Sudão: por que uma das guerras mais violentas do mundo atrai menos atenção do que outros conflitos?

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BBC News Brasil
O conflito no Sudão já forçou quase 11 milhões de pessoas a abandonar suas casas, provocando o que é...
Video Transcript:
Quase 11 milhões de pessoas  obrigadas a abandonar suas casas, na que é hoje a maior crise de  deslocamento forçado do mundo. E 12 mil mortos em um intervalo de meses. Isto não é a Ucrânia nem Gaza.
É a guerra no Sudão. Eu sou Julia Braun, da BBC News Brasil, e neste  vídeo vou explicar por que a situação sudanesa é tão dramática, só que não recebe o mesmo grau de  atenção que outros conflitos em curso no mundo. Essa guerra opõe dois grupos, liderados por  dois generais que disputam o poder desde 2021.
Mas para entender isso direito, vamos  voltar um pouco mais no tempo. Desde que o Sudão ficou independente  do poder colonial britânico, em 1956, passou a maior parte do tempo sob regimes  militares. E o mais longo deles é o do autocrata Omar al-Bashir, que comandou  o país com mão de ferro por 30 anos.
Nesse período, Bashir financiou e  armou uma milícia chamada Janjaweed, formada em sua maioria por homens de origem árabe. A intenção de Bashir era contrabalançar  o poder das forças armadas oficiais. Mas essa milícia ganhou força.
Talvez você tenha  ouvido falar deles no início dos anos 2000, na guerra em Darfur, uma região no oeste  do Sudão. Os Janjaweed pegaram em armas em nome do governo de Bashir para enfrentar  rebeldes, desencadeando uma onda brutal de assassinatos e estupros. O saldo foi de 300  mil mortes.
Os Janjaweed foram acusados de limpeza étnica contra grupos não árabes.  Bashir, inclusive, é alvo um mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional,  acusado de crimes contra a humanidade. Bom, com apoio de Bashir, os Janjaweed  evoluíram e viraram um grupo paramilitar, chamado Forças de Apoio Rápido,  ou RSF na sigla em inglês.
Só que Bashir acabou deposto pelos militares  da Presidência do Sudão em 2019, em meio a uma grande onda de protestos populares no Sudão.  No lugar dele entrou um governo provisório, composto por civis e militares, com a  promessa de fazer uma transição democrática. Mas isso nunca aconteceu.
Em 2021, um golpe  deu o poder do Sudão a uma junta militar, que incluía estes dois generais que  agora encabeçam a guerra civil no país. O primeiro é Mohamed Hamdan Dagalo,  conhecido como Hemedti. Ele lidera a RSF, que eu mencionei antes e que continuou  acumulando poder e expandindo seus tentáculos.
A RSF é acusada hoje não só de  cometer massacres dentro do Sudão, como de vender mercenários para lutarem em conflitos  no Iêmen e na Líbia, controlar minas sudanesas que exportam ouro para Dubai e receber apoio de  países como a Rússia e Emirados Árabes Unidos. O segundo general é Abdel Fattah al-Burhan,  chefe das forças armadas e que, na prática, lidera o Sudão desde a queda de Bashir, em 2019. Esses dois generais foram  aliados no golpe de 2021, mas desde então passaram a discordar  sobre os rumos do país.
E as duas forças armadas que eles lideram - o Exército  oficial e a RSF - se tornaram rivais. Em abril de 2023, quando tropas da  RSF começaram a se deslocar pelo país, o Exército viu isso como uma ameaça – e esse  foi o estopim da guerra que se estende até hoje. Os combates entre o Exército e a RSF afetam  diversas partes do país.
A capital, Cartum, foi alvo de bombardeios que prejudicaram  serviços básicos e fizeram muita gente fugir. E Darfur é de novo um dos epicentros da  crise. Novamente existem indícios de que um grupo étnico de população negra não árabe - o  Masalit - esteja sendo perseguido e exterminado, à medida que a RSF e outras milícias  aliadas avançam no controle da região.
