Uma pintura pode te fascinar. . .
Assustar. . .
E até mesmo te deixar horas, dias ou anos tentando entender o que aquele artista está dizendo. Mas, ao longo da história, a arte também foi usada como ferramenta política. Em alguns casos, artistas se tornaram participantes proativos em ações e mudanças sociais, até mesmo na esperança de impulsionar decisões políticas.
Meu nome é Elderlan Souza, da BBC News Brasil em Londres, e neste vídeo eu vou te dar alguns exemplos de como a arte denunciou atrocidades e foi um importante instrumento de mudança ao longo da história. Começando por uma das pinturas mais clássicas e políticas de um artista considerado um dos maiores nomes da arte no século 20. Estou falando de Guernica, de Pablo Picasso.
Ela é considerada uma das obras mais importantes da história. E não só por seus méritos artísticos, mas também por sua relevância política. Para entender isso, a gente precisa falar um pouco do contexto em que ela foi feita.
Entre 1936 e 39, na Espanha, aconteceu uma Guerra Civil. Nela, republicanos, leais à Segunda República Espanhola, fizeram alianças com comunistas e anarquistas para resistir aos nacionalistas. Estes eram liderados pelo General Francisco Franco, que contava com a ajuda militar direta da Alemanha de Hitler.
Isso ficou evidente em 1937, quando Franco convocou a chamada Legião Condor Nazista a bombardear uma pequena cidade. A cidade de Guernica, que tinha mais ou menos 6 mil habitantes e ficava na região norte da Espanha, em uma das províncias do País Basco. No ano anterior, Guernica havia assinado um tratado de autonomia com o governo republicano espanhol.
Foi por isso que Franco escolheu esse pequeno vilarejo para deixar sua marca. Civis indefesos foram metralhados e bombardeados no ataque. E é esse cenário que Pablo Picasso pinta em Guernica.
Na impactante pintura a óleo sobre tela, pintada logo após a tragédia, civis gritam em agonia. Membros estão espalhados por toda parte. Violência e dor gritam por meio da tela.
Críticos de arte se esforçaram por muitos anos para desvendar o significado de cada figura representada na obra. Mas para além dos fatores estéticos, chama atenção o aspecto político da obra. Picasso chegou a chamar Guernica de propriedade do povo, e procurou usar a pintura para influenciar mudanças na política nacional, e galvanizar a opinião pública mundial.
Além de incentivar os espectadores a serem participantes proativos da indignação. Picasso fez uma turnê com Guernica no Reino Unido e nos Estados Unidos, como um esforço de arrecadação de fundos em prol da cidade de Guernica em 1938. Quando ainda estava no exílio na França, ele chegou a usar a pintura como moeda de troca pela democracia.
Os seguidores de Franco queriam a pintura na Espanha, mas Picasso afirmou que só permitiria que ela fosse exibida no país depois que a democracia fosse estabelecida. Um outro incrível artista espanhol, Francisco Goya, também usou a arte para representar atrocidades na sua época. Sua pintura Três de Maio de 1808 em Madrid continua a chocar quase dois séculos após sua morte.
Além de ser uma obra de arte inovadora, ela foi uma ferramenta política. Em maio de 1808, durante a chamada Guerra Peninsular, que fez parte das Guerras Napoleônicas, a França invadiu sua antiga aliada Espanha. Os civis resistiram, mas acabaram sendo executados pelas mãos das tropas de Napoleão.
Aliás, essa foi a primeira vez que o termo “luta de guerrilha" foi utilizado. Mas a forma como Goya abordou a pintura não se limitou a retratar especificamente o que aconteceu na época. O artista produziu uma obra universal e atemporal.
As tropas, que tem suas armas apontadas para o povo, não têm rosto. E muitos dos civis na pintura também cobrem seus rostos. Ou seja, tanto as tropas quanto os civis podem pertencer a qualquer país e a qualquer época.
Na época, esse anonimato era radicalmente vanguardista. Ia na contramão da tradição barroca e neoclássica da época. Em 2003, Robert Hughes, crítico de arte que escreveu uma biografia sobre Goya, definiu Três de Maio de 1808 assim: “O quadro com o qual todas as futuras pinturas de violência trágica teriam que se comparar.
. . Ele nos fala com a urgência que nenhum artista de nosso tempo consegue reunir.
Vemos seu rosto, há muito morto, pressionado contra o vidro do nosso terrível século, Goya olhando para uma época pior que a dele. " Agora a gente precisa falar de uma obra que talvez tenha sido a primeira que mudou a opinião pública em tempo real. Estou falando de A morte de Marat, do artista francês Jacques-Louis David.
A pintura retrata o assassinato do líder revolucionário e jornalista Jean-Paul Marat, que foi esfaqueado em sua banheira. Marat era um revolucionário radical, associado ao grupo Jacobino, o mais radical da Revolução Francesa. Ele liderava o movimento contra os girondinos, que representavam setores da burguesia.
Marat acabou assassinado por Charlotte Corday, uma simpatizante dos girondinos, em sua banheira. Essa obra foi concluída por David apenas alguns meses depois do assassinato de Marat. O trabalho chama atenção por ser quase fotográfico em sua simplicidade.
O historiador de arte TJ Clark chamou essa obra de primeira pintura modernista pela forma como tomou as coisas da política como seu material, e não as transmutou. E isso foi uma estratégia calculada. David era um artista oficial dos jacobinos e foi convidado a fazer de Marat um mártir pela causa.
