Hoje eu vou falar daquela que é a melhor história em quadrinhos de todos os tempos, a maravilhosa, consagrada, premiada, que agora até virou série para a TV, Sandman. Só que não, não é o melhor quadrinho de todos os tempos, talvez nem seja tudo isso. Falando sério, sempre quando o papo é o quadrinho Sandman, as pessoas ficam tanto exaltadas.
E faz algum tempo que eu venho falando aqui no canal que Sandman é superestimado. Para deixar bem claro, eu considero o Sandman um quadrinho bom, inclusive com momentos que são muito bons. Mas vir com esse papo de o melhor quadrinho de todos os tempos, isso, na verdade, serve para a gente refletir do por que esse discurso tomou campo.
Sandman é tão bom assim que fez com que muita gente considerasse a melhor HQ já feita? E a resposta é não. Essa opinião, esse senso comum foi criado muito por questões de marketing.
Então, vou repetir, Sandman é um bom quadrinho, mas está longe de ser essa joia rara da HQ. Só que no momento em que Sandman foi lançado, sobretudo nos anos 90, se criou esse discurso e muito para poder vender gibizinho. Mais do que isso, para o mercado de quadrinhos dos Estados Unidos poder dizer em alto e bom tom: a gente aqui faz alta literatura.
E indo além, essa estratégia serviu para afagar nerd, galera que cresceu lendo super-herói, que viu nos anos 80 os heróis se adultizarem, com muitas aspas, e se sentiu endossado diante de Sandman para dizer a mesma coisa. Eu adoro ler essa alta literatura adultona em quadrinhos. E por mais que eu já tenha feito vídeos aqui no canal explicando perifericamente qual é o problema com Sandman, ou melhor, qual é o problema desse culto em torno do Sandman, que, vou dizer mais e mais uma vez, é falacioso, é ladainha marqueteira replicada e replicada principalmente por editoras.
Sim, já comecei o vídeo com o pé na porta. Enfim, por eu nunca ter feito um vídeo exatamente sobre isso, resolvi fazer. E a motivação para fazer esse vídeo é puramente intelectual.
Não tem nada a ver com eu ter ficado puto com a galera do Twitter, que começou a me xingar, a me chamar de um monte de coisa e agora só de raiva vou fazer. Até porque eu nem sou rancoroso. Seus corno.
Só que assim, galera, para eu conseguir sustentar o meu argumento, eu vou ter que repassar um pouco as histórias de Sandman. Mais especificamente, eu vou repassar com vocês o arco Prelúdios e Noturnos. É o mesmo que foi adaptado para a série da TV, então eu não vou me demorar, porque provavelmente você já conhece a história, ainda que os quadrinhos tragam diferenças em relação à série da Netflix.
E pode parecer birra, mas é sincero, os elementos que eu mais gosto no quadrinho não foram transpostos para a série, então isso já explica um pouco de um certo ranço da minha parte, ok? Mas é importante, sim, eu repassar esse arco, porque Sandman mudou e mudou muito rapidamente. Cabe lembrar, Sandman é uma série em quadrinhos, teve 75 números.
Muita gente acha que Sandman desde sempre saiu como álbum com esse formato livrão, bonitão, lombada bonita na estante e tal, mas não. Sandman era um gibizinho, de grampo, e foi publicado entre 1979 e 1996, tendo ao total 75 números. E apesar de as pessoas procurarem definir por que Sandman é isso, é aquilo e aquele outro, você vê logo nos primeiros números que a série está em busca da sua identidade, e isso é normal, óbvio, séries em andamento passam por isso.
Só que essa busca por identidade do início de Sandman nos quadrinhos também é o início da formação de um público, e mais especificamente, o início da formação de um culto, que o mercado editorial americano vai sacar, vai se aproveitar e vai consolidar esse discurso de Sandman a melhor HQ de todos os tempos. Sim, está quase uma pegada de estou trazendo para vocês uma conspiração terrível, vai acabar o mundo. Não, a conspiração que resolveu dizer que Sandman é f***.
Eu sei, se você gosta de conspiração, você está meio chocha, mas ainda é uma conspiraçãozinha, pô, dá um desconto. Estou me esforçando aqui também, cara, reconhece. E caso você nunca tenha lido nada de Sandman, você nem saiba o que estou falando, Sandman é da Liga da Justiça, por exemplo, você deve estar pensando, e a resposta é não.