Imagens de satélite obtidas pela BBC  mostram que vilas inteiras no sul do Darfur foram incendiadas e  destruídas no ano passado. Alguns países se pronunciaram a respeito disso  no final de 2023. O governo britânico disse que os desdobramentos em Darfur apresentam, entre  aspas, “todas as marcas de uma limpeza étnica”.
O Departamento de Estado americano  afirmou que a situação, entre aspas, “tem ecos assustadores do genocídio  iniciado quase 20 anos atrás em Darfur” E que “os dois lados (do conflito) cometeram  terríveis atos de violência, mortes e destruição” Enquanto os dois lados, Exército e RSF, trocam  acusações a respeito da autoria de atrocidades no país, a violência desencadeia uma das  crises humanitárias mais graves do mundo. Quase um quarto dos 46 milhões de sudaneses  precisou fugir de casa por causa da guerra, e 16 milhões deles não têm comida suficiente  para sobreviver. A agência alimentar da ONU diz que estão surgindo relatos de  pessoas morrendo de fome no país.
No campo de refugiados de Zamzam, na região  de Darfur, ao menos uma criança sudanesa morre a cada duas horas, segundo a  organização Médicos Sem Fronteiras. Muitos sudaneses têm fugido para países  vizinhos, mas que também são empobrecidos, conflituosos e com pouca estrutura  para receber massas de migrantes. E a escalada da violência faz com que muitas  partes do Sudão estejam completamente inacessíveis para as agências humanitárias, o que torna  a crise ainda mais difícil de ser contida.
E não existe uma solução à vista no momento em  que eu gravo este vídeo. O perigo, na verdade, é de o conflito aumentar, com  a fragmentação do Sudão e a possibilidade de grupos armados de países  vizinhos serem arrastados ao conflito. Fontes ouvidas pela revista  The Economist dizem que essa fragmentação pode ampliar rivalidades  regionais: de um lado, grupos supostamente apoiados pelos Emirados  Árabes Unidos - que negam -, e de outro, os apoiados pela Arábia Saudita que têm  interesses comerciais e geopolíticos no Sudão.
Estou falando de um país que é rico em  petróleo e em minérios cobiçados, como ouro. E o conflito pode acabar atraindo mais  mercenários estrangeiros, como os russos, que segundo a Economist buscariam dar pro Kremlin  o acesso a portos sudaneses no Mar Vermelho. Mas se a crise é tão grave, por que então a atenção global é bem  menor do que a dada a outros conflitos?
Eu perguntei isso no ano passado  para alguns especialistas. Nisrin Elamin, da Universidade  de Toronto, me disse que de fato: “A resposta internacional e humanitária à guerra  do Sudão tem sido praticamente inexistente”, se comparada à que era dada  na época à guerra da Ucrânia. Ela acha que ainda persiste em países europeus  a crença, que remete ao período colonial, de que países africanos são mais propensos a conflitos  e que haveria pouco a ser feito a respeito disso.
Outra dificuldade é que as motivações da guerra do  Sudão são mais difusas do que as de conflitos como o da Ucrânia ou mesmo de Gaza. Em outras palavras,  fica mais difícil escolher lados ou selar tréguas. Vale destacar que houve algumas tentativas  de mediação do conflito por países como a Arábia Saudita, mas pouco se avançou  na prática.
Principalmente porque os dois campos opostos parecem pouco  dispostos a abandonar as armas. Enquanto isso, a ONU diz  que a guerra colocou o Sudão em uma espiral que fica mais destruidora a  cada dia. À medida que o conflito se espalha, o sofrimento humano se aprofunda, o acesso  humanitário encolhe, e a esperança mingua.
Nas palavras de Nathaniel Raymond, acadêmico  que monitora conflitos, entre aspas: “O Sudão morreu mas ninguém escreveu o obituário”. Por hoje eu fico por aqui, mas  siga nossa cobertura de assuntos internacionais no nosso canal no YouTube,  nas redes sociais e em bbcbrasil. com.
Obrigada e até a próxima.
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