Amém, amém. São Tomás de Aquino, rogai por nós. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre. Amém. Muito bom! Então, é um prazer estar com vocês aqui mais uma vez. Hoje, nós temos como título dessa palestra, né, "São Tomás de Aquino como antídoto para a loucura moderna". E, no fundo, o meu objetivo aqui é tentar justificar o título, ou seja, por que São Tomás de Aquino é um antídoto? Em que sentido São Tomás aqui pode ser o antídoto? E, é claro, não estou falando da pessoa de
São Tomás de Aquino, estou falando da filosofia e, mais do que da filosofia, eu estou falando sobre a forma de pensar que nós aprendemos com São Tomás. Só que, para isso, eu preciso... a gente precisa se situar no que eu quero, no que a gente chama aqui de loucura moderna ou, se nós quisermos dizê-lo de um modo um pouco menos, por assim dizer, direto: quais são as limitações que caracterizam... tá conseguindo gravar? Não entrou com a tir? Entrou? Deu certo, né? Então, se nós pudermos dizer de um modo um pouco mais direto, aliás, um pouco
menos direto, quais são os vícios de percepção que entraram? Os ruídos de percepção que entraram em nossa mentalidade moderna e que, talvez, e, no meu caso, eu não digo talvez, eu digo com certeza, condicionam de tal modo a nossa forma de pensar que nós não conseguimos entender a realidade ou nos dissociam dela. O que é característico da loucura? Um louco é um sujeito que não tem um relacionamento correto com a realidade. Então, por exemplo, ele está vendo coisas ou ele está exagerando aquilo que vê ou ele tem respostas desproporcionais aos estímulos externos. Isso é um
louco, né? Então, o que a gente quer dizer quando a gente fala de loucura moderna? O que eu estou precisamente querendo falar é que existe um tipo de inversão da percepção que faz com que as pessoas enxerguem a realidade, por assim dizer, de ponta-cabeça. Por que isso acontece? Qual é a origem disso? Ou, se nós pudermos, se nós pudéssemos rastrear como isso aconteceu, de onde isso partiu e qual é a matriz desse engano? Eu sempre gosto de começar fazendo uma espécie de excursos histórico porque "veritas é filha temporis", a verdade é filha do tempo, né?
E a gente precisa ver um pouco como se desenvolveu esse, digamos, esse erro de procedimento até que produzisse esse resultado que nós temos nos nossos olhos. E, se nós pudéssemos rastrear, nós chegaríamos ali ao final da Idade Média ou ao começo do final da Idade Média, no momento em que nós temos o aparecimento de algumas seitas de origem gnóstica. O que eu quero dizer com isso, né? Em primeiro lugar, origem gnóstica. O que é a gnose? A gnose é um tipo de filosofia, religiosidade, até de espiritualidade que está baseada numa experiência que todos nós temos,
que é a experiência de que nós não somos exatamente o nosso corpo. Ou seja, existe em nós algo que transcende a realidade do nosso corpo, e o nosso corpo sempre é percebido com algum déficit de autocompreensão. Ou seja, nós nunca estamos plenamente felizes com o nosso corpo. Não existe uma pessoa que diga que está feliz com o seu corpo de maneira plena, né? Qualquer esteticista sabe disso, qualquer pessoa que trabalha com estética sabe disso, com estética corporal. Mas todos nós temos a experiência de nos sentirmos isolados no nosso próprio corpo ou de que, de alguma
maneira, o nosso corpo nos separa dos demais. Por exemplo, quando Freud, na minha opinião enganosamente, disse que a pulsão fundamental da conduta humana é o prazer, é a libido. E, na minha opinião, não pode ser assim porque ninguém busca o prazer por si mesmo. É impossível. Você não tem o prazer simplesmente pela ideia abstrata de prazer. "Ah, eu quero um prazer", né? Você sempre, para obter prazer, se volta a um objeto. Que objeto é esse? É um objeto que eu quero tocar, é um objeto que eu quero que me toque. Ou seja, eu quero superar
a sensação de isolamento corporal. Eu preciso superar aquilo. Então, a gnose está baseada nesta experiência fundamental que todos nós temos. A Igreja sempre entendeu que essa é uma das marcas características do pecado original. Quer dizer, nós temos um descompasso psicológico em nós, resultante dessa desordem introduzida em nós pelo pecado. São Paulo mesmo diz, no final do capítulo 7 da carta aos Romanos: "Quem me livrará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, etc." Tal, nós gememos em nosso corpo, ele diz no capítulo 8, aguardando o dia do Senhor. Então, é uma experiência fundamental que