A pintura se transformou em gravura e foi amplamente divulgada entre o público. Outra pintura que também foi usada como panfleto é Krieg, ou Guerra, da artista alemã Käthe Kollwitz. Kollwitz havia perdido o seu filho soldado, Peter, na Primeira Guerra Mundial.
Ela buscava com a pintura dar uma resposta adequada a esses anos classificados por ela como “indescritivelmente difíceis”. Kollwitz começou a trabalhar em Krieg em 1919, e acabou descobrindo que o meio certo para expressar aquelas atrocidades que vivenciou era a xilogravura. Essa técnica consiste em gravar uma matriz de madeira em relevo para imprimir estampas sobre outros suportes.
No caso, ela queria que sua pintura fosse distribuída ou compartilhada como panfletos. Em uma carta ao escritor Romain Rolland, em 1922, ela expressou qual era sua vontade com aquela obra. "Tentei várias vezes representar a guerra.
Nunca consegui capturá-la. . .
Essas impressões devem ser enviadas para todo o mundo e mostrar a todos a essência de como era" Krieg é composta por 7 xilogravuras de pura angústia. Em uma delas, uma mãe oferece seu filho bebê em sacrifício à causa. Em outra, uma viúva está deitada em agonia, quase morta.
Seu filho, Peter, é representado na xilogravura Die Freiwilligen, ou Os Voluntários. Nela, Peter aparece ao lado da morte, que lidera uma tropa de soldados. Agora, vamos falar de duas obras mais recentes, feitas na última década, que também são verdadeiros manifestos políticos.
A primeira é do grafiteiro Banksy, especificamente da obra “Le Mis”, de 2016. Ela faz parte de uma série de trabalhos que criticam o uso de gás lacrimogêneo no campo de refugiados de Calais, na França. Conhecido como “selva de Calais”, ele foi um acampamento improvisado que abrigou migrantes e refugiados em um terreno baldio na zona portuária da cidade de Calais.
O campo foi fechado no fim de 2016. O grafite representa Cosette, a jovem heroína do romance Les Misérables, com lágrimas nos olhos por causa do gás lacrimogêneo. Essa obra apareceu da noite para o dia em frente à embaixada da França, em Londres, no dia 24 de janeiro de 2016.
O detalhe é que a obra era interativa. Abaixo da imagem, tinha um QR Code. Quem apontasse o celular para ele seria remetido a um vídeo online de uma batida policial no campo de refugiados, em que era visível o uso de gás lacrimogêneo.
Banksy ainda fez mais duas obras sobre esse tema. Uma apareceu inclusive em Calais, mostrando Steve Jobs como um dos refugiados. Elas foram bem recebidas pela crítica e até mesmo pelas autoridades.
A prefeita de Calais, Natacha Bouchart, que não era conhecida por sua leniência em relação aos migrantes ou àqueles que queriam ajudá-los, foi uma delas. Ela prometeu preservar o grafite sob um vidro, e até colocou a obra como parte das visitas guiadas pela cidade. Talvez como Franco, na Espanha, que queria ter Guernica de Picasso em seu país, Bouchart respondia ao prestígio e potencial turístico de ter um Banksy em sua cidade.
E a última obra de arte política de que eu vou falar se chama O Grito, ou The Scream, do artista canadense da etnia indígena cree Kent Monkman. Esse cenário caótico, chocante e angustiante que a obra representa tem um motivo. Eu explico já já.
A obra é de 2017, mas começou a ser compartilhada pelas redes sociais em maio deste ano. Foi quando foram descobertas valas comuns contendo restos mortais de 215 crianças em um antigo internato em Kamloops, na Colúmbia Britânica. Apenas algumas semanas depois, os restos mortais de outros 751 corpos foram encontrados em um internato em Saskatchewan.
E, em 30 de junho, mais 182 sepulturas sem identificação foram descobertas perto de um internato em outro local da Colúmbia Britânica. Mas o que a pintura de Monkman tem a ver com isso? Na imagem, vemos mães sendo detidas pela Real Polícia Montada do Canadá.
Elas se jogam tentando pegar os filhos, que são arrancados de seus braços por freiras e padres católicos. A cena sintetiza a angústia da história real de uma política de assimilação cultural forçada. Crianças indígenas eram tiradas de suas famílias e levadas para internatos, onde sofriam abusos físicos e sexuais.
A prática vigorou de 1880 a 1990, liderada pela Igreja Católica com a aprovação do governo canadense. Desde a primeira descoberta de corpos, em maio, a pintura de Monkman foi amplamente compartilhada. Mas esses compartilhamentos, como é comum de acontecer na internet, fizeram com que o contexto da obra fosse perdido.
Como eu já falei, Kent Monkman é da etnia cree. Ele passou os cinco primeiros anos da sua vida em uma reserva indígena. E antes de fazer a obra, o artista ouviu cada um dos depoimentos da Comissão da Verdade e Reconciliação, feita no Canadá.
O que chama atenção na obra é que, para contar essa atrocidade, Monkman se apropria das tradições artísticas ocidentais de pinturas históricas. Esse é um exemplo de como artistas podem usar a arte para fins políticos. Com isso, eu fico por aqui.
Se você gosta de vídeos sobre arte como esse, escreve aqui nos comentários. Até a próxima!