Mesmo que você não saiba nada, eu vou dar aqui uma explicação. Então, sem mais demoras, vamos olhar para Sandman, vamos entender como essa série começou, o contexto cultural da época, os discursos que estavam permeando a sociedade sobre histórias em quadrinhos e o quanto a DC Comics, esperta, resolveu surfar em uma tendência que estava tomando corpo. E já que estou falando de sonho, delírio, destruição, também vamos falar da internet, que tem tudo isso, afinal de contas, a internet é perigosa.
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Mas vamos lá, vamos direto ao ponto. Primeiro, contexto. Sandman, o quadrinho, sai originalmente em 1989 dentro daquilo que é chamado de invasão britânica dos quadrinhos.
Esse termo invasão britânica é derivado da música e a primeira invasão britânica se deu nos anos 60, Beatles, Rolling Stones, entre tantas outras bandas se tornaram populares no mundo todo. Contudo, nos anos 80 começa a rolar uma segunda invasão britânica e o doido é que desta vez ela não está mais tão restrita à música, ela se dá também nas HQs. Sempre é um tanto equivocado você dizer qual foi a primeira, quando é que começou exatamente, determinado processo histórico, porque as coisas estão sempre dentro de um contínuo, então você está escolhendo arbitrariamente quando algo começou.
Porém, dá para dizer que esse começo da invasão britânica se deu a partir de dois títulos, O Monstro do Pântano, escrito pelo inglês Alan Moore a partir de 1982 e Camelot 3000, uma minissérie publicada a partir de 1983, com desenho do também inglês Brian Boland. Inclusive, Alan Moore e Brian Boland depois viriam a trabalhar juntos na história A Piada Mortal, a história que até hoje é considerada a principal para se pensar a personalidade ou mesmo uma origem do Coringa. Inclusive, as duas histórias têm pegadas bem diferentes, Camelot 3000 é uma história tipicamente arturiana.
Tem lá o Rei Arthur, Lancelote e companhia, só que num contexto de sci-fi e sendo bastante adultona e moderninho para a sua época, trazendo inclusive uma personagem com disforia de gênero, algo que nos anos 80 era pensado basicamente pela pessoal da teoria queer, não era algo de conhecimento do grande público. Inclusive digam nos comentários se vocês querem que eu fale aqui no canal de Camelot 3000. Já a saga do Monstro do Pântano de Alan Moore, bem, esse é um quadrinho muito, muito elogiado e comentado.
Inclusive tem um vídeo mais antigo aqui no canal que eu falo de toda a fase do Monstro do Pântano pelo Alan Moore. Porém, caso você nunca tenha lido, Monstro do Pântano é um personagem da DC Comics, um personagem para histórias de horror que já tinha um tempo. Ele não era novidade, mas quando o Alan Moore pega o título, bem, ali a gente conhece o Alan Moore, produzindo histórias com uma consistência narrativa absurda.
Além de saber fazer verdadeiras obras de arte quando se trata de histórias de horror, isso para não pegar questões ecológicas que o Alan Moore radicalizou em Monstro do Pântano. Mas enfim, esse vídeo não é sobre o Monstro do Pântano. Inclusive digam aí se vocês querem que eu faça mais vídeos retomando essa fase do Alan Moore, que aliás seria um prazer, porque reler esse negócio sempre é gostoso.
Mas voltando, o lance é que esses títulos começaram a chamar muita atenção. E uma figura-chave para trazer esses artistas da Inglaterra para o mercado dos Estados Unidos foi a editora Karen Berger, que estava esperta observando publicações como a 2000AD, uma revista britânica que lançou o personagem Juiz Drdd, que eu nem gosto muito, eu só tenho quase todas as histórias dele, quase. Ainda vou ter todas.
E foi olhando para o mercado britânico que Karen Berger e outros disseram: ok, lá tem um poço de talentos, gente muito boa, capaz de oxigenar e de trazer mudanças para o mercado de quadrinhos dos Estados Unidos. Considerando que com essa galera sequer há uma barreira idiomática, afinal todos falam inglês, então a Inglaterra passou a ser um lugar muito bom para você caçar talentos. Inclusive o Pat Mills, editor da 2000AD, em entrevistas bem posteriores a esse processo todo, falou que a maioria dos artistas britânicos que foram para os Estados Unidos fazer quadrinho meio que foram a contragosto.
