Que as artes liberais são muitíssimo antigas, acho que ninguém duvida que elas constituíram, por séculos, o currículo fundamental para aqueles que desejassem seguir uma vida de estudos e passar para filosofia e para teologia. Posteriormente, isso também, eu acho que todo mundo sabe; é uma informação que a gente encontra no Google, é uma informação que tem na Wikipedia. Agora, quão antigas elas são e como elas começaram é uma questão que não há uma resposta definitiva.
Como quase tudo no mundo da cultura, nós não podemos dizer que, por serem as obras de Homero as mais antigas da literatura grega, elas são as primeiras. É bastante provável que não. Por quê?
Porque nós conhecemos outras, não, mas porque nós sabemos que as coisas não surgem assim, tão prontas, do nada. Os hebreus, muito antes de Moisés, segundo a tradição, ter escrito os cinco primeiros livros da Bíblia, já contavam aquelas histórias, as do Gênesis, principalmente. Não é uma coisa que todo mundo precisa afirmar?
Não é bem? Mas, se nós não sabemos ao certo quando elas começam e quando elas assumem esse número de sete, nós temos um autor que é o mais antigo até então que nós conhecemos, que disse serem sete as artes. As artes liberais, as do quadrum, sendo quatro, já aparecem em Platão, por exemplo.
Já aparecem fontes que nos afirmam que os pitagóricos tinham como seu currículo base as quatro artes do quadrum. Inclusive, Platão diz que existiria uma quinta arte, que alguns, entre eles Giovanni Reale, por exemplo, afirmam ser essa quinta arte a perspectiva. Mas a certeza sobre isso, a certeza total e o que se considerava sob esse termo de perspectiva, nós também não temos muita.
Não temos muita certeza. Marciano Capela é considerado por muitos o último dos pagãos, porque não há indício na sua obra de que ele tenha nem sequer conhecido o cristianismo, ou pelo menos a doutrina cristã, muito menos dele ter sido um cristão. Ele escreve um livro que, por vezes, é publicado sob o título de "Satiricon" e muitas vezes em um título maior, "As núpcias de Filologia com Mercúrio".
Ali nós temos as artes liberais no número de sete, seguindo uma ordem um tanto quanto diferente, onde ele terminará com a última das artes sendo a música, que ele chama de harmonia, começando pela gramática e indo para a dialética, para então passar para a retórica. Mas nós não vemos ali também uma exigência da parte do autor em que essas artes sejam estudadas nessa ordem. E eu digo estudadas porque Marciano Capela é um professor, segundo ele mesmo, nas primeiras linhas do seu livro, onde ele endereça ao seu filho.
Existe ali um diálogo entre Marciano Capela e seu filho, Marcelo Capela. O autor começa a invocar o himeneu porque haverá um casamento, e o seu filho, isso percebemos nas entrelinhas. Bom, mas não ia ser aula aqui.
O que que tu, não me dê uma aula de artes, não é, de gramática e todas essas coisas porque tu estás cantando. E ele diz, então, que olha, não há outra forma de ensinar. E é o que o "Satiricon" é composto de nove livros.
Nos dois primeiros livros, é um poema, é um mito criado a princípio pelo próprio Marciano Capela. E o que nós percebemos o tempo todo é que ele tem uma reverência muito grande por essas artes que já eram ensinadas muito tempo antes dele. Não é?
Então ele já está no quinto século da era moderna, da era pós-cristã, depois de Cristo, usando um termo moderno no sentido mais amplo. E ele quer educar, ele quer educar o seu filho para isso. Ele conta um mito.
Nesse mito, a filologia vai se casar com Mercúrio. Não é? Bom, bastante curioso, né?
Mercúrio é sempre um Deus jovem e é um Deus muito ativo, um Deus muito veloz que leva as mensagens de Deus, dos deuses, melhor dizendo, para os homens. Ele é o nuncius deorum, então ele precisa sempre percorrer essas distâncias muito velozmente entre o Olimpo e os homens para revelar os desígnios divinos aos homens. E Mercúrio, então, é esse que carrega a palavra, e Mercúrio chegou na idade de se casar, nos conta o mito, isso muito tempo depois de todos os outros deuses já estarem casados.
E ele vai, não é, sugerir algumas pretendentes que ainda estavam solteiras, né? Então ali tem a Psiquê, tem a sabedoria, Sofia, não é? Tem diversas divindades que ainda estão solteiras, mas ele acaba não gostando de nenhuma delas, né?
Há sempre diversos benefícios, mas há sempre muitos problemas. E aí surge a ideia dele se casar com Filologia. Mas Filologia é uma deusa?
Filologia, pela própria etimologia da palavra, é o amor pela palavra, e teria tudo a ver, porque já que Mercúrio carrega a palavra, Filologia é o amor por essa palavra. Eles formariam um belo casal, mas Filologia não é uma deusa. Filologia é uma criação humana.
