O ato de escutar, no sentido pedagógico que Paulo Freire propõe, significa uma disponibilidade permanente em se manter aberto à fala do outro, ao gesto do outro e às diferenças do outro. E isso não quer dizer, de forma nenhuma, que escutar signifique se sujeitar ou se reduzir à fala do outro. Isso não seria uma escuta.
Seria uma anulação de si mesmo. A verdadeira escuta não elimina a capacidade e o direito de discordar, de se opor e de se posicionar com o interlocutor. Na verdade, é o contrário.
É justamente através do exercício de escutar, e de escutar bem, é que professor e alunos se preparam para se colocarem melhor, para situarem as suas ideias e seus pontos de vista, em um contexto favorável à compreensão. É como sujeito que o professor, sem preconceitos, expõe, questiona e interpreta o conteúdo, com desenvoltura. E justamente porque é capaz de escutar, mesmo quando ele expressa, de forma afirmativa a sua discordância em relação à alguma interpretação que os alunos fazem do conteúdo, sua fala não se torna autoritária.
E isso porque ele não tem compromisso com o monólogo. Ele escuta. A escuta legítima exige algumas qualidades importantes que vão além da ciência e da técnica.
Para escutar bem é preciso respeitar os outros, é preciso tolerância, humildade, gosto pelo conhecimento, gosto pela vida em geral, é preciso não só tolerar as novidades, mas estar aberto e querer aprender com elas, é preciso, consequentemente, estar disposto a mudar de ideia, a ampliar a perspectiva. O respeito à diferença, que, mais uma vez, não significa a sujeição ao outro, é uma dessas virtudes que estão intimamente ligadas ao ato de escutar. Quem discrimina o outro, seja por motivos raciais ou por diferenças de classe, de crenças ou opção política, é óbvio que não vai conseguir escutá-lo.
Não vai conseguir falar com eles. No máximo, se acha no direito de falar a eles, de cima para baixo. E a consequência é que, quem faz isso, impõe uma espécie de proibição a si mesmo.
A pessoa se proíbe de entender o outro. Quem se sente superior ao outro não consegue escutar. A voz do outro parece inferior, distante, incompreensível.
Quem está convencido de que a estrutura de seu pensamento é a única certa e a única possível, simplesmente não consegue escutar quem pensa e elabora o seu discurso de outra maneira. O respeito às diferenças e, por consequência, aos diferentes, exige a humildade que nos adverte sobre os limites entre a autoestima que nos faz gostar de nós mesmos, uma qualidade indispensável, e a arrogância que nos faz desrespeitar os outros, e que é uma prática antiética. Paulo Freire nos adverte também sobre aquele tipo burocrático de humildade, que revela mais uma condescendência do que uma vontade genuína de aprender com o outro.
Não é essa a humildade necessária para o diálogo. E é claro que Paulo Freire também não se refere àquela falsa humildade, daqueles que fingem uma virtude para se sentir no direito de humilhar o outro na primeira oportunidade. A humildade pedagógica é aquela que exprime uma das poucas certezas que Paulo Freire sustenta: a de que ninguém é superior a ninguém.
A discriminação racial, a discriminação por gênero ou a discriminação por classe social são transgressões da ética e depõem contra a capacidade do ser humano se de superar. Nós vimos que Paulo Freire deixa claro que a humildade a que ele se refere não implica, jamais, em submissão a qualquer tipo de desrespeito. Não é isso.
Uma relação franca e pedagógica de humildade diante os saberes e as diferenças exige dignidade. Ser humilde não implica em amesquinhar-se. Paulo Freire tem consciência das violências físicas e psicológicas que professores e professoras, principalmente de escolas públicas, costumam sofrer pelas mãos da administração pública ou mesmo dos estudantes ou de suas famílias.
A humildade que ele propõe não tem nada a ver com deixar de enfrentar essas violências com dignidade. Agora, é óbvio que o professor não vai combater a violência que o atinge com mais violência. Isso tem a ver com uma luta histórica de valorização da educação.
E é claro, como vimos em vídeos anteriores, que não tem nenhum sentido descontar essa violência na turma de alunos, estigmatizar a cultura em que eles estão imersos, que também é uma forma de violência verbal, e prejudicar o aprendizado. A luta não é contra os alunos. As condições que provocam essas violências são mais complexas.
A gente já viu que saber escutar o outro não significa acomodar-se, concordar com ele, ou submeter-se à sua leitura de mundo. E por outro lado, o respeito à leitura de mundo dos estudantes não deve ser apenas um jogo tático para que o professor possa apenas parecer mais simpático a eles. O objetivo de ouvir e falar com os estudantes, e não aos estudantes, é promover a superação de uma maneira mais ingênua de conceber o mundo para uma forma mais crítica de inteligir o mundo.