todo o ser humano tem. Qual é o problema? Qual é? É que a gnose encontra uma explicação para isso que é tão errada quanto atrativa: ela diz que a matéria é má. A causa de que nós estamos, digamos assim, com essa sensação de inadequação é a maldade intrínseca da matéria. Portanto, a gnose sempre tem um fundo de exacerbado dualismo: o espírito é bom, a matéria é má; a matéria é péssima e, portanto, a matéria não foi criada pela divindade. A matéria foi criada por um Deus mau, a quem chamam de Demiurgo. Esse Deus mau criou
a matéria como elemento desagregador da divindade. E, na verdade, a divindade está em cada um de nós de modo partitivo; ou seja, em cada um de nós, por natureza, haveria uma espécie de centelha divina. E essa centelha divina... Verdade, outra coisa não é senão uma partícula da divindade. A divindade teria explodido, pelo, pelo... digamos assim, pelo princípio da não contradição, né? O demiurgo também é uma partícula da divindade, mas ele se volta para a divindade, cria o princípio de identidade dizendo: "Eu sou, eu sou; portanto, os outros não sou eu." E a partir daí, as
partículas da divindade se explodiram e foram encerradas pelo demiurgo em uma matéria. Então, Deus está nesse copo, Deus está nessa mesa, Deus está no tijolo, Deus está na planta. Do mesmo modo, é a mesma partícula divina que está presente em todos os entes. Então, você teria um princípio unívoco, que seria a partícula divina; e um princípio equívoco, que seria a matéria. A matéria nos separa, e aquilo que nos une é essa partícula divina que estaria em nós. Porém, o elemento primordial, o que gera essa psicologia agnóstica, é o elemento da maldade: a matéria é ruim,
a matéria nos segrega, a matéria nos separa, a matéria nos divide, nos distancia. É uma barreira entre nós. Portanto, a matéria, sendo má, ela tem que ser supressa. Ora, e esse tipo de convicção que está por trás daquelas seitas que surgiram no final da Idade Média, por exemplo, a seita dos cátaros e a seita dos albigenses, não é à toa que São Domingos criou a Ordem dos Pregadores para destruir a heresia cátara. E a Albigense não foi um excesso da Divina Providência. A Divina Providência estava mostrando para a Igreja e para nós todos, até hoje,
o quanto aquela heresia não é apenas uma heresia: ela é um falseamento da percepção humana. É algo mais profundo. A heresia é uma ideia errada. Ali, você não tem uma heresia, você tem uma psicologia que é introjetada, reforçada, exacerbada na mente das pessoas. E essa psicologia, uma vez que entra no pensamento, ela muda a percepção da realidade. Como isso acontece? Então, os cátaros... A diferença entre os cátaros e albigenses é praticamente nenhuma. Os albigenses são os cátaros do Monte Albi, ali no sul da França. Então, é só isso. Mas, digamos, o movimento espiritualista é o
mesmo. Então, o que acontece naquele momento que faz as pessoas irem para o catarismo? De certo modo, o catarismo é uma reação à crise da Igreja. Naquele momento, nós estávamos em um momento profundamente difícil. Nós temos o século de Ferro, século X. Esses dias, eu até escrevi um texto sobre uma nota sobre eclesiologia em que eu mencionava, ali, à guisa de exemplo, o século X. Falava das prostitutas que governavam Roma, etc. Aquela coisa horrível! Depois, tem toda a polêmica das investiduras contra as quais se insurgiu o Papa. Aliás, o Papa São Gregório VI, quer dizer,
retirou do Imperador a prerrogativa de nomeações e coisas do tipo. E depois surgem as cruzadas, e depois acontece o surgimento das ordens mendicantes. Enfim, existem vários movimentos de reação a uma espécie de mercantilização da Igreja. A Igreja tinha se unido com o poder temporal e estava bastante prostituída em função do poder temporal. Papas que eram muito mais governantes temporais do que propriamente chefes da Igreja, no sentido de que estavam mais preocupados com coisas, digamos, da ordem da matéria do que das coisas espirituais. Então, surge um movimento de contestação que vai ganhando força e que, com