A ideia deles era fazer quadrinho arte para ser notado pela França, que é um mercado de quadrinhos muito mais forte, muito mais poderoso e geralmente mais autoral. Porém, a porteira mesmo foi abrir do outro lado do Atlântico. Seja como for, foi nessa pegada que começaram a chegar mais e mais artistas, sejam roteiristas, sejam desenhistas.
E nesse balaio, bem, estava Neil Gaiman. Sandman enquanto projeto começou de maneira errática. A ideia era trabalhar o herói clássico da DC Comics.
Sim, existe um super-herói chamado Sandman. Depois não rolava mais trabalhar com ele, o Neil Gaiman foi para outro projeto, só que depois rolava de novo. E ele ganhou uma espécie de demanda que ele pediu a Deus, porque basicamente a exigência da editora Karen Berger era de que ele usasse o nome Sandman, mas que fizesse um personagem novo, que era basicamente o que o Neil Gaiman queria mais fazer, reaproveitar conceitos, mas fazer algo novo.
E é nessa toada que estreia Sandman em 1989, com desenhos de Sam Kieth, que é americano, mas com as capas do artista Dave McKean, que é um notório artista, ilustrador, não exatamente um quadrinista e que trouxe para Sandman já de pronto, já pela capa um visual muito diferente. Inclusive foi preciso convencer a DC Comics a topar esse projeto de editorial, porque na época ainda reinava o clichê de que se você tem uma revista de um personagem tal, o personagem tal tem que estar na capa. Se é a revista do Batman tem que ter Batman na capa.
Se é a revista do Superman tem que ter Superman na capa. Se o nome da revista é Sandman, tem que ter o Sandman de peito estufado, peito de pombo, lutando contra um vilão. Aí vem lá o Dave McKean com imagens oníricas, com composições sinistras e poéticas.
. . que bom que, no final das contas, a galera topou arriscar.
E assim surge Sandman em 1989, indo na esteira do horror e da adultice já feito por autores anteriores, principalmente Alan Moore. E é nessa toada que Sandman começa. Logo de cara, Sandman é um quadrinho de horror.
Arriscaria dizer, inclusive, que é um quadrinho feito para parecer um quadrinho do Alan Moore. Contudo, Sandman já começa sendo um projeto bastante ambicioso, a capa da primeira edição já é um pé na porta estético. E a composição das páginas feitas pelo Sam Kieth são extremamente rebuscadas.
Tem ali uma valorização do layout da quadranização enquanto um todo, dizendo e dizendo mais uma vez: olha esse quadrinho aqui é arte. Já o Neil Gaiman está começando a botar as asinhas para fora, inclusive criando uma história que amarra de maneira bastante interessante uma série de eventos históricos até hoje misteriosos. Caso você não saiba da história é o seguinte, tudo começa em 1916, quando um grupo de ocultistas liderados por um mago extremamente inescrupuloso, acabam conseguindo aprisionar o sonho.
Veja não é o deus do sonho, Sandman é o sonho. E ele ter sido aprisionado foi um acidente, na verdade o que aqueles ocultistas queriam era aprisionar a Morte. Aliás os perpétuos, que são os sete irmãos que agora até apareceram no teaser da Netflix, os perpétuos todos começam com D, algo que na tradução se perde, não tem como tu manter, o sonho é Dram, a morte é Death, já com os outros é mais fácil, Desejo, Desespero, Delírio, Destino, Destruição e tal.
Enfim o lance é que o Neil Gaiman ainda estava construindo a sua mitologia. E esses ocultistas ao aprisionarem o sonho, ou melhor, o nosso querido Sandman, acabaram ficando meio que em um beco sem saída, porque eles aprisionaram o ente errado, só que agora também não iam soltar porque podiam sofrer represália. E isso vai se arrastar basicamente por todo o século XX.
Vamos ver inclusive uma mudança de geração. O mago originalmente que aprisionou o Sandman acabou morrendo de velho, depois coube ao seu filho manter o Sandman em cativeiro. E nesse período todo, Sandman se manteve em silêncio, foi feita a ele uma série de ofertas e Sandman permaneceu em silêncio, quando muito dizia não.
