Quatro dias antes da eleição americana, que teve como vitorioso Donald Trump, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quebrou uma tradição da diplomacia brasileira. Rompendo com a neutralidade habitual nos posicionamentos do país, Lula declarou apoio à candidata derrotada Kamala Harris. O presidente brasileiro também criticou Trump pelos acontecimentos de 6 de janeiro de 2021 - quando apoiadores do republicano invadiram o Congresso dos Estados Unidos na tentativa de reverter a vitória do atual presidente Joe Biden.
E agora que Trump venceu? Como fica a relação entre os dois países? Sou João Fellet, repórter da BBC News Brasil em São Paulo - e neste vídeo eu falo de possíveis consequências que a nova gestão de Trump terá para o Brasil em 4 pontos - da relação com Lula, ao bolsonarismo, economia e política externa.
Primeiro, como fica a relação com Lula? Analistas entrevistados pela BBC dizem que, por um lado, a relação entre Brasil e Estados Unidos é tão antiga e complexa que divergências pessoais entre seus presidentes têm um alcance limitado. Para eles, os dois governos provavelmente vão continuar convivendo e dialogando sobre temas de interesse comum - como projetos de cooperação nas áreas militar e aeroespacial que estão em curso.
Por outro lado, eles apostam que provavelmente Lula e Trump devem manter um distanciamento político. Os analistas acham, por exemplo, que o tom amistoso que existe hoje entre Lula e Biden não vai se manter com Trump. Um dos motivos é a proximidade entre Trump e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que é hoje o maior adversário político de Lula e declarou apoio ao republicano na eleição.
Isso nos leva ao segundo ponto desse vídeo, o impacto da vitória de Trump no bolsonarismo e na direita no Brasil. Trump é visto como uma espécie de bússola da direita global - analistas dizem que a ascensão dele ao poder em 2017 fortaleceu movimentos de direita em vários países, inclusive no Brasil. Não custa lembrar que Bolsonaro se elegeu presidente quando Trump estava em seu segundo ano na Casa Branca.
Especialistas acreditam inclusive que a nova vitória de Trump pode dar fôlego ao movimento que tenta reabilitar Bolsonaro para a próxima eleição presidencial, em 2026. Bolsonaro hoje está inelegível até 2030, porque a Justiça Eleitoral avaliou que ele cometeu abuso de poder político e espalhou informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro na última eleição. Mas existe uma articulação no Congresso pra tentar reverter essa condenação.
Os cientistas políticos dizem que esse caminho não é tão simples - e há diferenças relevantes nos universos jurídicos dos dois países. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte - que é o órgão máximo do Judiciário - tem hoje uma maioria conservadora e tomou decisões recentes favoráveis a Trump - inclusive garantindo que ele pudesse concorrer à Presidência quando alguns Estados tentaram barrá-lo por causa dos ataques ao Capitólio em 6 de janeiro. Já no Brasil o Supremo Tribunal Federal tem tido uma postura mais dura com Bolsonaro - e vem chancelando decisões da Justiça Eleitoral contrárias ao ex-presidente.
A eleição de Trump também pode impactar o Brasil na economia – e de diferentes formas. Especialistas dizem que o Brasil pode enfrentar sérios problemas se o republicano cumprir a promessa de aumentar tarifas sobre produtos importados. Essa foi uma das principais bandeiras da campanha de Trump - ele disse que pretende impor tarifas de 10% a 20% para a maioria dos parceiros comerciais americanos - grupo que poderia incluir o Brasil.
Para produtos da China, um país que Trump vê como inimigo, a tarifa seria de 60%. O republicano argumenta que esse "tarifaço" incentivaria as empresas a produzirem mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país. Os Estados Unidos são hoje o segundo maior comprador de produtos do Brasil, só atrás da China.
E diferentemente da China, que compra do Brasil sobretudo matérias-primas como soja e minério de ferro, os Estados Unidos compram muitos produtos industrializados brasileiros, como aviões e máquinas. Esses itens têm alto valor agregado - e a venda deles para os Estados Unidos gera empregos e receitas para o Brasil. Se Trump realmente impuser tarifas sobre os produtos estrangeiros - incluindo os brasileiros - esses produtos vão ficar mais caros para o público americano.
Uma consequência possível disso seria a diminuição das vendas desses itens - o que pode afetar cadeias produtivas e industriais no Brasil. Mas a economia brasileira pode sofrer outros impactos indiretos da política comercial de Trump. A China - que seria o principal alvo do tarifaço americano - é hoje o país que mais exporta para os Estados Unidos.