essas ideias totalmente corrompidas... O que eles querem fazer? Eles querem levar a Igreja para um caminho de espiritualidade. Ou seja, a matéria é má, então a Igreja tem que ter riquezas, a Igreja tem que ser pobre, ela tem que se despojar das suas riquezas. O mundo é mau, então nós temos que nos afastar completamente do mundo, ter uma vida despida. Os cátaros não aceitavam os três primeiros Evangelhos; eles aceitavam apenas o Evangelho de São João. Então, eles tinham um rito. Eles tinham abolido os sacramentos, porque os sacramentos têm matéria. Como a matéria é má, então
não tem sentido que você vai jogar a matéria na cabeça da criança, água, e você vai dizer a forma do batismo e a criança vai receber a graça. Isso é loucura! Ou que você vai comer algo que é o pão que se converteu no corpo de Cristo, o vinho que se converteu no sangue de Cristo. Não tem o mínimo sentido! Então, eles abolem os sacramentos e eles têm apenas um rito, que é um rito que consiste em a pessoa fazer a renúncia. Depois, se abria sobre a cabeça dela o Evangelho de São João e se
invocava o Espírito Santo sobre aquela pessoa, e pronto. Apenas isso era a "cátara". Um pouco mais... um pouco mais avançada, depois havia outros ritos. O rito mais sagrado entre os cátaros era o rito do suicídio. Mas não suicídio através de uma faca que você enfia em você, porque a faca é matéria. Se você enfia uma faca em você, você está... então, é o suicídio por inanição: é morrer de fraqueza e fome. Então, você perdendo matéria, perdendo matéria, até morrer. Isso que está presente na ordem individual também vale para a ordem coletiva. Ou seja, o grande
problema pelo qual Cristo não volta. Por que não acontece logo o fim do mundo? É porque o ser humano não entendeu. Os cátaros acreditam que, enquanto houver reprodução humana, não haverá o fim do mundo, porque o ser humano está procriando, ele está se multiplicando. Então, eles proíbem o casamento justamente para que não houvesse a propagação da espécie, não houvesse multiplicação de matéria, não surgissem novos seres humanos. E aí, com a humanidade toda morrendo e acabando, Cristo é obrigado a voltar. Você tem que ter o Juízo Final, porque você obriga, digamos assim, a história a caminhar
para seu fim. Então, a visão cátara sobre o mundo... É extremamente negativa, mas não apenas isso: é uma visão negativa que, ademais, é altamente destrutiva. Você tem que destruir o mundo; você tem que acelerar a destruição do mundo. No fundo, o bem só pode vir do mal; o bem só pode vir da destruição. Só a destruição vai levar à libertação. Você tem que derrubar a ordem estabelecida; você tem que acabar com as coisas tais como elas estão, porque tudo o que existiu até agora não passa de mal, de ruim. O bem está pra frente, o
bem está no futuro. Portanto, vocês vejam: a perspectiva gnóstica é uma perspectiva extremamente cética em relação ao presente e ao passado e profundamente utopista em relação ao futuro. Então, a nossa ação presente consiste em destruir o que existe, porque da destruição vai surgir um mundo novo que o Cristo vai inaugurar, que é o milênio, um milênio maravilhoso. Uma das heresias que também se propagou foi a heresia da Igreja Espiritual do Joaquim de Fiore. Ele dizia que o Antigo Testamento era do Pai, o Novo Testamento era do Filho, então você tem a Encarnação, os sacramentos etc.,
mas vai vir a era do Espírito Santo. E na era do Espírito Santo vai ser uma era em que ninguém vai casar; todos vão ser frades franciscanos, ninguém vai ter nada, todo mundo vai viver numa pobreza e numa felicidade total. Você não vai ter mais sacramentos, você não vai ter mais igreja. Na era do Espírito Santo, Joaquim de Fiore propõe a ideia de que nós teremos o paraíso na terra. Então, todos os olhos estão voltados não pra eternidade, mas para o desenvolvimento imanente da história, que vai conduzir a um progresso sempre mais perfeito do que
