[Música] Me chamo Emanuel Bezerra e durante muitos anos acreditei ter uma vida simples, mas feliz. Vivíamos em um rancho pequeno, porém bonito, cercado por morros baixos e árvores que faziam sombra nas tardes. Foi nesse lugar que comecei minha família com Vanessa, minha esposa. Tivemos cinco filhos. Quatro deles tinham entre três e 8 anos e o mais novo estava completando o seu primeiro ano quando tudo começou a mudar. Até então eu não tinha do que reclamar da minha vida. Ela era rotineira, mas tranquila. Acordávamos cedo todos os dias para cuidar dos animais e preparar a terra.
Sempre havia algo a fazer, mas o ritmo era suportável. Claro que, como todo casal, de vez em quando discutíamos. Isso acontecia principalmente quando alguma das crianças estava agitada ou quando o trabalho nos deixava de mau humor, mas nada fora do normal. Vanessa era uma mulher muito atenciosa, com uma energia que eu mal conseguia acompanhar. Desde cedo já estava limpando, cozinhando, cuidando das crianças, regando as plantas ou lavando roupa. Ela nunca reclamava do trabalho e às vezes era difícil fazê-la se sentar para descansar um pouco. Minha esposa também era muito religiosa e ensinou as crianças a
rezar e orar desde pequenas. Ela sempre ficava com elas para agradecer a Deus antes de dormir. Eu ouvia eles pedindo para que estivéssemos bem e para que nossa vida seguisse um bom caminho. Vanessa também era meio brava, isso eu não vou negar. Bastava algo fora do lugar ou alguma criança falar de forma rude para ela ficar séria. Eu a conhecia bem e sabia que tudo aquilo era por querer proteger o que havíamos construído. Eu me sentia realizado, pois tinha uma família muito bonita, dois cachorros e meu próprio rebanho. Sentia que havia vencido na vida, por
isso nunca imaginei que algo sombrio nos destruiria completamente. Vi diante dos meus olhos tudo ir por água abaixo. Vi a pessoa que eu mais amava se transformar por completo. A primeira coisa que começou a mudar foi algo tão sutil que quase não percebi. Eu não estava dormindo bem, então acordava no meio da noite, sem saber porquê, com uma sensação estranha no corpo. Sentia até que os animais lá fora também estavam inquietos. Numa madrugada, enquanto tentava voltar a dormir, senti a cama tremer um pouco, não forte, apenas o suficiente para mexer as cobertas. Fiquei parado e
foi então que percebi que o movimento vinha do lado da minha mulher. Ela mexia o pé como quando estamos nervosos e nem percebemos. Primeiro devagar, depois com mais força, como se quisesse se livrar de algo. No início, ela só fazia isso por alguns segundos e parava, mas com o passar dos dias foi aumentando. Teve noites em que ela mexia o pé por vários minutos seguidos, como se algo a incomodasse durante o sono. O curioso é que ela continuava dormindo, respirando normalmente e com uma expressão tranquila. Eu colocava a mão na perna dela para tentar fazê-la
parar, mas às vezes não adiantava. Perguntei uma manhã se ela havia dormido bem e ela disse que sim, que não se lembrava de nada estranho. Em outra ocasião, contei sobre o pé e ela começou a rir feito uma hiena. Disse que eu devia ter sonhado ou que estava exagerando. Depois chegou a ficar um pouco irritada, achando que eu queria provocá-la. Acabei que deixei para lá, pois havia coisas mais urgentes para resolver no rancho e não tinha tempo para aquilo. Passaram-se algumas semanas e o lance do pé continuava igual. Porém, agora ela só faltava derrubar a
cama. Às vezes dava uma trégua por uns dias e depois voltava parecendo que estava chutando 30 pessoas enquanto dormia. Mesmo sem conseguir dormir, eu não falava nada para não preocupá-la, mas comecei a prestar atenção em outras coisas. Uma tarde, quando cheguei mais cedo do pasto, enquanto estava nos fundos da casa lavando as mãos, escutei sua voz. Pensei que estivesse falando com alguma das crianças, mas quando entrei na cozinha percebi que ela estava sozinha. estava de costas para mim e parecia mexer com o jantar, mas falava em voz baixa, como se estivesse reclamando de algo. Fiquei
parado por alguns segundos, tentando entender o que carambolas ela dizia, mas eram palavras meio cortadas, então não dava para entender claramente. Às vezes eu a ouvia do curral murmurando coisas dentro de casa, outras vezes do quarto, como se estivesse conversando com alguém, mas sem esperar resposta. No começo, pensei que fosse uma forma de desabafo, talvez por se sentir sobrecarregada, mas aquilo não era comum nela. Vanessa nunca foi assim. Ela sempre foi reservada com seus pensamentos, então nunca tinha feito algo do tipo. Numa ocasião, enquanto eu me preparava para sair ao trabalho, meu filho mais velho
se aproximou com uma expressão séria. Disse que às vezes quando eu não estava, a mãe dele falava sozinha, que parecia brava como se estivesse discutindo com alguém e que isso o deixava com medo. Certa noite, já deitados, com as crianças finalmente dormindo e o quarto em silêncio, Vanessa falou comigo em voz baixa. O jeitão que ela falava demonstrava estar nervosa. Virei-me para olhá-la e notei que ela estava com os olhos abertos, olhando para o teto. Ela me contou que naquela tarde, enquanto eu estava no pasto, ela tinha saído até o curral para buscar uns panos.