Afinal, quem ama a palavra são os homens. E, dentro do contexto histórico em que Marciano Capela se encontra, nós temos que lembrar que ele está alguns séculos depois de Cícero ter dito aquilo que a filosofia, né, e que "filosofia fuit, filologia facta", isto é, aquilo que foi a filosofia transformou-se em filologia; transformou-se num puro amor pela palavra. Sim, num contexto helenístico-romano, é isso o que acaba acontecendo com toda a cultura, com toda a cultura filosófica.
Torna-se um amor à palavra. E esse amor pela palavra, que é uma criação humana, que surge do meio dos homens, será elevado agora à divindade, ao status divino, pois se casará com um deus e um deus de primeira importância, como é. Mercúrio, se a filologia se casará com Deus, ela mesma se tornará uma deusa e os homens começam a venerá-la como uma deusa, assim como acontece em qualquer casamento com nobres.
Não é, então, se eu tenho um nobre que se casa com uma plebeia, essa plebeia passará a ter o status de nobreza também, pelo menos dentro da cultura ocidental, e isso há muito tempo. Não é desde tempos antiquíssimos? Ah, isso acontece.
O normal é que as pessoas se casem com pessoas do seu mesmo status social. Então, pessoas da nobreza se casam com pessoas da nobreza, mas sempre acontecem exceções. O que é comum dentro da sociedade ocidental é que essa pessoa nunca deixe de ser nobre, mas que a pessoa que se casar com ela passará a ser nobre também.
Isso vai acontecer seguindo toda a tradição da literatura, onde o panteão dos deuses é organizado como uma monarquia. O que vai acontecer com a filologia é que ela passará a ser uma deusa também e será venerada como uma deusa pelos mortais. Então, a filologia é conduzida até o Olimpo, mas ela está muito gorda para se casar, está muito feia, está com uma barriga enorme, e então diz: "Não!
Primeiro ela precisa diminuir essa barriga. " Então, ela precisa vomitar o que tem dentro dela, e ela vomita uma biblioteca. A filologia tem muitos livros, não é?
Muitos e muitos livros, e estão ali dentro do seu ventre, sem ordem nenhuma. E, após ela vomitar, o cortejo das suas damas de companhia é o cortejo das Artes. Então, ela tem sete damas de companhia.
Nós vemos que todas as artes liberais, as sete, têm nomes femininos. Então, elas mesmas são personificadas nessas figuras femininas. Cada uma delas vai recolher um punhado de livros que a filologia vomitou e vai explicar o que são aqueles livros e como lê-los.
A partir de então, termina o mito, que são esses dois livros. Primeiro, o Sati; e vão começar os outros sete livros, um destinado a cada arte, onde cada arte vai explicar quem são seus grandes mestres que estão catalogados, compilados nessas obras, nesses clássicos do ensino de cada uma dessas Artes. Bem, a partir desse livro, que é um manual, muito pouco nós hoje em dia não o teríamos como manual, não é?
Os nossos manuais são áridos, pouco didáticos, pesados, e nós nunca acreditamos que um livro assim, com tanta literatura, seja um manual, principalmente para se aprender coisas como aritmética. E ele realmente não traz todo o conteúdo de cada uma dessas Artes. Ele traz princípios para que essas Artes sejam estudadas, e sendo cada um desses sete livros memorizados, o aluno tem um roteiro inteiro de estudos ali dentro dessas Artes.
Bem, durante toda a Idade Média, o Marano Capela é o autor mais estudado quando se trata de artes. Ele é um autor dificílimo de ser lido, ele tem um latim bastante difícil, principalmente quando se trata de verso. Não pela questão gramatical ou até mesmo vocabular, mas pelas referências.
Não é? Então, o comum é que sejam necessárias, desde a Idade Média, edições anotadas, onde nós vamos ter, às vezes, numa página, quatro versos, e o resto da página toda vai ser notas para explicar aqueles quatro versos. Isso transforma um livro que poderia ser um livro fininho em um calhamaço gigantesco para que ele consiga ser lido.
Porém, claro, o que nós mais indicamos aqui no Instituto é que livros não sejam lidos somente com as suas notas. Não é? Se eu precisar a todo momento recorrer às notas para qualquer tipo de explicação.
. . Essas notas de referência não são notas interpretativas, nem nada disso, mas notas de referências, porque eu me falta uma cultura anterior muito grande.
Então, se nós pegarmos um livro que serve ao mesmo propósito, e muito mais moderno, é o livro do François Fénelon, "As Aventuras de Telêmaco, Filho de Ulisses". Ele foi um livro escrito por Fénelon, que foi um grande adversário de Bossuet no grande século, no século XVII, na França, e ele escreve um livro para a instrução do Delfim, do príncipe francês. Esse livro tem essa característica de ser totalmente literário.