a ordem anterior. Então, vocês vejam: na psicologia gnóstica, o movimento da história é um movimento evolutivo. Por quê? Porque a partícula divina foi encerrada na matéria, mas ela é viva. Então, o que acontece? A pedra, o mineral, a não vida vai se tornar vida de algum modo. Isso é uma crença; na verdade, pessoal apresenta isso como ciência, mas é uma crença: a não vida se torna viva. Então, você tem as primeiras moléculas, as primeiras células; depois, você tem o surgimento dos vegetais; depois, de alguma maneira, os vegetais se tornam animais, e de alguma maneira os
animais vão se aperfeiçoando, até que aparece o ser humano. Então, já aí, já não é mais a passagem da não vida pra vida, mas é da vida pra vida consciente, pra vida com capacidade de compreensão. E aí o homem vai progredindo também ao longo da história até se tornar o super-homem, e depois de se tornar um super-homem, ele vai se tornar Deus; ele vai chegar à divindade; ele vai atingir a divindade. Então, o pensamento gnóstico necessariamente é evolutivo, evolucionista, por assim dizer, e, portanto, sempre o futuro é melhor do que o passado, a despeito de
que o mundo tem piorado terrivelmente. Não é que o mundo está melhor; a nossa experiência é o contrário disso. E mais: nós não temos certeza nenhuma em relação ao futuro, a verdade é essa. Nós só temos certeza real sobre o passado. Mas vejam, aqui estou começando a mostrar a inversão: o gnóstico pensa que a certeza está no futuro; ele crê no futuro de uma maneira completamente utopista. Ele é um entusiasta do futuro, e ele se reveste da autoridade do futuro para julgar o passado e o presente. Então, eu me lembro de uma frase que o
Horkheimer escreveu, se não me engano, para Polos acerca de um candidato a ser professor na Escola de Frankfurt. E aí ele disse: "Olha, ele tem um problema, e o problema é que ele não tem aquele olhar aguçado de ódio pela realidade, por tudo que existe." Esse é o problema que ele tem. A experiência gnóstica é um olhar aguçado de ódio pela realidade, uma postura aborrecida, descontente, e sempre preocupada com o atraso. Nós estamos em atraso; nós temos que acelerar a marcha da destruição do que existe para que venha algo novo. Essa é a perspectiva. Então,
você tem uma inversão: o futuro incerto se torna certíssimo, e o presente certo, o passado certo, as experiências consolidadas certas, elas são aborrecíveis em nome de algo que nós não sabemos nem o que é, mas que é melhor do que o que está aí, que nós não sabemos se vai dar certo, mas que com certeza é melhor do que o que está aí e vai dar certo. Essa inversão é uma inversão psicótica, porque eu estou abolindo a percepção que eu tenho da realidade. Estou colocando no seu lugar uma ideia que, na filosofia de Kant, isso
vai chegar à sua expressão mais bem acabada, porque Kant abole praticamente a validade do conhecimento sensível ou da percepção sensível. Tudo que existe é abstração; a abstração é a projeção das formas do conhecimento sobre a percepção caótica da realidade e a formação, por assim dizer, totalmente subjetiva de ideias, que em nós acabam sendo as mesmas não porque a realidade é a mesma, mas porque a nossa estrutura cognitiva é supostamente a mesma. Portanto, a verdade já não é filha da percepção da realidade; a verdade é filha do consenso entre nós. E daí surge a noção positivista
que preside toda a nossa maneira de lidar com o mundo hoje em dia. Então, por exemplo, se os jornais, se a comunidade científica, se o consenso acadêmico... Diz uma coisa: aquilo é dogma. Ainda que os meus olhos digam o contrário, ainda que minha percepção direta diga o contrário, então você perceber e dizer as coisas tais como você está vendo se tornou um crime. E isso nos vai tornando cada vez mais expropriados da nossa capacidade de perceber e de dizer, porque a verbalização nada mais é do que a expressão das nossas impressões. Agora, se eu criminalizo
as impressões através da criminalização das expressões, e eu imponho à direita um tipo de modo de falar, modo de se comportar, modo eticamente correto, politicamente correto de ser, eu já coloquei sobre a pessoa uma espécie de abolição da percepção. Ela já não percebe mais nada por si mesma; ela vai enlouquecendo, ela se torna vítima da autopersuasão histérica. Quer dizer, ela tem que se autopersuadir de que o que ela está vendo não é real, que o que ela está vendo é aquilo que vem pronto do consenso exterior. E isso tem tudo a ver com o fato