E isso é muito bacana no início da série, Sandman realmente parece uma criatura que não é humana, tem formas humanoides, é um ser antropomórfico, mas você está diante de algo que não é humano, definitivamente não é. Inclusive um elemento que é muito próprio dos quadrinhos e que não dá para transpor para uma série de TV é a voz do Sandman, que nos quadrinhos tem uma brincadeira com o balão, a letra é branca no fundo preto, além do contorno do balão em si muitas vezes vir de uma maneira mais sinuosa, cavernosa. Como vocês bem sabem o quadrinho não tem som, então a gente só pode imaginar como seria essa voz do Sandman, contudo por essa voz estar graficamente expressa de uma maneira diferente das outras pessoas, logo a gente percebe que aquela voz também não é uma voz humana, não parece ser a voz de um cara qualquer.
E uma coisa que o Neil Gaiman faz muito bem no início dessa história, com o Sandman aprosionado, é produzir logo no primeiro número da edição algo que na teoria renarrativa a gente muitas vezes chama de ascensão social O. u seja, o quanto que o conflito do protagonista também é um conflito que vai ganhando proporções em toda a sociedade. O século XX foi privado do sonho e cabe lembrar, o século XX foi um século extremamente sangrento.
Infelizmente o XXI está tentando competir para ver se é mais. Mas enfim, o lance é que no século XX teve um surto que foi a doença do sono e começou por volta daquele ano que o Sandman foi aprisionado. Entre 1917 e 1927 muitas pessoas foram acometidas por essa doença, e que até hoje não tem um conselho científico do porquê aconteceu.
Caso você não tenha entendido, esse negócio rolou mesmo. Pessoas aparentemente saudáveis de uma hora para outra caiam no sono e não acordavam mais. Muitas viveram dormindo por décadas, chegaram mesmo a ter filhos.
E aí você fica pensando como é que uma pessoa que estava dormindo ficou grávida, e aí a resposta você já imagina, tem a ver com abuso. Inclusive tem um filme muito bonito chamado Tempo de Despertar, que é quando os neurologistas conseguiram, por volta dos anos 70, a partir do uso de musicoterapia e outras medicações, fazer com que essas pessoas acordassem. Só que não durou muito e logo em seguida elas voltaram a dormir.
Enfim, essa história é muito mais complexa porque está lidando com uma doença que até hoje a gente não entende direito. Mas o bacana aqui que o Neil Gaiman traz esse detalhe e ele não é simplesmente uma informação vazia. Você acompanha a vida de diferentes pessoas que caíram no sono, ou no caso, pessoas que aqui na história também não conseguem mais dormir.
E isso já revela de pronto a força de Sandman, que é de você lidar com esses seres fantásticos, mas também de conseguir ter um olhar muito sensível para o ser humano, para as pessoas mais banais. Ainda nessa primeira história, que é bastante longa, Sandman acaba conseguindo se libertar, isso já nos dias de hoje, no caso dos dias de hoje da série em quadrinhos, ou seja, final dos anos 80, e daí ele vai para sua vingança, com um momento típico de história de terror, que é quando ele condena o filho do cara que o aprisionou a sofrer do eterno despertar, que se trata de um pesadelo que não tem fim. Você acorda assustado, você pensa, ainda bem, era só um pesadelo, algo terrível acontece e você acorda assustado e fala, ainda bem, era só um pesadelo e outra coisa terrível acontece e você acorda assustado, está entendendo?
É um horror. Dado esse ponto de partida, que inclusive serve para introduzir o personagem do Sandman, a partir de agora, a gente vai acompanhar sua jornada, mais especificamente, ele tentando se fortalecer, afinal, ele ficou preso por quase um século, e buscando recuperar os seus itens que o tornam tão poderoso. No caso, a algebeira de areia, o seu elmo, que tem uma pegada meio alien, e a rocha onírica, o rubi pedra-lunar.
Cada um desses itens vão estar espalhados entre diferentes personagens do universo DC. E atenção para esse detalhe, porque isso não é gratuito, logo na segunda edição, Sandman esbarra com Caim e Abel, que são personagens recorrentes das histórias de horror da DC Comics. Inclusive, em inglês, o nome das revistas em que apareciam esses personagens têm nomes bem parecidos, House of Mystery e House of Secrets, aqui no Brasil, acabou sendo chamado de mansão dos mistérios e casa dos segredos.
E Caim e Abel são personagens anfitriões, uma tradição que remonta à EC Comics dos anos 50, que sempre traziam figuras um tanto macabras, para meio que introduzir as pessoas à história de horror que ia ser contada, que sempre era uma espécie de causo. O lance é que Caim e Abel têm uma dinâmica bastante cruel, são dois irmãos que convivem, e sempre, ao final do dia, o Caim vai acabar matando o Abel de um jeito diferente, para no dia seguinte, o Abel ressuscitar, e mais uma vez, essa relação se consumar, é um eterno assassino e é eterno vítima, sendo obrigados, inclusive, a conviver. A presença de Caim e Abel aqui pode ter uma explicação do ponto de vista de enredo, mas tem a ver com o Neil Gaiman já dizendo, olha: eu estou querendo me basear naquelas histórias de horror antigas.