O sol ainda estava alto, já que não passava das 4 da tarde. Disse que foi ali que viu um menino. Tinha o corpo parecendo uma vareta de magro e aparentava não ter mais do que 5 anos. Sua pele era de um tom escuro profundo. Era quase como se estivesse queimada. A princípio, ela pensou que fosse um dos nossos filhos, mas ao olhar melhor percebeu que não. O menino estava numa posição estranha, meio agachado, com os braços para baixo e o corpo inclinado. Movia-se rápido, como se tivesse pressa, mas ao mesmo tempo parecia não conseguir manter
o equilíbrio. Ia de um lado para o outro, perto das galinhas, e entre a cerca. Minha esposa chamou por ele, mas o menino não respondeu nem se virou. Ela não viu o rosto dele, apenas aquele corpo pequeno e escuro se movendo entre o galinheiro e o lugar onde amassava latinhas. Ela diz que tentou se aproximar, mas o pequeno entrou entre a plantação de pepinos caipiras e não foi mais visto. Ela disse que não quis sair correndo, nem fazer escândalo para não assustar as crianças, mas por dentro estava tremendo. E o que mais a deixou assustada
foi que tudo aconteceu à luz do dia. Tanto Vanessa quanto eu crescemos em famílias onde o sobrenatural não era história para se rir. Por isso, quando ela me contou o que aconteceu, não levei na brincadeira e ela também não deixou passar. No dia seguinte, levantou-se cedo e, sem dizer muito, trançou duas cruzes de palmeira com as próprias mãos. fez isso com calma, sentada à sombra, como se fosse apenas mais uma tarefa da casa. A primeira colocou perto do galinheiro, bem ao lado de uma pedra onde as galinhas sempre se empoleiravam. A segunda pendurou atrás da
porta principal, por dentro, com uma linha vermelha que guardava em sua caixa de costura. Ela disse que provavelmente se tratava de uma criatura travessa da floresta que aparecem principalmente onde há crianças. Ela colocou as cruzes e por vários dias jogou água benta nas portas e janelas. Minha mulher rezava todas as noites, pedindo a Deus que nos protegessem, mas por alguma razão eu ainda a notava inquieta. Passaram-se vários dias sem que nada de estranho acontecesse e Vanessa mantinha-se ocupada como sempre. Às vezes parecia que tudo estava voltando ao normal, como se aquela tarde tivesse sido apenas
um susto. Nas tardes, quando o sol começava a baixar, minha esposa costumava ir ao rio lavar roupa. Era o momento dela ficar sozinha e de se distrair um pouco. Quase sempre levava o bebê nas costas, enrolado em um pano que passava do ombro à cintura. As outras crianças ficavam comigo e isso já fazia parte da rotina. Eu ficava em casa cortando lenha ou preparando coisas para o dia seguinte, enquanto ela ia com seu cesto no ombro, descendo pelo caminho de terra até a margem do rio. Mas uma dessas tardes foi diferente e me lembro muito
bem. Ouvi a porta se abrir num bac. Dei um grito achando que eram as crianças. Mas nisso Vanessa entrou com a respiração ofegante e os olhos bem abertos. Trazia o bebê nos braços e os dois estavam machucados. Tinham arranhões nos braços e no rosto, como se tivessem caído ou rolado pela terra. O menino de repente começou a chorar sem parar. um choro forte e desesperado, como se o susto ainda estivesse em seu corpo. Ela o sentou na mesa e começou a limpá-lo com uma toalha úmida. Ela tentava acalmá-lo enquanto falava, mas tinha dificuldade em seguir
uma única ideia. Eu a ajudei a buscar água limpa e lhe entreguei um pano. Depois, já mais tranquila, ela me contou o que tinha acontecido. Disse que estava no rio, perto da pedra grande, onde sempre se sentava para esfregar roupas. Enquanto se distraía, ouviu um barulho estranho, como se alguém estivesse nadando devagar. levantou o olhar e ele estava lá em cima de uma pedra do outro lado. Era o mesmo menino que ela tinha visto perto do galinheiro. A pele ainda era aquela queimada de uma cor escura que não parecia natural. Não se movia, apenas a
olhava de longe. Ela sentiu um medo que não soube explicar, então deu um passo para trás, ainda com o sabão na mão. E então a criatura se lançou na água. Não desapareceu, apenas começou a se mover, mas não nadava como uma pessoa. Era um movimento estranho e quando saiu da água, começou a ir em direção a ela. Vanessa saiu correndo com o bebê ainda amarrado nas costas. Disse que rezava alto, do jeito que conseguia e que só pensava em chegar em casa. Mas no meio do caminho sentiu algo. Não foi só o peso do menino.
Sentiu como se algo tivesse se agarrado e subindo nas suas costas. Não soube como aconteceu, mas no caminho ela perdeu o equilíbrio. O pano se desamarrou e os dois caíram no chão. Ela arranhou os braços e o rosto na queda, e o bebê bateu contra uma pedra pequena. A primeira coisa que fez foi pegá-lo no colo, ver se estava tudo bem e abraçá-lo forte. Ela olhou ao redor para ver se aquela coisa ainda estava por perto, mas não havia nada, apenas o mato, as pedras e o som do vento entre as árvores. Naquele momento, enquanto
contava, Vanessa não conseguia esconder o medo, pois ele estava estampado em seu rosto. Suas mãos tremiam e meu pequeno continuava chorando sem parar. Depois do que aconteceu no Rio, minha esposa nunca mais foi a mesma. Ela começou a ter pesadelos quase todas as noites. Se mexia dormindo, murmurava coisas entre os dentes e às vezes acordava de repente, ensopada de suor e com o olhar perdido. Dizia que não lembrava o que tinha sonhado, apenas que sentia medo. O que eu achava estranho é que às vezes os cachorros ficavam malucos lá fora. Porém, o que mais me
chamava a atenção era o cheiro da minha esposa. Quando íamos dormir, às vezes já com as crianças no quinto sono e o silêncio da casa pesando, vinha um cheiro estranho do corpo dela. Não era suor comum, era um cheiro de madeira chamuscada com um toque de ferrugem. Eu notava isso principalmente quando me aproximava do pescoço dela ou quando passava por ela na cozinha. Não era constante, mas aparecia de repente um cheiro forte que não saía mesmo quando ela tomava banho. Com o passar dos dias, o humor dela também começou a mudar. Vanessa, que sempre foi