de que, para a gnose, a percepção externa, o mundo material, o mundo real, é mau; ele é enganoso. Você estar no mundo, no mundo real, no mundo material, é você estar em um mundo que está te enganando. Ele é mal. A verdade não está aqui; ela não está na realidade. A verdade está na anamnese coletiva das partículas divinas esparsas. Na medida em que nós nos iluminamos mutuamente, vamos voltando à unidade primordial puríssima. Veja como isso tem tudo a ver com Kant. Por exemplo, ao passo que, por outro lado, em relação ao presente, a absoluta certeza
em relação ao futuro tem tudo a ver com a filosofia de Hegel, porque o que é a filosofia de Hegel? É o espírito encerrado na história. Ele é imanente. A história está progressivamente se tornando cada vez mais espiritual; portanto, cada vez mais livre, em um processo dialético, ou seja, em um processo de destruição das premissas e das antíteses para o surgimento de algo novo. O processo dialético é um processo de revolução e destruição. Ou seja, com isto aqui você tem a fórmula para enlouquecer o mundo, porque, de um lado, você abole toda a fonte de
certeza do conhecimento individual, que é o único que deveria existir; é o único que existe, que só a consciência individual é capaz de conhecer. A coletividade não conhece, por definição. Então, eu faço a abolição total da percepção individual, a substituo pela percepção coletiva. Então, as únicas certezas que eu tenho eu tiro do indivíduo e, por outro lado, eu jogo no indivíduo a única certeza que ele não pode ter, que é a certeza absoluta do futuro, que é a crença cega de que o progresso vai se dar de maneira inexorável. E tudo que existe tem que
desaparecer; tudo aquilo que é passado é obsoleto. Não importa o contested pela experiência; isso não importa. O acúmulo de conhecimento que nós fizemos ao longo da nossa história, a única coisa que importa é que nós temos que destruir tudo, senão o novo não vai aparecer. E só o novo é bom; só o novo é melhor. Nós percebemos isso em diversos aspectos da cultura. Então veja, por exemplo, nós todos temos hoje em dia medo do mundo, medo da matéria. Eu vou pegar aqui uma coisa muito simples: o quanto brincam conosco em relação ao mundo nutricional. Nós
temos pavor de comer; isso está em nós. Eu sou um homem gordo e vivo isso todo dia: "isso não pode porque não sei o quê, isso aqui não pode porque tem açúcar, isso não pode porque tem gordura, isso não pode porque tem sal, isso não pode porque tem carboidrato". Então, quais são os alimentos proibidos? Quais são os alimentos permitidos? E aquele inferno, né? Você tem medo da matéria! Você tem medo! Mesmo, por exemplo, o vício moderno dos modernos. O senhor Isaac Newton criou a ideia de que a forma substancial não existe. O que é a
forma substancial? A forma substancial é justamente o que há de indivisível na coisa. Então, você tem um gato; o gato não se divide. A matéria sim, se divide. A matéria é divisiva; a substância não. A substância, em si mesma, é indivisível. Ela pode se corromper ou pode ser gerada, mas a substância é a substância. Então, por exemplo, se eu quebrar esse copo, eu não tenho mais copo, porque a substância, em si mesma, é indivisível. Então veja o que acontece: os modernos aboliram a noção de substância, porque o que eles veem é a matéria. Quer dizer,
a matéria dimensiva, aquilo que São Tomás chamava de "corpo denso". O inteiro pode ser medido, pesado, calculado etc. E, sobretudo, ele é divisível. Essa característica é primordial da matéria. Então, o que você vai fazendo? Você vai quebrando, quebrando, quebrando, quebrando, quebrando, quebrando, quebrando. Aí você chega à conclusão de que não existe mais nada. Isto carrega a psicologia agnóstica, na medida em que eu tenho que destruir mesmo. Eu tenho que, a partir daquilo, entender a realidade. Então, a física moderna tem muito disso. Por exemplo, abolida a noção de substância, eu digo: "não, mas veja bem, eu
