Queridos irmãos e irmãs, primeiro domingo da Quaresma. O Senhor anualmente começa expondo-os nesse tempo ao cenário das Tentações de Jesus. Este ano é o ano C, o ano do Evangelista São Lucas; portanto, a Quaresma tem, digamos assim, uma temática diferente das outros anos.
A temática quaresmal em São Lucas nos levará a uma reflexão mais profunda sobre a conversão, como Deus nos chama a uma mudança mais radical, mais profunda, e, ao mesmo tempo, como Ele tem paciência conosco, como Ele usa de misericórdia para conosco. Então, no primeiro domingo e no segundo domingo seguimos a estrutura tradicional da Quaresma: as tentações no primeiro domingo, no segundo domingo a transfiguração do Senhor e, depois, nós teremos no terceiro domingo a parábola da Figueira estéreo, no quarto domingo a parábola do filho pródigo e, no quinto domingo, a cena da mulher adúltera perdoada por Jesus. Tudo isso vai nos conduzir à Semana Santa, que é justamente, de algum modo, aqui aludida no final do.
. . Ora, o texto de São Lucas começa dizendo: "Jesus, cheio do Espírito Santo", é uma característica de São Lucas; ele sempre salienta o papel do Espírito Santo na obra redentora de Cristo.
Voltou do Jordão e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. Essa construção, ainda mais porque no começo do versículo 2 ele diz: "Ali era tentado pelo diabo durante 40 dias", nos mostra que o Espírito Santo levou Cristo ao deserto, enquanto Cristo era tentado pelo diabo. É um pouco diferente da narração de São Mateus, que coloca as tentações depois dos 40 dias.
São Lucas mostra como, nos 40 dias, o Espírito nos conduz a uma luta. É claro que aqui há evocações do Antigo Testamento; Deus leva o seu povo pro deserto. E o que acontece no deserto?
Provação, tentação. O deserto é o lugar da morte, é o lugar também da profunda ambiguidade: o dia é muito quente, as noites muito frias; é o lugar em que aparecem serpentes, em que existem algumas feras perigosas. Ou seja, o deserto é o lugar da ambivalência, o lugar da tentação, o lugar em que nós somos provados.
O Espírito Santo conduz Jesus ao deserto; ele faz como que um trajeto que evoca os 40 anos de peregrinação do povo do Egito até a Terra Prometida e, ao mesmo tempo, nesses 40 dias, chama para si a luta que é característica desse tempo de provação. "Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome. " Não comeu nada nos 40 dias, ele jejuou.
Os 40 dias nós temos duas recorrências no Velho Testamento que nos colocam em circunstâncias semelhantes: Moisés sobe para o monte, jejua ali 40 dias antes de receber a lei de Deus, e Elias, depois de comer o pão do fortalecimento trazido-lhe pelo anjo, jejua 40 dias porque vai 40 dias e 40 noites andando pelo deserto até chegar ao Monte Horebe, onde Deus se lhe revelará. O diabo então disse a Jesus: "Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão. " O diabo, a palavra diábolos, em grego, é a junção de duas palavras: bolé, que é jogar, e dia, que é jogar contra.
Então, o diabo é aquele que nos atrapalha, é aquele que se coloca no meio do nosso caminho para criar obstáculos e dificuldades para que nós cumpramos a vontade de Deus. No tempo de Jesus, esse nome diábolos designava a Satanás no sentido de o príncipe dos demônios. "Se és Filho de Deus", essa pergunta é cheia de escárnio, é um desaforo, é uma confrontação.
"Se és Filho de Deus", ou seja, o ataque é direcionado à condição de Filho que Jesus tem. Assim como, no livro do Gênesis, o diabo se apresenta a Eva na serpente e começa a colocar dúvidas em sua cabeça sobre o que Deus queria, a identidade de Deus no sentido de que Ele não quer que vocês comam do fruto porque vocês vão se tornar conhecedores do bem e do mal. Ou seja, assim como naquela situação o demônio colocou dúvidas na cabeça de Eva, aqui ele quer colocar dúvidas em Cristo sobre a sua filiação: "Se és Filho de Deus, vamos lá, mostra que és Filho de Deus.
" Se és Filho de Deus, tenta colocar à prova o teu pai para ver se ele realmente é o teu pai. E, mais uma vez, as três tentações são evocações das tentações que o povo de Israel passou no Egito: "Manda que esta pedra se mude em pão. " O povo reclamou com Moisés de que não tinha pão: "Nós não temos pão.
" O povo se rebelou contra Moisés, contra Arão, contra Deus, e Deus lhes mandou maná, o pão do céu. Jesus não cai na mesma armadilha; ele responde nas três vezes com três versículos do Deuteronômio, que é o último livro da Torá e que contém as últimas recomendações de Moisés antes que ele morra. Então, ele diz: "A Escritura diz: Não só de pão vive o homem.
