não são direitos. É só para quem pode pagar. Então, em meados dos anos 90, Paulo Freire tinha a esperança de que, com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, o mundo pudesse se libertar também da ditadura do mercado.
Ele já percebia que, independente da concepção política, à esquerda ou à direita, havia naquele tempo um mal estar generalizado em face às políticas neoliberais. Então, se no século XIX, Marx e Engels haviam feito o seu manifesto pela união das classes trabalhadoras, atualmente precisaríamos unir a inteligência e a sensibilidade de todas as pessoas que aprenderam a enxergar as ilusões da ideologia do mercado. Então, é nesse sentido que Paulo Freire se preocupa com uma educação capaz de contemplar os interesses humanos.
A educação não pode ser insensível à realidade. O próprio Paulo Freire deixa claro que ele já havia assumido esse compromisso antes mesmo de ler Marx. Para ele, nenhuma teoria de transformação política tem sentido se não partir da compreensão de que são os homens e as mulheres que fazem história a partir de suas livres decisões.
E por isso ele insiste tanto na crítica às ideologias deterministas que reduzem a presença histórica dos sujeitos a uma adaptação à realidade. Essa é a discussão do nosso próximo vídeo.
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