não posso conhecer um gato". Por que eu não posso conhecer o gato? Porque não, eu estou vendo o gato por fora; eu estou vendo o gato apenas na sua manifestação exterior. Para conhecer... O gato. Eu tenho que abrir o gato. Eu tenho que cortar o gato. Você já não tem mais um gato? Então, você vai conhecer o gato pelo não-gato. Você vai conhecer o gato a partir da destruição do gato, coisa que, por exemplo, os antigos não tinham esse tipo de problema. Né? Que eles dizem: "Isso aqui é isso, aquilo é aquilo", enquanto que hoje
ninguém mais tem certeza de que nada realmente é alguma coisa, porque tudo é confundido com a, digamos assim, a sua percepção da matéria. Ou seja, tudo pode ser explicado a partir da sua materialidade e, como a materialidade é má, e portanto só nos resta dividi-la. Dividi-la, dividi-la, dividi-la, dividi-la, dividi-la: dividir para conhecer. E se chega lá embaixo, tem o quê? Tem a matéria, a matéria pura, a matéria assinalada pela quantidade, conforme o que São Tomás chamava. Mas o que é a matéria só assinalada pela quantidade? Ninguém sabe o que é, e nem é alguma coisa
propriamente. Então vejam aqui: você tem a fórmula para enlouquecer o mundo, a abolição da percepção individual como fonte de ser, e a introjeção de certezas históricas coletivas escatológicas, das quais ninguém pode ter certeza. E é isso que está por detrás da psicologia moderna contemporânea. Então, veja, por exemplo, eu vejo isso nitidamente na igreja: sempre o que vem no futuro é melhor do que o que está no passado. Então, há um ódio e uma intolerância a tudo aquilo que se foi, enquanto que há um entusiasmo extraordinário para aquilo que vem pela frente. Então a mentalidade progressista,
ela é profundamente destrutiva. Eu via, por exemplo, esses dias a discussão sobre esse PL do aborto, né? E ontem, grupos de padres progressistas e bispos também vieram à luz para dizer que são contra o PL, porque esse PL é absurdo por equiparar o aborto ao homicídio. Isso é loucura! Padres e bispos que vêm a público para ser contra um PL que é contra o aborto, e eles dizem: "Não somos contra o aborto, mas esse PL é absurdo". O que está por trás disso? Qual é a psicologia que está por trás disso? A psicologia é o
seguinte: nós não podemos mais definir a moral da sociedade. O estado é laico, a igreja tem que ser silenciada, a igreja tem que ser emudecida. A cristandade, essa ideia de que a igreja define os rumos da civilização, isso é uma ideia antiga, passada; a igreja não tem mais essa função. A igreja tem que ser um espaço de congregação de pessoas de boa vontade que queiram se ajudar mutuamente. Fora com os dogmas, fora com os sacramentos, fora com as convicções, fora com a moral, fora com os mandamentos, fora com tudo isso! Isso tudo tem que acabar.
Essa igreja tem que ser destruída mesmo; ela não é boa, ela é dominadora, ela é cesaropapista. Ela é a lógica da dominação. Nós temos que subjulgar essa lógica da dominação a partir da lógica do desfazimento da igreja, que se some, que desaparece, que já não existe mais. No fundo, é isso. Essa psicologia está entranhada na alma do progressista. Quando você fala: "Não, mas a tradição da igreja diz assim, pá pá pá pá pá", o que ele diz? "Mas quem diz que é assim?" A gente pegou a escritura e nós fomos dividindo a escritura, como a
gente pega um gato e vai dividindo, dividindo, dividindo. Então, pelo método histórico crítico, dividiu, dividiu, dividiu, dividiu. O que tem por debaixo? Nada. A gente fez a história dos dogmas, dividiu, dividiu, dividiu, dividiu. O que tem por baixo? Nada. Então, não tem certeza nenhuma. Tudo aquilo que a gente pode chamar de certeza não existe. A única coisa que existe é o quê? Nós temos certeza de que o futuro é melhor do que o passado e que nós, portanto, temos que abolir tudo. Tudo aquilo que nós temos como certeza, isso tudo não passa de fundamentalismo. Não
passa de, eh, eh, eh, de dogmatismo, de obscurantismo. Temos que substituir isso. Antigamente, era pela razão, por crenças racionais. Atualmente, como a razão na pós-modernidade também está sendo abolida em favor dessa espécie de intuicionismo esotérico, né? Dessa espécie de capacidade divinatória pela percepção meio que mistificada do, do, do, das potências humanas, etc. Então, até a razão está sendo abolida, e só o que resta é a vontade bruta, é a vontade pura. A gente vê isso, por exemplo, na marcha da esquerda. A esquerda tradicional, dadas as coisas como elas estão, ela era até saudável diante do