" Jesus, em São Lucas, não acrescenta a frase seguinte que está em São Mateus: "Mas de toda a palavra da boca de Deus. " Ele simplesmente diz: "Não só de pão vive o homem. " Ou seja, o que São Lucas quer salientar é que Jesus não cede à tentação; ele não teme colocar a sua vida em risco.
Ele não tem nenhum desejo de autopreservação; ele veio cumprir os desígnios do Pai a seu respeito e a respeito de todos nós. Então, vem a segunda tentação: "O diabo levou Jesus para o alto. " São Mateus diz que o levou para um altíssimo monte.
São Lucas não diz que levou Jesus para o alto e mostrou-lhe por um instante — talvez a melhor tradução seria "num instante" — todos os reinos do mundo. Então, o que nós podemos imaginar é uma espécie de ascensão mística em que ele lhe mostra, em um segundo, os reinos do mundo inteiro como uma ideia sobre. .
. Os reinos do mundo inteiro, e lhe disse: "Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. " Esse tipo de afirmação, "posso dá-lo a quem eu quiser", é característico dos documentos jurídicos do tempo de Jesus.
Ou seja, o que o demônio está dizendo, o que o diabo está dizendo, é que ele recebeu esse mundo de Adão com papel passado; ele tem direitos jurídicos de estar aqui. Ou seja, ele é o Deus deste mundo e esse mundo lhe pertence por direito. Adão cometeu um crime de alta traição, e nunca é demais lembrar que o texto anterior a este é o da genealogia de Jesus, que começa em Jesus e termina em Adão.
Ou seja, evoca o seu direito por causa do pecado e continua: "Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu. " Ou seja, é a tentação de adorar ao diabo para ter todos os reinos da Terra em suas mãos. Jesus respondeu: "A Escritura diz: Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
" Mais uma vez, ele responde com o versículo do Deuteronômio. Esse versículo está no contexto em que Moisés adverte o povo para que não se renda à prática religiosa dos povos das terras que eles irão ocupar, ou seja, os povos cananeus. Ele está dizendo: "Não adorem os seus deuses, não lhes prestem cultos; adorarás apenas ao Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
" Mais uma vez, ele reafirma a sua fidelidade única e exclusiva a YHWH, ao Deus de nossos pais. É a tentação da adoração; ele não cai em idolatria. Depois, o diabo levou Jesus a Jerusalém.
Interessante, porque na narração de São Mateus, essas duas tentações estão invertidas; ou seja, ele leva Jesus ao pináculo do templo e depois a um alto monte. Em Lucas, ao contrário, ele leva Jesus ao alto e depois, por fim, o leva a Jerusalém. Por que São Lucas faz isso?
Ele faz isso porque Jerusalém é o ponto de chegada da missão de Jesus. É lá onde Ele dará sua vida, é a cidade que o condenará à morte. Portanto, quando ele o leva a Jerusalém, São Lucas está querendo mostrar como aquela cidade é o clímax da missão de Cristo, o clímax, portanto, da Semana Santa.
Nós estamos caminhando para Jerusalém; no Domingo de Ramos, entraremos triunfalmente com Cristo ali. E mais uma vez ele repete: "Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo. " Essa parte mais alta do templo que São Lucas aqui menciona não é propriamente uma torre.
O Templo de Jerusalém tinha muros, e há uma parte desses muros que está no alto da chamada torrente de Cedron. Uma ribanceira chama-se torrente porque está entre dois montes: o Monte Sião e o Monte das Oliveiras. Então, quando chove, a água escorre para lá e forma uma torrente.
Então, do alto desse muro, ele diz: "Joga daqui para baixo, joga daqui para baixo, porque a Escritura diz: Deus ordenará os seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado; e mais ainda, eles te levarão nas mãos para que não tropeces em alguma pedra. " O diabo cita o Salmo 91, segundo a tradução do Setenta, que é a tradução grega, apresentando-se como um excelente exegeta. Só que não!
Vejam como não basta você declarar a Bíblia; você pode citar um versículo retirado do seu contexto para promover o indizível. O que o diabo faz aqui, tentando copiar Cristo que vence com as Escrituras, é entrar numa espécie de debate rabínico. O diabo se apresenta como um rabino que entra em discussão com o seu aluno sobre a interpretação de um texto da Escritura.
Jesus, porém, respondeu: "A Escritura diz: Não tentarás o Senhor teu Deus. " Mais uma vez, um texto do Deuteronômio. Nós temos um episódio muito interessante, que é quando falta água ao povo de Israel.
Então, eles começam a dizer que Deus os levou para lá para que eles morram de sede, que Deus os levou para lá para que eles padeçam e sejam vergonha para os outros povos. Mas Jesus não cai nessa tentação; ele não quer tentar a Deus, colocando a sua vida em risco. Se na primeira tentação ele não tem medo de entregar a sua vida, na última tentação ele também não vai colocar a sua vida em risco simplesmente por um diletantismo, colocando Deus à prova.