Para vocês terem uma noção, House of Mystery é de 1951, House of Secrets é de 1956, então os anos 50 é uma década especial nas referências do Neil Gaiman. E seguido aqui o embalo, a partir desses três itens que estão faltando, aí você consegue estabelecer três missões para o personagem. A primeira, em busca da algibeira, vai fazer com que Sandman encontre John Constantine, o famoso mago criado por Alan Moore.
E aqui tem um dos momentos também que eu acho mais bonitos em Sandman, que também a série deixou de lado, que é o fato de que a presença do Sandman vai se dando pela música. Constantine passa o dia inteiro escutando uma série de canções e todas elas falam sobre sonho, sobre sonhar, até que, de repente, o Sandman bate na porta dele. Essa ideia do sonho que vai se aproximando a tenós a partir do tema, é como se antes do Sandman se apresentar, a gente estivesse repleto de sonhos, isso é uma sacada muito bonita, inclusive, vindo pela música, pela música popular, por aquela que toca no rádio, por aquela que está na cabeça da gente.
E é nesse ponto que o Neil Gaiman é bom, aqui é uma delicadeza, uma sutileza, a poesia, que eu vou repetir porque eu sou chato, a série de TV não consegue. Mas, enfim, o lance só que interessa aqui é que, nessa participação do Constantine, a gente descobre que a algebeira está com uma ex-namorada dele e aqui é essa algebeira de areia usada muito em uma analogia com droga. Cabe lembrar que anos 80 e início dos anos 90 foi o auge da guerra contra as drogas, então o Neil Gaiman aproveitou aqui e implacou uma metáfora.
Seguindo o embalo, o elmo está no inferno e vai lá, Sandman até o inferno e conhece um personagem que depois vai se tornar também bastante recorrente no universo DC, que é Lucifer. Outra sacada que também eu gosto muito que tem no Neil Gaiman e que, mais uma vez, não tem na série, é que o inferno é governado por um triunvirato, Lucifer, Azazel e Beelzebul, um ser insetoide, o senhor das moscas, outro, um desses anjos abstratos que lembram muito o imaginário da mística cristã. A ideia de três governando o inferno eu gosto, primeiro porque tem uma brincadeira com a Santíssima Trindade, mas também porque dá uma dimensão do quanto o inferno, entre tantas coisas ruins, também é um lugar onde não há paz.
O que é meio óbvio, é um inferno, se você tem um único soberano, por mais que esse soberano possa ser cruel, o poder não está em disputa, então imagina você estar em um lugar que é horrível e, ainda por cima, o poder está sempre em disputa para ver quem vai ser mais horrível. É bacana essa cara do Neil Gaiman porque contrapõe essa ideia de lugar das torturas burocratizadas, que você vai no inferno e tem um vale, um lugar onde você vai sofrer determinada punição. Tipo o que aparece na Divina Comédia de Dante Alighieri.
Não, com o Neil Gaiman, essa burocracia também está confusa, porque com três pessoas tendo que decidir as coisas, elas não chegam ao consenso, uma fica traindo a outra e, no final das contas, todo mundo sofre. Vai ser nessa passagem do inferno que vai ter aquele famoso duelo do Sandman, que na série se deu diretamente contra Lúcifer, mas nos quadrinhos foi com o demônio que detinha o elmo. Apesar disso, tanto na série quanto no quadrinho, a vitória do Sandman se dá da mesma maneira, ele demarca que, mesmo diante de toda a escuridão, ainda há esperança.
Inclusive uma coisa que eu acho legal é que Lúcifer fala, olha, você não vai sair daqui, mesmo você sendo o Morpheus, o senhor do sonhar, você aqui não é ninguém e o Sandman retruca, tem certeza que eu não sou ninguém aqui? Não existiria o inferno justamente porque você sonha com o paraíso? E é nessa que o pessoal percebe que o Sandman é pica, até mesmo no inferno.