que temos aí hoje; pelo menos estava preocupada com pobre, com operário, com greve, com sistema. Tinha algo ainda de realidade ali. Agora, como o capitalismo provou que ele melhorou a vida do pobre e o pobre se aburguesou, então como é que você vai fazer a luta? Você vai jogar a luta para uma esfera totalmente objetiva, como “ninguém tá feliz com o seu corpo”. Então, quem é mulher não tá contente porque é mulher? O homem você tem que deixar descontente com a sua masculinidade também. E aí você tem um problema racial. Você tem que gerar aquele
descontentamento com a raça que tem que estar presente ali. Depois, com sexo, por uma noção de liberdade sexual ilimitada e assim vai. Agora, em que sentido São Tomás é um antídoto para isso? Por que que São Tomás é um antídoto para isso? Nesse sentido, nós podemos... Falar de algumas ideias de São Tomás que são, efetivamente, eu não diria ideias de São Tomás, mas é mais do que isso, né? A forma de percepção, quando você apreende o modo racional de proceder de São Tomás, você facilmente não se deixa enlouquecer por todo esse tipo de manipulação e
de alienação, porque isso aqui não é outra coisa senão a completa fórmula da alienação. Em primeiro lugar, nós temos um princípio cognitivo que é o seguinte: diferentemente de toda a teoria do conhecimento surgida desde o essencial nominalismo e o voluntarismo, a epistemologia de São Tomás nos devolve a crença nos nossos sentidos. Ou seja, eu não estou me enganando na minha percepção; a minha percepção real corresponde realmente à realidade. O que eu estou vendo, realmente eu estou vendo, e os fenômenos psicóticos são uma exceção que confirma a regra, mas são uma exceção, e uma exceção que
precisa ser considerada. Então, por exemplo, a turma da neurociência, que é totalmente materialista, pelo menos na sua maioria, diz o seguinte: que todos os nossos fenômenos psíquicos, inclusive crenças e tudo mais, tudo é produto dos nossos neurotransmissores e das sinapses cerebrais. Qual é o problema disso? O problema é que as sinapses cerebrais de alguém que está numa psicose são as mesmas de que se ela estivesse na realidade, tendo aquela mesma experiência. Então, por exemplo, se eu tenho uma psicose e que está entrando aqui minha mãe que faleceu, ou se entrasse aqui a minha mãe, que
eu pensei que tinha falecido, mas não faleceu realmente, as minhas reações seriam as mesmas, porque o cérebro, por si mesmo, não é capaz de distinguir a realidade da irrealidade de maneira muito sutil. Então, aí está a prova de que nós estamos lidando com o conhecimento, digamos, de tipo material. E, quando eu digo conhecimento de tipo material, ou seja, produzido por mim, pela minha matéria cerebral, a realidade existe mesmo e ela transcende imensamente minha capacidade de percepção. E, diante dela, eu tenho que estar aberto; eu não posso estar fechado. Então, por exemplo, quantas coisas estão aqui
presentes que nós percebemos sem conseguirmos expressar? Dou um exemplo: quantas garrafinhas de água têm aqui? Ninguém sabe, assim, eu perguntando de chofre, né? Mas elas estão realmente aqui. Quantos ladrilhos têm aqui embaixo? Ou, por exemplo, qual é a distância que há aqui entre cada um de nós em relação a cada um de nós? Bom, há uma quantidade de acidentes imponderável; nós não conseguimos, mesmo que nós tivéssemos circunscritos a uma realidade muito pequena, há uma quantidade impressionante de acidentes que estão ali que nós estamos percebendo, mas que nós não conseguimos expressar. Ou seja, a realidade é
muito mais rica do que a nossa capacidade de percepção. A nossa capacidade de percepção, ela, de certo modo, é até seletiva, porém, ela é real. Eu estou vendo a realidade, ainda que eu não consiga descrevê-la de maneira completa. Eu estou vendo. Essa percepção primária, São Tomás chama isso de simples apreensão. Simples apreensão é a primeira operação do espírito, essa apreensão imediata em que os nossos sentidos vêm à luz; os nossos ouvidos escutam os sons, as nossas mãos tocam a extensão dos corpos e são tocadas por eles; o nosso olfato sente o odor, o nosso paladar