paciente com as crianças, de repente se irritava com qualquer coisinha. Se uma delas derramasse água ou brigasse por um brinquedo, ela levantava a voz de um jeito que não era dela. Depois dava para ver em seu rosto que ela se arrependia, pois ficava em silêncio, olhando para a parede. Uma coisa impossível de não notar é que até o tempero dela mudou. A comida da minha esposa era algo que todos esperávamos com gosto. Ela sempre cozinhava com calma, mas de repente tudo começou a sair salgado e o arroz mais papa que qualquer outra coisa. Também estava
exagerada, já que uma vez arranquei quase 20 folhas de louro do feijão. Já ela dizia que a comida estava sem gosto e que faltava algo. Mas nem eu, nem as crianças conseguíamos comer mais que duas colheradas. Deixávamos os pratos quase cheios e ela não dizia nada. Só comia em silêncio, como se não notasse a mudança. Nessa época, tentamos nos aproximar mais de Deus. Quase nunca íamos à igreja porque ficava a cerca de 2 horas a pé. Ainda assim, normalmente íamos uma vez por mês a pedido da minha mulher. Em casa borrifávamos água benta nos cantos
e colocava azeite ungido nas cortinas. Azeite dado por uma amiga muito próxima de nós. Fora tudo isso, ainda mantínhamos uma vela acesa no altar. Aquele que tínhamos no canto do quarto com as imagens de São Miguel. Jesus e a Virgem. Mas nada parecia funcionar, já que minha esposa não melhorava. Comecei até a notar que ela já não rezava à noite, nem pedia mais para as crianças rezarem antes de dormir. Foi por essa época que comecei a notar algo no meu filho mais velho. Ele sempre foi calmo daqueles meninos que preferem ficar em casa ajudando a
mãe a cuidar dos irmãos. Mas de uns tempos para cá insistia em ir comigo paraa roça. Eu mal calçava a botina e ele já estava atrás com o chapéu mal colocado, dizendo que queria ir comigo. No começo, achei que fosse por gosto, por querer se distrair ou aprender, mas depois percebi que não era isso. Era como se ele não quisesse ficar em casa, como se sentisse desconfortável em ficar sozinho com a mãe. Primeiro, o menino tentou me enganar, dizendo que não era nada, mas comecei a reparar. Quando voltávamos do campo, a casa estava estranha. O
ambiente estava como se as crianças tivessem sido repreendidas. Encontrava todos calados, com os olhos baixos e nervosos. Vanessa falava pouco e às vezes nem me cumprimentava direito. Uma tarde depois de tocar umas vacas que tinham saído do curral, meu filho e eu decidimos entrar um pouco no riacho para nos refrescar. O calor estava forte e a água corria limpa. Enquanto ele brincava com umas pedras, reparei nas costas dele. Tinha umas duas ou três marcas roxas, como se algo o tivesse machucado forte. Perguntei bravo o que tinha acontecido. Ele ficou quieto, olhando para a água. Perguntei
de novo. Então ele disse que tinha caído dias antes, enquanto brincavam perto do galinheiro. Mas eu não acreditei porque não eram arranhões de queda. Era como se tivessem sido feitas de propósito. Não eram muitos, mas eram profundas, como se tivesse sido com algo grosso. Olhei nos olhos dele e soube que estava mentindo. Não por travessura, era um silêncio de medo e aquilo apertou meu peito. Um dia estávamos no quintal, sentados em umas pedras ao lado do tanque. Vanessa parecia tranquila, mas no olhar dela havia algo apagado, como se estivesse distante. Me disse assim de cara
que sentia que algo ruim tinha entrado na casa. confessou que havia coisas que não tinha me contado e que ultimamente estava tendo visões. No começo, achou que eram sonhos, mas com o tempo começaram a parecer reais. Era como se a aprisionassem por um momento e depois ela acordasse sem saber quanto tempo tinha passado. Me disse que certa vez estava na cozinha olhando uma panela quando de repente ouviu um barulho forte atrás dela. Ao se virar viu nosso bebê caído no chão. Não respirava. Estava com o rosto azul e parecia sem vida. A voz dela se
quebrou ao contar isso para mim. disse que gritou como nunca antes, um grito que saiu do estômago. Ela o pegou nos braços, apertou contra o peito enquanto chorava e pedia para ele acordar. Ela não soube dizer quanto tempo ficou assim, o abraçando e tremendo. Tudo ficou confuso. Disse que até sentiu o corpinho gelado contra sua pele e que naquele momento, ao sair correndo pela porta gritando, percebeu que não tinha nada nos braços. O bebê estava dentro da casa chorando, pois tinha acordado com os gritos dela. Estava na cama com os olhos cheios de lágrimas, assustado,
e o resto das crianças a olhava do quintal, sem entender o que estava acontecendo. Vanessa me contou isso sem levantar a voz, com os olhos perdidos, como se mal conseguisse entender aquilo ela mesma. Fiquei em silêncio porque não sabia o que dizer, mas isso não foi o pior. Alguns dias depois, enquanto varria o quintal e as crianças brincavam perto da cozinha, Vanessa viu algo que não conseguia explicar. disse que seu olhar se fixou em nosso filho mais velho, que estava agachado, e de repente sentiu que havia algo errado. Havia algo estranho na postura e na
forma como o corpo dele estava curvado. Segundo ela, parecia como se tivesse um peso em cima dele. Então, ouviu gritar. Foi um grito como de pura dor. O menino se ajoelhou na terra com as mãos abertas, tremendo. Minha esposa correu até ele pensando que ele tivesse se machucado, mas antes de chegar parou de repente. Algo saía das costas dele, como mãos escuras, finas e tortas. Elas se moviam devagar, se esticando para os lados. Seus olhos ficaram negros e o nosso filho gritava, mas não com sua voz. Era uma voz como de um homem mais velho.