Por fim, teremos o Sandman ainda atrás do Rubi e, a partir daqui, vão ser várias histórias, porque aqui o Neil Gaiman está basicamente passando o recibo dizendo: olha gente, ainda é uma história do universo do DC, tem super-herói, tanto que aparece na Liga da Justiça e um vilão, que é o Doutor Destino, da DC, não da Marvel, é aqui reaproveitado para ser o vilão da vez do Sandman que detém o Rubi. Inclusive vai ser nesse embate do Sandman contra o John Dee, que é o Doutor Destino, que vai ser feita uma das melhores histórias de horror que o Neil Gaiman já escreveu, que é aquela que se passa em uma lanchonete quando o Doutor Destino começa a manipular os sonhos das pessoas. E essa história é muito boa sobre o quanto que os nossos sonhos são selvagens, o quanto que pessoas comuns são capazes das coisas mais sensuais e também violentas por causa das suas fantasias, culminando, inclusive, na autodestruição.
E por mais que a gente acompanha muito a lanchonete, isso está acontecendo no mundo todo. Então de novo aqui o Neil Gaiman está se utilizando muito bem dessa ascensão social e sempre conseguindo construir personagens que nos dão uma dimensão real nos acontecimentos, fazendo com que a história não fique apenas uma espécie de embate entre herói e vilão ou mesmo trivialidades da corte quando depois se reúnem os perpétuos. Isso é o lado bom do Neil Gaiman.
Ele sempre dá uma dimensão humana, banal para pessoas que estão passando problemas diante desses deuses em disputa, ou semideuses, ou figuras divinas, ou entidades, vocês entenderam. Eu fiz questão de puxar tudo isso porque notem como que, desde a primeira história até agora e aqui eu já estou no nº. 7, Sandman é uma típica história de horror, fim.
Porém, é uma história que o tempo todo faz questão de lembrar que está amarrada com o universo No inferno tem o demônio Etrigan, personagem criado pelo Jack Kirby e depois você tem a Liga da Justiça, aparece o Senhor Milagre, o Marciano, isso para não falar de menções do Superman, também aparece o Asilo Arkham, o espantado vilão do Batman faz uma participação importante e claro tem esse embate final herói versus vilão, básico. Notem então que se por um lado o Sandman aposta no horror logo no início, ele também está dizendo muito claramente, ainda é quadrinho de super-herói, ainda estou fazendo uma narrativa super-heróica, porém buscando uma certa adultice, buscando desenvolver temas mais poéticos, ou mais abstratos, ou mais profundos, mas ainda é super-herói. Eu sinceramente não sei o quanto isso foi intencional, mas isso deu muito certo, porque nos anos 80 começam a surgir uma série de histórias de super-herói adultas.
A mais lembrada, Watchman, de Alan Moore, óbvio, mas tem também o Cavaleiro das Trevas, histórias do Batman, do Demolidor, do Superman. Começam a sair um monte de histórias adultonas de uma série de personagens. Eu falo adultona com certo tom pejorativo porque muitas vezes são histórias mais profundas, mais maduras, mas outras tantas vezes é só uma história infantiloide que tem sexo e violência.
Sexo e violência é sinônimo de adultice? Não, às vezes eu acho até mais coisa de Do tipo: nossa que adulto tem vísceras, meu Deus, uma piroca, adulto demais. Seja como for, havia um público que estava sendo acostumado com essas obras, estava inclusive respondendo positivamente a elas.
O que era até um tanto óbvio, porque aquela geração que cresceu lendo quadrinhos, que era criança vendo história de super-herói, agora era uma geração adulta, muitas vezes com filhos e que tinha o interesse de ver aqueles personagens da sua infância lidando com problemas de adultos. Sandman então foi mais uma obra para surfar nessa onda, ou seja, buscando ser mais uma história de super-herói adultão. Só que aos poucos o Neil Gaiman foi se sentindo mais confiante para ir em direção de algo que ele gosta mais e isso vai ser a partir de uma história muito chave que é Sandman 8, a história onde a gente finalmente conhece a morte.
E que quebra todas as expectativas porque a gente esperava uma entidade sombria e terrível e que no final aparece uma menina gótica, extremamente sensível, delicada. Sandman 8 é um divisor de águas porque é aqui que o Neil Gaiman basicamente rompe com essa ideia de super-herói, é quase como se ele dissesse, eu trouxe você aqui, é uma história de super-herói, mas é adulto, não é aquela coisa infantil de super-herói, você está comigo? Bom, agora eu não preciso mais desse negócio, já te fisguei, vamos embora.