Se as exportações chinesas forem afetadas e a economia chinesa desacelerar, a China pode comprar menos produtos do Brasil. E isso pode também diminuir os preços globais de commodities que o Brasil exporta em grande quantidade - como soja, e minério de ferro. Outra consequência indireta para o Brasil de medidas protecionistas de Trump viria dos efeitos dessas medidas na própria economia americana.
Analistas dizem que os Estados Unidos não são capazes de produzir todos os produtos que o país importa. Nesses casos, o mais provável é que novas tarifas sobre produtos importados sejam repassadas para os preços, alimentando a inflação. Acontece que, quando há inflação nos Estados Unidos, o banco central americano - o Fed - costuma aumentar as taxas de juros.
E esse movimento costuma fortalecer a cotação do dólar frente a outras moedas, como o Real. Isso gera um efeito em cascata: se o dólar sobe, a inflação também tende a subir no Brasil - porque muitos produtos que o Brasil importa são cotados em dólar. E a inflação em alta, por sua vez, tende a forçar o Banco Central brasileiro a aumentar as taxas de juros também por aqui.
Quando essas taxas sobem, sobem os custos de tomar dinheiro emprestado no banco - o que afeta desde o planejamento de investimentos de empresas até os orçamentos das famílias. E juros altos, por sua vez, tendem a reduzir o crescimento da economia. Mas há um outro cenário possível.
No primeiro governo Trump, as medidas econômicas que ele adotou contra a China geraram temores de que a economia americana pudesse esfriar. Isso fez com que o banco central americano diminuísse os juros - em vez de aumentá-los. Mas analistas apontam que mesmo esse cenário não seria positivo para o Brasil - porque uma desaceleração da economia americana poderia esfriar a economia global como um todo.
Os especialistas dizem que a economia americana também pode sofrer com outra proposta de Trump, que é deportar milhões de imigrantes sem documentos. Isso porque essas pessoas hoje são a base de importantes setores econômicos - como a construção civil e vários segmentos de serviços que pagam salários mais baixos. A redução da mão de obra pode criar problemas para esses setores - impactando a economia americana e gerando consequências na economia global.
Outro possível impacto da eleição de Trump para o Brasil, segundo os especialistas, se daria no campo da política externa. Em seu primeiro governo, Trump adotou uma postura isolacionista na política externa dos Estados Unidos. O isolacionismo é uma atitude que foca mais nos interesses do próprio país e menos na cooperação internacional para lidar com temas comuns.
Um exemplo dessa prática ocorreu em 2017, quando Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris - que buscava frear as mudanças climáticas. Trump argumentou que o acordo custaria uma fortuna e prejudicaria os americanos. O republicano já fez várias declarações questionando ou minimizando as mudanças climáticas - apesar do consenso científico que aponta a gravidade do tema.
Para os especialistas, a postura isolacionista de Trump se contrapõe à do Brasil - que historicamente dá importância aos foros internacionais e tenta ampliar sua influência nesses espaços. O combate às mudanças climáticas, aliás, é um dos temas em que o Brasil pode ser mais afetado pelo isolacionismo de Trump, segundo os analistas. Uma bandeira do Brasil nesse campo é a cobrança para que países ricos ajudem a financiar ações de preservação em nações emergentes.
Se o governo Trump se opuser à causa – o que hoje parece provável - , a costura de um acordo internacional com esse objetivo ficaria bem mais distante, segundo os analistas. Já um tema em que as posições de Brasil e Estados Unidos podem se aproximar num governo Trump é a guerra na Ucrânia. Sob o governo de Joe Biden, os Estados Unidos enviaram bilhões de dólares em armas e assistência à Ucrânia para que o país combatesse as tropas russas.
Para Lula, essa postura americana estaria incentivando a guerra na região. Já Trump parece menos interessado em se envolver no conflito - além de já ter feito comentários elogiosos sobre o presidente russo Vladimir Putin no passado. Em suma: o Brasil pode ser impactado em várias frentes por um novo governo Trump.
Mas os analistas apontam que a dimensão desse impacto vai depender de como - e se - ele realmente vai executar as promessas e de como os países vão reagir. Quantos imigrantes serão deportados? As tarifas serão impostas sobre todos os setores econômicos, ou só alguns?
E como a China vai reagir? Nós seguiremos por aqui acompanhando os desdobramentos disso tudo. Você pode ler mais sobre os resultados da eleição americana no nosso site - bbcbrasil.
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