Vanessa, desesperada, quis arrancar aquela coisa que saía das costas dele, mas no momento em que o tocou, ele gritou com força, se virou e implorou que ela parasse. Disse que doía e que ela estava machucando ele. E foi aí que ela percebeu. Não havia mãos escuras, não havia nada saindo dele. Só estava nosso filho com as costas descobertas, os olhos cheios de lágrimas, se cobrindo com o braço e pedindo à mãe que parasse. Vanessa caiu de joelhos na frente dele, tremendo. Ela o abraçou, o segurou com força e começou a chorar. Não sabia o que
era real. Não sabia se o que tinha visto era um engano, uma visão ou algo que realmente esteve ali por um momento. Me disse que naquela noite se sentiu mais sozinha do que nunca, que se ajoelhou para rezar e não conseguiu terminar nenhum Pai Nosso. Sentia que Deus a tinha abandonado, que algo estava brincando com sua mente, com seu coração e com seus filhos. Ela pedia com toda a alma que Deus a ajudasse, mas só sentia silêncio, um silêncio espesso que a envolvia e não lhe dava respostas. Ela me pediu perdão por não ter me
contado nada, mas acreditava que podia controlar. No entanto, agora se sentia vulnerável e estava com medo porque achava que as crianças corriam perigo. Nisso me pediu para não deixá-la sozinha com eles. Num domingo, descemos até a cidade. Aproveitamos que iríamos à igreja para também passar no posto de saúde. Não queríamos alarmar as crianças, mas eu já não conseguia lidar com a preocupação da Vanessa, estar cada vez mais calada e apagada. Ela já quase não comia e, embora tentasse manter ativa, seu corpo atraía. Caminhava devagar, dava para ver as olheiras e já nem queria segurar o
bebê. Ela fazia isso, pois tinha medo de machucá-lo. O posto de saúde era pequeno, como tudo naquele lugar. Tinha uma sala com dois bancos de madeira, uma escrivaninha e um consultório ao fundo. Nada mais. Não havia muitos remédios, nem sequer uma enfermeira fixa. O médico era um rapaz jovem de outro país que só vinha em certos dias da semana. Ele contou a Vanessa que ultimamente tinham tido escassez de medicamentos e que a maioria dos casos eram enviados para o centro urbano. Ela disse que se sentia cansada, que o corpo doía e que tinha sonhos estranhos
que não a deixavam dormir. Mas não contou tudo, já que escondeu as visões como pesadelos. Estava escondendo coisas. O médico a examinou por baixo, deu alguns comprimidos simples e uma receita que nem adiantava muito, porque não havia farmácia por lá. Para consegui-los, teríamos que ir até a cidade vizinha. E não tínhamos como fazer isso. Não com todas as crianças, porque não tínhamos ninguém com quem contar. Depois daquela visita, minha esposa piorou, não de uma vez, mas dia após dia. Era como ver uma semente de abacate secar sobre o sol. Sua pele ficou tão fina que
em alguns pontos era possível ver as veias azuladas como se corressem sob papel molhado. Suas bochechas afundaram e os lábios estavam tão ressecados que rachavam só de falar. Ela apenas se sentava na cama ou ao lado do altar sem dizer uma palavra. Começou a recusar comida e o pouco que provava lhe causava nojo. Seu corpo não aceitava mais nada. Sentia frio mesmo quando fazia calor e às vezes eu acordava de madrugada porque a ouvia tremendo. Seu corpo vibrava como se houvesse algo dentro dela que se movia de forma diferente. Suponho que até aqui você poderia
achar que se trata de alguma doença mental, mas eu também vi. Meus filhos também viram. Tudo no rancho se espalhou tão rápido que quase perdi a cabeça. Os dias se tornaram pesados. Mas as noites eram muito piores. As crianças já não queriam dormir sozinhas. Chegava essa bendita hora e elas se amontoavam no batente da porta, com os cobertores arrastando pelo chão, pedindo em voz baixa se podiam dormir no quarto com a gente. Não pediam com birras, nem com choro. Pediam com medo. No começo, achei que fosse por ver a mãe tão fraca e diferente, mas
uma noite o mais velho me confessou que havia algo no quarto deles. Disse que nas madrugadas aparecia uma sombra alta que se movia entre as camas. Às vezes se abaixava até o chão e outras vezes subia nas camas como se deitasse para observar como eles dormiam. Uma das minhas meninas disse que certa vez ouviu a respiração daquilo, que aquilo se deitou entre eles e soltava um ar frio com cheiro de queimado. Tentou se cobrir com o lençol, mas sentia que alguém o puxava devagar. Desde então, nenhum deles quis voltar para aquele quarto. Dormiam no chão,
com cobertores bem colados uns aos outros e com os olhos abertos até o corpo não aguentar mais. Como se isso não bastasse, as madrugadas eram um completo caos. O bebê acordava chorando sem motivo e só parava quando o sol nascia. Era um choro desesperado, vindo do fundo, como se estivesse sonhando algo horrível. Lá fora, os cachorros não paravam de latir e o mais estranho era que não latiam para o vazio, mas para a casa. Ficavam parados em frente às janelas ou à porta dos fundos. Rasgavam a terra com as patas e rosnavam baixo, como se
estivessem vendo alguém parado ali. Minha esposa passava a noite se virando na cama e murmurando coisas que não se entendia. Outras vezes acordava com um gemido de dor, encolhida como se algo a apertasse por dentro. E o mais aterrador era que algumas noites chorava em silêncio. Chorava olhando para o teto, deixando que as lágrimas corressem pelas bochechas enquanto o resto da casa se enchia de frio. Houve momentos em que eu não sabia o que fazer. Me sentava na beirada da cama, ouvindo o rangido da madeira. Tudo parecia invadido, como se a casa já não nos
pertencesse, como se houvesse algo dentro de cada parede e debaixo do chão. Naquele tempo, a comunicação entre as casas era quase inexistente. Não havia telefones, nem rádio, nem forma de mandar mensagens rápidas. Se alguém queria falar com outra pessoa, tinha que caminhar, bater na porta e conversar cara a cara. ou na melhor das hipóteses, mandar um recado com alguém que passasse por ali, se passasse alguém. Mas isso não era comum, já que morávamos isolados. O mais próximo eram outros ranchos espalhados entre os morros, com trilhas que se perdiam entre os matos e veredas. Ir à