E a história de Sandman 8 é muito bonita porque a gente acompanha a Morte junto do seu irmão, tirando a vida de muitas pessoas, de idosos a bebês e tudo é muito triste, mas também singelo e poético. E serve muito para mostrar que a partir de agora a história do Sandman não vai ser mais dele lutando contra grandes vilões, ainda que eventualmente a gente vai ter isso, como no caso do Arco Casa de Bonecas, mas o principal é que agora Sandman vai ser uma série sobre o sonho, mais basicamente o sonho humano e a busca por sentido do sonho humano também é a busca de sentido do Morpheus. Essa entidade que agora encontra no contato com os humanos uma razão para viver, também é uma maneira de o Neil Gaiman dizer: ok, eu quero fazer uma história sobre sonhos, sobre mitos, sobre lendas, sobre as fantasias mais ocultas e selvagens dos seres humanos e não só dos seres humanos, porque também tem histórias na perspectiva de gato.
Essa postura corajosa por parte do Neil Gaiman e companhia foi muito, mas muito utilizada como estratégia de marketing. Basicamente o que a DC Comics começou a usar como propaganda da própria série, foi o discurso de que finalmente o gênero de super-heróis havia sido superado. Você que sempre leu super-heróis, agora você está lendo quadrinhos de qualidade.
Você está lendo uma espécie de alta literatura em gibizinho. E isso foi muito propício à época, porque nos anos 90 ganhou força um discurso de quadrinhos como literatura. Se até hoje tem gente mal informada dizendo que quadrinhos era literatura, tem a ver com os anos 90, onde as próprias editoras, os próprios artistas fomentaram esse discurso, já que era um momento que se buscava muito essa legitimação literária por causa da ascensão da graphic novel.
Aliás, cabe dizer, essa busca por uma qualidade literária dos quadrinhos vem desde o final dos anos 70, mas vai ser ali no final dos anos 80 e nos anos 90 que essa parada vai explodir. Inclusive o selo Vertigo criado pela DC Comics que surge em 1993, quando o Sandman já estava bastante avançado, colocou retroativamente uma série de obras sob esse selo Vertigo. Foi o caso do próprio Monstro do Pântano do Alan Moore que saiu nos anos 80.
E a ideia aqui era poupar os personagens da DC Comics como um todo, ou seja, não colocar o Superman ou o Batman em situações um tanto complicadas, do ponto de vista de imagem pública, eu quero dizer. Mas também a criação de um selo Vertigo cumpria a dupla função de trazer para o público leitor de super-heróis agora um referencial de adultice. E é aí que começa a minha crítica ao discurso que se construiu em torno de Sandman.
Como eu mostrei para vocês aqui falando das várias histórias, tem muita coisa boa em Sandman, momentos que são incrivelmente geniais. Mas esse discurso de melhor HQ de todos os tempos ou de grande quadrinho adulto é, antes de tudo, um discurso que a DC Comics procurou surfar a partir de tudo que estava posto naquele momento. E mais do que isso, de restringir o leitor de quadrinhos a continuar lendo coisas da DC.
Porque, gente, olha só, quadrinho adulto tem para valer desde o final dos anos 60. Contudo, era interessante para a DC Comics para o mercado mainstream dizer que agora o quadrinho era adulto, que agora ele havia encontrado a sua maturidade. Olha que curioso, ele só encontra sua maturidade quando ele continua em uma grande editora e, por sua vez, ele só encontra essa maturidade a partir dessa porta de entrada que foram os super-heróis.
Em outras palavras, o que eu estou querendo dizer é que a DC, basicamente, estava puxando o saco de nerd, estava dizendo para aquela galera que, muito provavelmente, só lia super-herói, que agora eles eram adultos, que eles não tinham mais por que ter vergonha de si, de se achar um tanto infantil ou de serem ridicularizados. Graças ao Sandman, o nerd agora é um cara adulto, maduro, bem resolvido, nem fica tretando no Twitter quando um cara qualquer fala mal de Sandman. Para deixar claro, o que eu estou querendo dizer aqui é que esse foco exacerbado em cima do Sandman serviu como estratégia de mercado da DC Comics para confinar o leitor em uma obra que é da editora e, ao mesmo tempo, com esse discurso, invisibilizar todo o resto ao seu redor.
E muita gente até hoje cai nessa lorota. Veja, você tem todo o direito de gostar de Sandman, eu também gosto. Não amo como muita gente ama, mas gosto.