De compreender as próprias ferramentas intelectuais empregadas tanto para conferir sentido quanto para analisar o mundo. Então, respeitar a leitura de mundo dos alunos não significa que o professor vai simplesmente reproduzir o conhecimento dos alunos. A ideia é que esse universo se torne o ponto de partida para deflagrar um processo de curiosidade sobre as coisas naturalizadas em seu cotidiano.
Sobre aquilo que eles vivem sem parar para pensar, porque parece tão natural. E isso de modo a ficar claro que a curiosidade é o impulso inaugural da produção de conhecimento. O objetivo do respeito à leitura de mundo dos estudantes, portanto, é ir além, é superar essa visão de mundo, a partir dela, entendendo a visão de mundo como parâmetro inicial, e sabendo também que a própria curiosidade pode se aperfeiçoar, pode mudar em termos qualitativos até se tornar metodicamente rigorosa.
E a curiosidade metodicamente rigorosa, que Paulo Freire chama de curiosidade epistemológica, é capaz de fazer perguntas cada vez mais poderosas e, por isso, encontra soluções cada vez mais criativas e inovadoras. Então, o educador que respeita a leitura de mundo dos estudantes tem consciência sobre o caráter histórico dos conhecimentos, no sentido de que os conhecimentos se transformam e se superam na história. É nesse sentido que ele não cai na armadilha da arrogância cientificista, justamente porque ele assume essa humildade crítica, que é própria da posição verdadeiramente científica.
Outra questão, que ajuda a compreender a importância de ouvir a leitura de mundo dos estudantes, é que essa leitura de mundo é precisamente o elemento que melhor revela o esforço do aluno em criar inteligibilidade a esse mundo. É ouvindo a leitura de mundo dos alunos que a gente entende como é que eles elaboram o mundo, interpretam o mundo. E se uma das tarefas da escola é justamente trabalhar a inteligibilidade do mundo, através das mais diversas disciplinas, que aproximam os alunos das mais diversas ciências, em todos os campos, é imprescindível que a escola instigue constantemente a curiosidade dos alunos, em vez de domesticá-la.
E para isso, é preciso fortalecer as condições para que os estudantes assumam cada vez mais o papel de sujeitos na produção de inteligibilidade para o mundo. E não apenas de recebedores. E para isso, mais uma vez, é preciso ouvi-los.
“Ninguém pode conhecer por mim assim como não posso conhecer pelo aluno. ” O que eu posso e, na verdade, devo fazer, ao ensinar qualquer conteúdo, é desafiar os alunos para que eles percebam, na prática, que são sujeitos plenamente capazes de arquitetar saberes. Toda aprendizagem exige que o estudante, em determinado momento, assuma a sua capacidade de pensar por si só e sobretudo de criar a partir do que foi aprendido.
É por isso que o professor autoritário, que se proíbe de escutar os alunos, simplesmente se fecha a essa aventura criadora. Ao negar essa oportunidade de aprendizado aos alunos, ele nega a si mesmo a oportunidade de participar desse processo muito interessante que é o da afirmação progressiva do estudante como sujeito de conhecimento. É por isso que o ensino crítico dos conteúdos exige a abertura e a tolerância do professor diante o esforço do aluno em assumir responsabilidades progressivas na sua trajetória de aprendizado.
E mais do que tolerância, exige a iniciativa do professor, que deve estimular esse espírito. É nesse sentido que Paulo Freire argumenta que é um equivoco imaginar que é possível separar prática de teoria, pensamento de ação, linguagem de ideologia, assim como a noção de que seria possível separar ensino do conteúdo e estímulo à autonomia intelectual. O professor que apenas transfere conteúdo está deformando o espírito de iniciativa.
Ele não é só omisso. E muito menos, neutro. Negar ao aluno a oportunidade de se emancipar na sua busca por conhecimento é uma ação.
Uma ação autoritária. Por isso que, na perspectiva da pedagogia da autonomia, o que professores e professoras devem fazer é assumir a dinâmica entre ensinar o conteúdo e ensinar a aprender. Seja qual for a disciplina: física, matemática, história, língua portuguesa, o ato de ensinar o conteúdo não se dissocia do ato de estimular a curiosidade, o espírito de investigação científica e a capacidade progressiva de produzir conhecimentos a partir do que se aprende.
No próximo vídeo vamos ver que ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica. E como sempre, não se esqueça de curtir o vídeo e de se inscrever no canal. E se você já está inscrito, clique neste ícone do sininho para receber as notificações quando os novos vídeos forem publicados.