casa dos meus pais ou ao dos sogros era uma longa viagem. A pé leva 6 horas, talvez mais se o caminho estivesse molhado ou se eu precisasse carregar algo. Pensei nisso muitas vezes. Ir sozinho, buscar ajuda, pedir ao meu pai ou ao meu sogro que viessem. Mas não podia deixar a casa, não com meus filhos ali, e menos ainda com Vanessa naquele estado. Algo dentro de mim não permitia. Também tentei levá-los todos comigo. Pensei em caminhar com eles, amarrar bem o bebê, levar comida em uma sacola e fazer pausas. Mas assim que dava alguns passos
rumo ao mato, minha esposa começava a delirar. gritava coisas sem sentido e perguntava pelas crianças mesmo com elas à sua frente. Começava a se arranhar nos braços, a chorar e a dizer que não a deixássemos sozinha com aquilo, sem dizer o que era exatamente. Também não podia deixá-la sozinha. Tinha medo que ela fizesse alguma coisa enquanto eu não estivesse. Era como se a casa tivesse virado uma armadilha. Tudo estava errado, nada funcionava. Os dias passavam e as coisas só pioravam. As crianças já quase não falavam, nem mesmo para brincar. Eles ficavam perto de mim, com
os olhos sempre atentos, como se esperassem que algo pulasse de algum canto. Até que numa noite, Vanessa me pediu, me segurou pelo braço com a pouca força que ainda tinha e me disse para amarrá-la. Não com gritos nem raiva, ela pediu com calma, como se soubesse que já não aguentava mais. Disse que sentia que algo a estava provocando e que não confiava em si mesma. disse que havia momentos em que não lembrava o que fazia, nem o que dizia, que tinha medo de olhar para as crianças e sentir coisas que não devia sentir. Me implorou
que se eu realmente a amava, não a deixasse solta durante a noite. E foi aí que eu soube que algo muito grave tinha entrado nela, porque Vanessa não era de se render, não era de pedir ajuda. Assim paramos de dormir no quarto principal. Não foi por escolha, foi por necessidade. Cada vez que tentávamos passar a noite lá, Vanessa piorava. No começo eram murmúrios entre sonhos, mas depois ela começou a rir. Não era uma risada feliz, mas vazia e sem emoção. Às vezes acordava rindo baixinho. Depois disso desabava em choro. Um choro descontrolado, com saliva escorrendo
da boca e os dentes cerrando um no outro. Havia noites em que babava tanto que encharcava a roupa igual nosso filho pequeno. Nesses momentos, ela me olhava com os olhos vidrados, sem me reconhecer direito. Entre esses episódios, me dizia que não sabia o que estava acontecendo com ela, que seu corpo já não respondia, pois sentia os braços dormentes e as pernas como se não fossem dela. Às vezes passava a mão no rosto, como se não soubesse o que estava tocando, e muitas vezes ficava olhando a vela acesa do altar e me perguntava se era noite
ou dia. Perdia a noção do tempo, como se a mente estivesse flutuando em outro lugar, como se ela já não estivesse mais entre nós. Numa dessas tardes, depois de vários dias trancados, decidi levar as crianças ao rio. Pensei que um pouco de ar fresco poderia acalmar todos nós. Levei o bebê nos braços e os outros correram na frente, descalços e rindo. O sol estava alto e a água corria tranquila. Sentei-me na beira com o menorzinho, enquanto os outros entravam aos poucos, chapinhando sem a mesma empolgação de antes. Eu estava exausto e vazio. Fiquei olhando para
a água sem pensar em nada, com a mente em branco, como se não aguentasse mais nada. Foi então que ouvi o grito. Levantei os olhos de repente e vi uma das minhas meninas, a mais magrinha, sendo arrastada pela correnteza. Ela lutava para se manter no topo, esticava os braços, batia as pernas, abria a boca, mas nenhum som saía. Me joguei na água sem pensar, com o coração batendo com força no peito. Fui por entre as pedras, sentindo a água empurrando minhas pernas. A vi perto com o olhar desesperado e os olhos cheios de terror. Estendi
os braços e a agarrei. Senti que estava fria e no desespero começou a arranhar meu peito. Dizia para ela que já estava comigo, que se acalmasse e que tudo ia ficar bem. Mas de repente ela escapou como se a água a arrancasse das minhas mãos. Mergulhei, procurando por ela, mas nada, só espuma e pedras. Me virei, gritei seu nome e ao olhar para a margem havia em pé com os irmãos, me olhando como se não entendesse o que eu fazia na água. Fiquei maluco nessa hora e comecei a tremer sem igual. Não sabia se tinha
enlouquecido, se estava sonhando acordado ou se algo estava me fazendo ver coisas que não existiam. Mas a sensação de tê-la nos braços foi real. Senti o peso dela, a pele gelada, o desespero, tudo. O que quer que estivesse nos afetando já não era só com Vanessa. Algo mais tinha começado a brincar comigo também. Depois do que aconteceu no Rio, soube que não podia mais esperar. Naquela noite, sentei-me na beira da cama, com as crianças já dormindo aos meus pés e o bebê enrolado num lençol. Segurei a mão da Vanessa, que estava deitada de lado, olhando
para a parede. Falei com calma, tentando deixá-la nervosa. Disse que no dia seguinte iríamos para a casa dos meus pais, que precisávamos de ajuda e que não podíamos continuar assim sozinhos. Mas ela nem esperou eu terminar e se levantou de repente. Começou a dizer que não, que não queria ir para lugar nenhum, que não atirasse dali e que se eu a levasse algo ruim ia acontecer. Mesmo amarrada, ela batia a cabeça contra a parede de Adobe tantas vezes que por um momento achei que fosse derrubá-la. As crianças acordaram chorando e assustadas. Juro por Deus que
tudo estava se complicando. Cheguei a chorar, sentindo como se milhares de formigas estivessem andando pelo meu corpo inteiro. Tive que amarrar os cachorros longe de casa. Sempre foram mansos, mas nos últimos dias ficaram agressivos. Não comigo, mas com tudo. Osnavam, arranhavam a porta e latiam para as janelas. Comecei a ter a sensação de que poderiam me atacar, que se eu me distraísse, um deles pularia em cima de mim. Passamos a dormir na cozinha, pois lá nos sentíamos um pouco mais seguros. A saída para o quintal ficava logo ao lado, então era um bom lugar para
se estar. As crianças se encolhiam do meu lado, como se seus corpos procurassem o meu calor. E eu me forçava a ficar acordado, mesmo com o sono pesando nos olhos. Naquela noite, sem perceber, o cansaço me venceu. Fechei os olhos por alguns minutos, talvez menos. O esgotamento já era parte de mim e o corpo não aguentava mais. Foi o choro das crianças que me acordou. Era um choro baixo e contido. Abri os olhos, mas tudo estava mais escuro do que o normal. Era como se a pouca luz da vela tivesse se apagado sem aviso. Fiquei