Porém, não ter uma postura crítica e enxergar todas as questões que estavam envolvidas naquele momento, bem, aí é ser um tanto tolo, é fazer papel de nerd bobão. Inclusive, não percebendo que o quanto, a partir do momento que Neil Gaiman e companhia sacaram o que eles estavam fazendo, sacaram, inclusive, enquanto estratégia editorial o que estava rolando ali, não por acaso, na Sandman 19 surge uma das histórias que muitos vão dizer que é a melhor história do Sandman, está longe disso, mas que é aquela história onde o Sandman se encontra com Shakespeare. Inclusive, a gente fica sabendo que a peça Sonhos de Uma Noite de Verão foi encomendada pelo próprio Sandman, pedindo para que Shakespeare fizesse um retrato de uma série de seres mágicos que iriam assistir a representação, a adaptação de suas próprias vidas em palco.
É uma história boa, bonita, mas antes de tudo, é a história onde aqui, mais do que nunca, a DC Comics, a partir do Sandman, a partir do projeto editorial que era Sandman, está dizendo, conseguimos finalmente ser literatura. Ao botar Shakespeare ao lado de Sandman, a gente está basicamente produzindo uma simetria, mas também sinalizando uma passada de bastão, quadrinhos agora é literatura. E esse discurso, repito, é discurso marqueteiro, mas que deu muito certo, até porque essa história onde aparece o Shakespeare foi muito premiada, muito em função desses discursos da época que queriam buscar uma literacidade nos quadrinhos.
Sacaram então o que está em jogo por trás disso tudo? Eu de verdade espero que dessa vez tenha ficado claro, Sandman não é o melhor quadrinho de todos os tempos, e dependendo dos seus gostos e critérios, Sandman sequer é uma das melhores obras em quadrinhos de todos os tempos. É um quadrinho bom, é um quadrinho muito bom, mas é mais um quadrinho dentro de um processo.
Ainda que sim, ele tenha sido importante por uma certa legitimação dos quadrinhos, mas essa legitimação extremamente atravessada, meio que elogiando os quadrinhos pelo que eles não são, no caso literatura, e ao mesmo tempo mantendo o leitor de super-herói em uma eterna punhetinha narcísica, dizendo para o leitor de super-herói quanto ele é adulto, quanto ele agora amadureceu, porque ele está lendo o quadrinho da DC Comics sobre o selo Vertigo. Só que não se enganem, e isso ficaria até para um outro vídeo, os quadrinhos do selo Vertigo ainda têm uma pegada muito forte de super-herói. A estrutura narrativa ainda é muito aproximada do quadrinho de super-herói.
O que muitas vezes se fez é apenas esconder a parte mais vexamatória, no caso, homens marombados com colant colorido, e não que isso deixe de resultar bons quadrinhos. Mas de novo, não sejamos ingênuos diante de estratégia de marketing de grandes editoras. Cabe lembrar que a DC Comics naquele momento já fazia parte do grupo Warner.
Então veja, não estamos falando de um discurso construído por uma editora pequenininha, e sim de um discurso que tomou proporção graças a uma grande empresa, uma grande corporação que sabe muito bem se utilizar da indústria cultural a seu favor, inclusive produzindo consensos bastante artificiais, como esse papo de que Sandman é o melhor quadrinho de todos os tempos, a alta literatura dos gibizinhos. Sandman é publicado e republicado constantemente no Brasil. O primeiro arco que eu falei, Prelúdios e Noturnos, você encontra em diferentes versões.
E é aquela coisa, sempre procure em lojas de quadrinhos, sebos, mas se vocês forem pela Amazon atrás de Sandman, use o nosso link aqui que ajuda bastante. E digam nos comentários se vocês querem que eu continue falando de Sandman aqui. Inclusive avançando nos próximos arcos, Casa de Bonecas seria o próximo a comentar aqui, que também já foi adaptado para a série, porém agora vindo a segunda temporada da série, outros vão ser adaptados.
E sobre o teaser da série, eu só quero dizer o seguinte, que troço cafona, é o ubercringe, é o neokitsch, é o pós-vergonha-leísmo. Enfim, eu já fiz um vídeo aqui, junto com a Thaís, descendo a lenha só na série do Sandman na primeira temporada, fica a sugestão aí para que vocês assistam, e não mais. Segue a gente nas nossas outras redes sociais, TikTok, Twitter e Instagram.
Obrigado por assistir, valeu, pessoal.