Ele explica, num discurso introdutório, que existem duas formas de ensinar os homens. Existe a tragédia, onde nós, através dos vícios, veremos como os vícios nos levam a uma vida infeliz, e existe a epopeia, que, através da virtude, vemos como a virtude nos leva a uma vida feliz. Ele procura, nessa sua obra, que é um manual também, ter as duas formas ali.
Não é? Ter a tragédia e a epopeia. Essa é uma opinião.
Se nós formos discutir literariamente, talvez isso mude, mas é a forma como Fénelon via as coisas. Nós vemos ali que ele ensina como ele está educando um príncipe, muitíssimas coisas: de economia, de direito, de política, de ética. .
. Enfim, tudo aquilo que um príncipe precisaria saber está tudo ali dentro dessas "Aventuras de Telêmaco", onde ele mesmo, Fénelon, assume a posição de ser um mentor. Não é?
O mentor, esse personagem que é a própria deusa Atena, se encarna na figura de Mentor e orienta Telêmaco. Ele assume ali o papel de mentor, e Telêmaco é o próprio príncipe. E, bom, nós vamos ver ali que a dificuldade.
. . É enorme também, e hoje em dia, muito pouca gente lê isso, mesmo na França, mesmo sendo um autor dos mais importantes dentro da literatura francesa nos países francófonos.
Esse Fenelon é importantíssimo, mas muito pouca gente lê. O francês é fácil, não é? E mesmo se nós formos ler em português, não é um livro que apresenta dificuldades interpretativas; são períodos curtos.
Nós vemos que ele foi escrito para um jovem mesmo, e a grande dificuldade é que nós não temos as referências. Se ele fala ali em Calipso, eu acho que é a primeira palavra do livro, ele está falando da ilha de Calipso. Então, nessa história, o Telêmaco, indo atrás do seu pai, naufraga também na ilha de Calipso, pouco tempo depois que Ulisses já havia ido embora, né?
Então, ele tem muitas informações a partir disso, né? E ele vai se encontrando com diversos personagens. Mas, se eu não sei quem é Calipso, se eu não sei quem é o Filoctetes, se enfim, né, todos os outros personagens, se eu não conheço nada, se eu não tenho as referências geográficas do mundo antigo, que nem sempre são as mesmas de hoje, não adianta.
Eu, muitas vezes, posso procurar no Google Earth, ou no Google Maps, um local, porque ele não se chama mais daquela mesma forma, né? Enfim, o Google Maps, até onde eu sei, ele não tem. .
. né, tem que procurar por Istambul, não adianta procurar por Constantinopla, né? Então, eu preciso de uma cultura toda que venha por trás daquilo, eh e que vai me dar essa noção.
Da mesma forma, o Marciano Capela, que nos é apresentado ali, é cheio de referências que nós não vamos conhecê-las. Eu acho que foi um dos grandes problemas, talvez pedagógicos, durante a Idade Média. O Marciano Capela ter sempre sido lido com todas essas notas, porque isso fez com que, bom, na Idade Média, era o jeito, era a única forma de ser feita, porque não existia nada antes.
Não é, era muito raro que uma biblioteca, além do Marciano Capela, tivesse todos os autores aos quais ele faz referência, ou outros textos que pudessem ensinar quem é o Imene, quem é isso, quem é aquilo, não é? E tantos outros, cada um dos deuses, cada um dos personagens históricos que são ali citados, né? Os próprios filósofos que são ali citados na festa de casamento, como estando à parte, não é?
Então, é uma cena bem cômica que existe no Sátiricon. O Pitágoras está com números na cabeça, como se estivesse afastando moscas, não é? O Tális está todo em mar, né, porque ele.
. . No princípio era a água, né?
Então, ele tá todo. . .
E isso demonstra o quanto a filosofia e os filósofos eram tidos em pouca conta nessa época do final da Antiguidade, em detrimento dos oradores, principalmente, né? Dos poetas e dos oradores. Mas enfim, todas essas coisas, se eu não sei quem é Tales, se eu não sei qual é a teoria de Tales, eu não vou entender a piada.
Então, assim, aquilo é um trecho cômico da obra que eu não vou entender porque eu não conheço essas coisas todas. E ele serve justamente como um bom termômetro, né? Eu acho que dentro da história da cultura, dentro da literatura principalmente.
Mas o fato de nós percebermos as referências é sempre um bom termômetro de que nossos estudos estão indo bem. Então, não é como me autoavaliar. Olha, quando eu leio um livro, eu sei do que eles estão falando, está ótimo.
Não é isso, isso sobre qualquer coisa. Se nós tivermos que, ao ler A Divina Comédia, no primeiro canto, explicar quando ele diz "nasci sob Júlio", e aí vai ter uma nota. Nas edições modernas, tem uma nota, e as pessoas acham que isso é o máximo, né?