quieto um instante, tentando entender o que estava acontecendo. E então meus olhos começaram a se acostumar. No canto, entre o teto e a parede de Adobe havia uma sombra. Não era uma figura passando rápido ou uma mancha escura. Aquela sombra era enorme e ocupava metade da cozinha. Suas costas tocavam o teto e sua forma era tão escura que parecia engolir o pouco de claridade que restava no ambiente. Não tinha rosto nem braços definidos. Era uma massa alongada, com movimentos lentos, como se respirasse com dificuldade. Meus filhos estavam grudados em mim, chorando. Eu comecei a gritar
como um doido, com a garganta em frangalhos e os olhos cheios de água. gritava seus nomes, o da minha esposa, gritava coisas sem sentido. Tudo em mim tremia e sentia como se algo apertasse meu peito, me deixando sem ar. Lá fora, os animais se agitaram. Os cães começaram a latir desesperados, como se tivessem sentido a mesma coisa que eu. As galinhas gritavam no galinheiro e os dois bodes chutavam o arame. Naquele instante não pensei. Peguei meus filhos como pude em meus braços e saí correndo para fora. O sol ainda não tinha nascido completamente, mas já
se notava uma leve mudança de cor no horizonte. Ali parei de pé com meus filhos agarrados a mim. Me perguntei pela primeira vez de verdade se eu já tinha enlouquecido e se tudo aquilo era imaginação minha. Queria saber se o que estava destruindo minha família não vinha de fora, mas de mim. Mas não importava, porque aquela sombra eu a vi e a senti. Não podia ser apenas um sonho ou minha mente enlouquecida. Minha mulher havia, meus filhos também. Então não podia ser algo que não existia. Eu não podia mais esperar porque as crianças estavam esgotadas
com os rostinhos pálidos colados em mim. Caminhei em silêncio até o quarto com o coração apertado. Vanessa ainda estava lá, amarrada com o pano menos podre que conseguia encontrar. Estava sentada no chão, de costas para a parede, com os pulsos presos e as pernas imóveis. Fiz como ela mesma havia me pedido, mas ela não se debatia, não chorava, apenas permanecia quieta. Me ajoelhei em frente a ela e disse que eu iria embora, que precisava buscar ajuda. Não sabia o que estava acontecendo naquela casa, mas não podia continuar assistindo tudo desmoronar diante de mim. Jurei que
voltaria naquela tarde e que subiria até a casa dos meus pais, mesmo que fossem 6 horas de caminhada. Vanessa não respondeu, não me olhou, apenas começou a rir. Foi uma risada lenta e rouca, como se tivesse dificuldade para sair da garganta. Nem parecia ela. Não era deboche nem alívio. Era algo frio e vazio. Me aproximei mais e limpei seu rosto com um pano úmido. Pedi perdão por tê-la amarrado e por não ter compreendido antes, mas ela continuava sem responder. Não se queixava, não tremia, não fazia nada. Sua pele estava áspera, gelada, e o cheiro era
pior do que nunca. Era uma mistura de carne queimada com algo podre. A abracei por apenas um momento, porque seu corpo estava tão magro que senti seus ossos através do vestido. Ela não retribuiu o abraço, não virou a cabeça e nem suspirou. Era como abraçar um saco vazio. E naquele abraço, eu soube de algo que doeu mais do que tudo. Vanessa já não estava mais ali. O que restava era apenas o invólucro. Me afastei sem dizer mais nada. Fechei a porta com cuidado e a deixei amarrada. Peguei meus filhos um por um. O bebê estava
enrolado e os outros me seguiram como patinhos atrás da mãe. Saímos pelo caminho enquanto o céu se tingia de cinza. Cada passo era um peso e cada olhar para trás pior que uma facada. Mas eu não podia parar. Aquela foi a última vez que vi Vanessa com vida. O caminho até a casa dos meus pais foi longo. Foram mais de 7 horas caminhando com as crianças nos braços, mas o corpo já não se queixava, pois o medo o havia deixado mudo. Meus filhos quase não falaram durante o trajeto, mas iam agarrados a mim com as
roupas sujas e os olhos fundos. Quando chegamos, minha mãe veio correndo até nós. Meu pai não disse nada, mas ambos estavam assustados. Não pela surpresa da visita, mas pela nossa aparência. Um por um, ela olhou as crianças, acariciou a testa do bebê e depois me olhou com os olhos cheios de angústia. Estávamos todos magros e cordoentes. Não perdi tempo e disse que precisava voltar por minha esposa, que a havia deixado amarrada no quarto com pouca comida. Não dei muitos detalhes, pois não quis assustá-los, mas bastou a minha voz fraca para que meu pai entendesse que
não havia discussão. Ele disse que iria comigo e que as crianças ficariam com minha mãe. Ele jogou um casaco sobre meus ombros, pegou comida, uma lamparina, uma corda e um facão. E sem dizer mais uma palavra, partimos. A volta foi mais lenta. Eu caminhava com o peito apertado e meu pai, que sempre foi um homem duro, andava em silêncio ao meu lado. No meio do caminho, parei. Senti minhas pernas fraquejarem, me ajoelhei na terra e comecei a chorar. Não consegui conter. Cobri o rosto com a blusa, chorando como uma criança. Disse a meu pai que
havia algo errado naquele rancho, que eu sentia há dias. Disse que era como se uma entidade sombria tivesse entrado em nossa pele, que eu já não tinha nem certeza do que era real, pois às vezes tudo aquilo parecia um sonho. Meu pai me jurou que era real e que ele estava ali diante de mim e depois me deu um abraço muito forte. Quando finalmente chegamos ao rancho, o ar estava muito diferente de qualquer lugar que já pisei. Não se ouviam cachorros, galinhas, nem nenhum sinal de vida. A porta da frente estava aberta e a primeira
coisa que notamos foi que Vanessa não estava mais lá. Procuramos por todos os quartos e cada canto da casa, mas nada. Meu pai e eu nos separamos e caminhamos pelos arredores, chamando por seu nome. Mas não houve resposta. Foi quando o sol já se escondia atrás dos morros que a encontramos. Não vou entrar em detalhes sobre como a vi, pois realmente não quero. É uma imagem que me persegue até quando fecho os olhos. Estava longe do rancho, entre as árvores, em uma clareira onde mal entrava a luz do dia. Lá estava seu corpo sem vida.