Quanta gente faz isso, né? Coloca Deus à prova! Existem até alguns pregadores que dizem isso: "Faz a prova, coloca tudo aqui e veja se Deus não é Deus.
" Se a tua fé é a fé, a Escritura diz: "Não tentarás o Senhor teu Deus. " Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus para retornar no tempo oportuno. Que tempo oportuno é esse?
É o tempo da Paixão, em que ele voltará para atacar a Cristo. Ora, queridos irmãos, há tantas coisas que se poderiam dizer sobre isso, mas eu queria apenas, a partir das três tentações, tentar mostrar o quanto a tentação sempre coloca em cheque a nossa filiação divina. A primeira tentação é aquela que coloca em cheque a nossa filiação divina, porque nós queremos tirar um bem para nós mesmos, um proveito próprio, preservar a nossa vida.
A verdadeira filiação divina em Cristo é de quem diz: "Eu não amo a minha vida mais do que a morte. " É a confissão que os santos fazem no livro do Apocalipse, quando dizem: "Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho, porque não amaram a sua vida mais do que a morte. " Jesus diz no Evangelho de São João: "Ninguém tira minha vida; eu a dou por mim mesmo.
" E, no próprio Evangelho de São Lucas: "Quem ama a sua vida vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por amor de mim, esse a ganhará. " Ou seja, o medo de perder a vida nos torna vulneráveis aos ataques do diabo. Nós não podemos ter medo de perder a vida porque a nossa vida está nas mãos de Deus; ela pertence a Cristo.
São Paulo diz que a nossa vida está escondida com Cristo em Deus. Nós precisamos tirar essa arma do diabo, a arma desse amor a nós mesmos. Em segundo lugar, a filiação divina significa olhar sempre para o Pai e nunca se distrair com os outros deuses.
Não tem, aliás: "Adorarás ao Senhor teu Deus e só a Ele servirás; adorarás somente a Ele. " Ou seja, quantas vezes nós ficamos olhando para as pessoas, para as circunstâncias? Vamos falar a verdade: existem pessoas que parecem ser usadas pelo diabo para trazer à tona o nosso pior lado, para nos enlouquecerem.
Nós não podemos cair nisso, e o único modo de não cair nisso é, como Jesus, olhando para o Pai, de onde procede a nossa filiação. Se nós perdermos o contato com o Pai, nós faremos como o filho pródigo, como veremos daqui a quatro semanas. Nós, embora da casa do Pai, porque nós não olhamos mais para Ele, realizamos uma espécie de assassinato edípico: nós matamos o Pai da nossa consciência.
Não! Nós temos que olhar para Ele; é d'Ele que procede a nossa filiação. Como diz São Tiago, é do Pai das Luzes que procede todo dom perfeito e toda boa dádiva.
E, por último, ser filho de Deus significa nunca tentar o Senhor, ou seja, usar a própria mente, o próprio raciocínio, a nossa própria capacidade de perceber que não há perigos inúteis a se percorrer. Nós precisamos confiar no Senhor com todo o nosso coração. Se Ele nos leva para o deserto, Ele vai nos dar água; se Ele nos leva para o deserto e nos faz passar pela prova, é porque Ele já está nos dando o remédio para a tentação.
As três tentações mostram que um filho de Deus sempre não ama sua vida em primeiro lugar, sempre olha para o Pai e exclusivamente para o Pai, e sempre confia no Pai a ponto de jamais tentá-Lo, de jamais colocá-Lo contra a parede. Vamos permitir ao Senhor, nesse tempo da Quaresma, que Ele nos leve por caminhos de filiação divina; que seja uma Quaresma de filhos de Deus, em que nós redescobramos a nossa posição. No final desse tempo, nós iremos renovar o nosso batismo, que nos tornou filhos de Deus na noite do Sábado Santo.
E aí, nessa nova condição de renascidos pelo batismo, nós poderemos desfrutar da alegria e da glória de sermos filhos de Deus. Mas nós temos que lutar; a nossa filiação está continuamente sendo atacada. Há um escárnio espiritual contra o fato de que Deus nos fez Seus filhos.
Nós, que estamos aqui no deserto dessa vida, lutando, jamais cedamos às provocações do diabo, que nos diz: "Nossa, Deus é Teu Pai! Você está aí desempregado? Deus é o Teu Pai!
E você está passando por essa dificuldade econômica? Deus é Teu Pai! E você está com essa doença?
Deus é Teu Pai! E você não tem nada enquanto os ímpios têm o mundo inteiro nas mãos deles? Deus é Teu Pai!
E você está aí sem conseguir dar um passo à frente? Você não se arrisca? " Não, não caiamos nesse tipo de cilada, mas sejamos como Cristo, que permaneceu firme na sua filiação, ainda quando ela foi confrontada.