Nossa, eu tenho uma edição da Divina Comédia cheia de notas. Inclusive, diz ali "nasci sob Júlio", diz o Virgílio, né, prante. E aí vai ter uma nota bastante ridícula.
Porque eu acho que quem não sabe quem é o Virgílio e que Virgílio nasceu no tempo da ditadura de Júlio César não está preparado para ler A Divina Comédia. E se o sujeito tiver que olhar isso na nota, é sinal que ele precisa de muita cultura antes disso. Logo, nós vemos que o Marciano Capela é um compilador, ele é um professor, ele é alguém que agora quer ensinar o seu filho, mas que o seu filho já conhece muita literatura.
O seu filho já tem muitíssimas referências no momento em que ele vai começar a estudar Artes Liberais, porque as Artes Liberais não são o princípio de toda educação. Elas são mais aquilo que nós chamaríamos hoje de educação secundária, dentro da pedagogia moderna, não é? Nós temos a educação primária, secundária e superior, seria mais ou menos isso.
E as Artes Liberais sempre tiveram esse propósito. Logo, se o sujeito lê, às vezes, num texto, ah, o sujeito começava a estudar Artes Liberais com 12, 13, 14 anos, ele diz: "Nossa, até então ele não estudava nada". Claro que ele estudava, estudava muitíssimas coisas.
Não que ele fosse ser alfabetizado com 5 anos, que essa é uma ideia do final do século XX. Não tem. .
. É claro que a criança pode ser alfabetizada com 5 anos, mas não vai fazer diferença nenhuma se ela for alfabetizada com 7 ou 8. Não há nada que ela esteja perdendo nesse tempo.
É claro, se o seu. . .
Tempo para empregado em coisas mais úteis, ou igualmente úteis, não é para deixar a criança solta sem fazer absolutamente nada até aos 8 anos. E aí sim, a. .
. Prezado! Porém, nós vemos essa necessidade, né?
É necessário conhecer, é necessário saber quem é Mercúrio, é necessário. . .
Ah, para ler as obras antigas e pagãs, não para ler quaisquer umas, não! É para ler os Padres da Igreja, é necessário, né? Se eu não souber quem é Cis ou Baco, eu não consigo ler o São Jerônimo.
Quando o São Jerônimo disser: “Olha, quem serve as séries acaba, quem serve a Baco e a Eres acaba caindo nas artimanhas de Vênus. ” E aí, mas isso é um. .
. Sim, isso é um Padre da Igreja falando, né? É um santo.
E só o que ele quer dizer é que, se a pessoa não cuida com a aula, não tem temperança no comer e no beber, já que Ceres é a deusa da agricultura, aquela que nos provê os grãos, e Baco, o do vinho, ele acaba caindo na luxúria. Quer falar nesses termos? Ótimo, mas São Jerônimo não fala!
E, na verdade, durante muito tempo, os cristãos sempre falaram assim, pelo menos quando tinham cultura, pelo menos quando eram pessoas que estavam seguindo um padrão educacional e cultural tradicional no Ocidente. Foi total e completamente assimilado pelos cristãos. Se Marciano Capela começou ou não as artes liberais, não, com certeza ele não começou.
Talvez tenha sido ele que estipulou em número de sete. Acho pouco provável. Não temos muita certeza, agora que as pessoas estudam isso há muitíssimo tempo, é inegável.
E, para terminar, lembro sempre do Hugo de São Vitor, que justamente disse: “Olha, muito antes de eu saber que existiam essas coisas de artes liberais, eu já gostava disso. Eu já gostava de música, eu já gostava de entender a linguagem, de fazer exercícios mentais de linguagem. Eu já gostava de contemplar o céu, já gostava de fazer contas.
” E não sou eu, mas também a humanidade toda. A gramática surge depois que o homem já sabia falar, a retórica surge depois que o homem sabia persuadir, a dialética surge depois que o homem já sabia pensar e assim por diante, tudo com todas as outras artes. Então, se nós podemos ter uma coisa para dizer que elas já são muito mais naturais e muito mais antigas, e remontam a tempos imemoriais, se são um número de sete ou não, isso é bastante discutível.
Nós, mesmo aqui, temos diversas coisas que não pertencem, não é, dentro da nossa formação, do nosso plano de estudos. E tudo isso, temos muitas coisas que não pertencem a este currículo, ou pelo menos não conseguimos encaixar em nenhuma dessas artes, não de forma tão definitiva. Porém, o que nós sabemos é que elas são tão antigas quanto o próprio homem, isso sim!
Desde que o homem é homem, ele já precisa das artes liberais, e todos nós continuamos precisando, uns em maior, outros em menor medida, mas as artes liberais são formas de suprir diversas necessidades que são plenamente humanas e tão antigas quanto o próprio homem.