Estava caído como se tivesse se rendido ou como se a tivessem deixado cair. Os braços estavam torcidos e o vestido cheio de terra. E seu rosto não consigo descrever. Corri até ela e me ajoelhei tomada nos meus braços. falava com ela e gritava pedindo que acordasse. Gritei por meu pai e quando ele chegou me viu com ela nos braços. Não disse nada, pois não havia nada a dizer depois de tudo que contei. Mesmo assim eu a carreguei, a levantei como pude e a levei nos braços por todo o caminho de volta à casa dos meus
pais. Chorei por todo o trajeto com aquele caminho parecendo mais longo do que antes. Já se passaram 31 anos desde aquele dia, três décadas desde que carreguei o corpo de Vanessa pela última vez. Às vezes parece que foi ontem, outras vezes que foi em outra vida. Foi muito difícil para meus filhos que cresceram com esse vazio. Para os pais de minha esposa também, e eu sabia que me culpavam em silêncio. Nunca disseram com palavras, mas sentia no jeito como me olhavam, no silêncio desconfortável durante as visitas, como se pensassem que eu havia feito algo. Eu
não os julgo, pois eles não estavam lá. Não viram o que eu vi. Mas juro por Deus que nunca fiz nada contra ela. Ainda assim, dia e noite durante anos, tentei entender o que havia acontecido. Naquela época, eu não conhecia nada sobre curandeiros ou essas coisas. Eu era jovem e achava que rezar e ir à missa era suficiente. Nunca imaginei que havia quem pudesse ter feito algo. Talvez se eu os tivesse procurado há tempo, Vanessa ainda estaria aqui. Desde aquele dia fiquei morando com meus pais. Ali criei meus filhos e nessa casa os vi tornarem-se
homens e mulheres que aprenderam a seguir em frente com o vazio da mãe sempre presente. Eles a lembram com carinho e às vezes me perguntam como ela era antes de adoecer, do que ela gostava, como cozinhava e como ria. Eu conto o que posso e sempre são as coisas boas, porque o resto ainda me custa colocar em palavras. Os anos se passaram e há mais de 20 anos consegui vender o rancho. Vendi para um conhecido do meu pai, um homem que dizia não acreditar nessas coisas. Eu não quis explicar muito, apenas entreguei os documentos e
desejei sorte. Nunca mais voltei lá. [Música] Eu tinha apenas 17 anos na época e todo ano, logo antes da semana do Natal, minha mãe precisava fazer uma viagem de negócios de três dias a trabalho. Sendo filha única e morando só com ela, eu passava esses dias sozinha em casa. Normalmente ela saía antes das férias de inverno, então eu ficava na escola durante a maior parte do dia. Mas naquele ano ela viajou no mesmo dia em que a escola entrou em recesso para o feriado. Com a casa só para mim, não queria nada além de ficar
dentro de casa, relaxando o dia todo. Nossa cidade estava enfrentando uma espécie de tempestade de neve, então, sair de casa nem era uma opção. Preparei um pouco da comida que ela havia deixado para mim e escolhi um filme novo para assistir. No entanto, precisei pausá-lo várias vezes ao longo de algumas horas, porque o vento e a neve ficavam muito altos. De repente, parecia que sempre que eu olhava pela janela, o clima estava pior. Então, por volta das 7 ou 8 da noite, ouvi passos vindo em direção à porta da frente. Os passos soavam contra a
neve e a pessoa torciu várias vezes enquanto subia lentamente na varanda. Não fazia ideia de quem poderia ser. Pausei tudo e fiquei olhando para a porta, esperando que a pessoa batesse ou tocasse a campainha. Conforme os minutos passavam, comecei a ficar nervosa, pois algo parecia errado. Acho que esperei três ou quatro minutos sem ouvir nada, antes de me aproximar da porta e olhar para fora. Não havia ninguém. Eu conseguia ver as pegadas indo até a porta, mas voltando pelo mesmo caminho de onde vieram. Fiquei muito confusa, pois tinha ouvido claramente alguém subindo, mas não ouvi
quando partiram. Além disso, com a tempestade de neve lá fora, qual seria o motivo de alguém vir até minha casa? A única explicação que consegui imaginar foi que a neve estava dificultando a visibilidade e a pessoa talvez tenha confundido minha casa com a dela. Talvez, ao perceber o engano, não quisesse assustar ninguém e tenha saído em silêncio. Era uma teoria um pouco improvável, mas possível. Depois de um tempo, parei de pensar nisso e fiquei mais preocupada com a tempestade, pois a energia caiu algumas vezes por vários minutos antes de voltar. Por causa disso, não consegui
assistir TV nem nada do tipo. Então, me sentei no sofá e fiquei mexendo no celular. Devia ser por volta das 23, quando em meio ao vento forte, ouvi um baque tremendo contra a casa. No começo ignorei, mas alguns momentos depois a energia caiu novamente. Achando que o BAC poderia ter causado a queda, levantei. Parecia ter vindo do lado, perto da cozinha. Então, liguei a lanterna do celular, caminhei até lá e olhei ao redor. Achei que provavelmente era coincidência a energia ter caído logo após o som, mas queria garantir que nada havia acontecido. Não vi nada
e comecei a me afastar. Foi então que minha vida passou diante dos meus olhos. Vi um homem encostado na porta dos fundos. A luz da varanda não estava acesa, então ele estava quase completamente coberto pela escuridão. Eu só conseguia ver seu rosto me observando pela janela. "Ei, garotinha, abre a porta para mim", disse ele, colocando a mão na porta e tentando abri-la. Minha mente ainda não havia processado a situação e eu apenas fiquei parada, olhando para ele. "Garota, abre a porta, por favor." O homem começou a torcir e eu comecei a recuar. Foi então que
o rosto dele se transformou em uma expressão perturbadoramente séria. "Abre a dessa porta vadia", ele gritou, batendo na porta com força várias vezes. Corri de volta para o sofá, peguei meu celular e fui para o corredor, de onde fiquei observando o homem enquanto ligava para a polícia. Meu celular estava com dificuldades de sinal e a chamada caía, mas depois de algumas tentativas consegui pedir ajuda. O homem continuou gritando e batendo na porta, mas eventualmente foi embora. Imagino que a tempestade tenha atrasado a chegada da polícia, pois eles levaram quase 30 minutos para aparecer. Contei o
que consegui. Depois liguei para minha mãe para explicar o que havia acontecido. Ninguém sabia ao certo o que pensar. Ele poderia estar me perseguindo e tentando me manipular para deixá-lo entrar, ou talvez realmente precisasse de ajuda, embora isso fosse improvável. Nunca mais vi aquele cara depois daquela [Música] noite. Escrevo de casa para compartilhar uma experiência que vivia há muitos anos e que ainda permanece comigo. Quando minha mãe caiu e machucou a perna, soube que precisava levá-la ao hospital, mas vivendo em uma área rural, as opções eram poucas. Recomendaram-me um hospital que, embora não fosse muito
conhecido, ficava relativamente perto, chamado Hospital Bezerra de Menezes. A ideia era simples, levá-la, fazerem os exames e voltarmos para casa o mais rápido possível. No entanto, nada saiu como eu esperava. Chegamos ao hospital numa tarde. Por fora, o edifício parecia velho, mas bem cuidado. Tinha um ar antigo, com grandes janelas e paredes de um branco desgastado. A primeira coisa que notei foi o silêncio. E, embora estivesse com alguns carros, quase não havia pessoas entrando ou saindo do local. Ajudei minha mãe a entrar e na recepção fomos atendidos por uma mulher simpática, mas havia algo estranho
em seu jeito de falar. Era como se repetisse frases decoradas quase mecanicamente. Ainda assim, ela nos indicou para onde ir e pediu que esperássemos em uma sala pequena. A sala de espera estava quase vazia. Havia apenas algumas pessoas e todas pareciam estranhamente alheias. como se estivessem em outro mundo. Enquanto esperávamos, percebi que o relógio na parede não se movia. Marcava quatro e 10, mas o ponteiro dos segundos estava parado. Pensei que estivesse quebrado, mas ao verificar meu próprio relógio, notei que o tempo também parecia não avançar. Finalmente fomos chamados e um médico examinou minha mãe.
Ele disse que o machucado não era grave, mas recomendou que ela ficasse em observação. Achei desnecessário, mas não queria arriscar que sua saúde piorasse. Assim concordei. Deram-me um formulário para assinar e um enfermeiro nos acompanhou até um quarto. Enquanto ajudavam minha mãe a se instalar, percebia algo estranho. Não havia janelas no quarto, nem nos corredores. Tudo era iluminado por luzes brancas, muito brilhantes, que davam ao lugar um aspecto artificial. Perguntei ao enfermeiro por não havia janelas e ele simplesmente respondeu que era por segurança. Não quis insistir, mas aquilo continuava a me incomodar. No dia seguinte,
voltei para visitá-la. Ao entrar, notei que a recepcionista era a mesma da tarde anterior, com o mesmo tom mecânico na voz. Perguntei por minha mãe e ela informou que ainda estava em observação. Fui até o quarto, mas ao chegar minha mãe não estava lá. Saí pelo corredor procurando alguém que pudesse me dar uma explicação, mas não havia ninguém. Depois de andar por um tempo, encontrei um médico que parecia ocupado analisando alguns papéis. Perguntei onde estava minha mãe e, sem olhar para mim, ele respondeu que ela provavelmente estava em uma consulta. Esperei no corredor. Os minutos
se transformaram em horas, embora o relógio do hospital continuasse marcando o mesmo horário do dia anterior. Decidi procurá-la por conta própria. Entrei nos quartos, mas em todos encontrei pacientes que pareciam estar em um estado de calma estranha. Alguns estavam acordados, mas não falavam nem se moviam. Outros pareciam dormir, embora sua respiração fosse quase imperceptível. Tentei falar com alguns, mas ninguém respondeu. Depois de um tempo, encontrei uma enfermeira que me olhou com preocupação. Ela disse que eu não deveria estar andando pelo hospital sem permissão e que deveria voltar à minha cadeira. Insisti em saber onde estava
minha mãe e, após hesitar um pouco, ela me levou de volta ao quarto, onde dessa vez minha mãe estava lá deitada na cama. Ela parecia tranquila, mas ao tentar conversar respondeu com frases confusas, como se não se lembrasse de quem eu era. Pedi explicações à enfermeira, mas ela apenas disse que era normal, que o tratamento às vezes causava esse tipo de reação. Tentei discutir, mas ela saiu rapidamente, me deixando sozinho com minha mãe. No dia seguinte, as coisas só ficaram mais estranhas. Parecia que o tempo não passava. A luz era sempre a mesma, os relógios
permaneciam parados e o lugar estava quase deserto. Os poucos pacientes que eu via pareciam melhorar. Inclusive, minha mãe, que havia chegado apenas com um machucado, parecia mais fraca. Decidi levá-la para outro lugar, mas ao falar com os médicos, disseram que não era possível. garantiram que retirá-la do hospital colocaria sua vida em risco. Insisti, mas recebi sempre a mesma resposta. No final daquele dia, enquanto andava buscando respostas, encontrei um homem que parecia tão perdido quanto eu. Perguntei há quanto tempo ele estava ali e ele respondeu que não sabia. Disse que havia trazido a filha por causa
de uma febre, mas que nunca mais tinha saído do hospital. Quando perguntei por não havia ido embora, ele apenas respondeu que não havia como sair. Finalmente, após dias de angústia, encontrei uma porta de emergência que parecia mal vigiada. Naquele momento, o pessoal do hospital estava distraído, então aproveitei a oportunidade. Carreguei minha mãe, que mal conseguia se mover, e com todas as minhas forças a levei até a saída. Foi um processo lento e cheio de medo, mas finalmente conseguimos atravessar aquela porta e sair do hospital. Tenho tentado entender o que aconteceu, mas as respostas sempre escap.
Ainda não compreendo realmente o que ocorreu naquele hospital.