sente o gosto, e isso é sintetizado internamente. E aí isso forma o nosso imaginário e a nossa memória imaginária; a nossa inteligência age sobre essa imaginação para formar conceitos. Esse processo, que foi muito bem descrito pelos escolásticos, não é uma ilusão; é um processo verdadeiro em que eu preciso aprender a confiar mais nas minhas percepções. Todos nós temos essa experiência. Por exemplo, eu às vezes, são coisas muito banais até. Eu vou contar um fato completamente desparcializado para não gerar constrangimentos, mas chegou uma pessoa na paróquia, eu bati o olho e tive uma impressão. Depois, o
comportamento etc. me induziu a ter uma compreensão diferente. Falei: "Ah, eu me enganei." Só que passou mais um pouco de tempo, a minha primeira impressão se confirmou. Isso já, inclusive, já está estudado: as nossas primeiras percepções, às vezes, nos dizem muito mais do que nós conseguimos entender. Às vezes, dão sempre. E as nossas primeiras impressões mostram que todo o conhecimento posteriormente formulado, ele falha; ele é falho. Ele é mais falho do que a percepção direta da coisa, e o que me parece muito, muito razoável. Porque, por exemplo, estou vendo que essa parede é branca, enquanto
ela está dentro de mim. Então, esse conhecimento por presença, em que o ente está diante de mim, eu estou diante do ente, eu estou vendo, é o conhecimento mais importante; ele é a mãe de todos os conhecimentos. E para nós isso aqui deveria ser, então, por exemplo, eu não acredito no que a televisão me diz. Aliás, graças a Deus, eu nem assisto televisão. Uhum. Ou eu vejo com os meus próprios olhos ou não é um assunto para mim, porque a televisão cria fantasia e, no Brasil, o Brasil é um país aterrorizante desse ponto de vista,
porque, como aqui os meios de comunicação mentiram demais, ninguém mais os leva a sério. Então, o brasileiro tem um dom divino de transformar tudo em piada, tudo em gozação, tudo em meme, tudo em "zoeira", né? Então, como essa gente é zoada 24 horas por dia, com uma criatividade inalcançável, quer dizer, o brasileiro deveria ser objeto de estudo internacional pela criatividade que tem. Então, o fenômeno é incontrolável, porque todo mundo já... Vocês estão... Isso é uma palhaçada! Isso aqui é um grande teatro, e a gente está vendo que é o teatro, né? Nós estamos. Todos vocês
estão ensinando e querem que a gente acredite nisso. Nós não acreditamos, é um teatro, é uma besteira. O brasileiro, porque eles mentiram demais, já não acredita mais em ninguém. Então, por consequência disso, eu acho que nós somos o povo do mundo inteiro que tem a maior capacidade de pensar com a própria cabeça e de ver com os próprios olhos, mais do que os outros povos. Por exemplo, se você for aos Estados Unidos ou se você for a alguns povos mais tradicionais, como os africanos, ainda sejam mais do que a gente, mas enquanto nação, eu acho
que nós somos os campeões de percepção no mundo. Então, São Tomás tira esse complexo cognitivo que nós temos e que nos dificulta a vida. Ele nos faz, por assim dizer, enxergar com os nossos próprios olhos. Um segundo antídoto que São Tomás nos dá é o antídoto metafísico, que é a sua admirável doutrina platônica-aristotélica, que é original e totalmente, digamos assim, cheia de novidade. Essa ideia, no fundo, nós poderíamos falar de diversos modos. Eu vou dizer de um modo que você entender melhor: é a ideia da analogia do ser. Ou seja, se a gnose propõe uma
espécie de unívoco e equívoco postos no mesmo plano, nós temos uma coisa unívoca. A partícula divina está igual em tudo: no cachorro, na pedra, no planeta Vênus, no Lula. A partícula divina estaria espalhada em todo o mundo. Esse é o princípio unívoco, e o princípio equívoco é a matéria. Pois bem, São Tomás rompe com esse tipo de esquema e aprofunda a compreensão analógica do ser. Ou seja, existe o ser: o ser divino, o ser humano, etc. Mas, quando eu digo que o copo é, que a mesa é e que o homem é, o que Deus
é, aqui a palavra "ser" ou o verbo "ser" tem um significado analógico. Ou seja, não é a mesma coisa, tem algo a ver, mas não é a mesma coisa, porque o ser é um ato intensivo e, porque intensivo e imperfeito nos entes, ele é do ente divino, ou de Deus, né? Do ser absoluto, do próprio, aquilo que ele chama de subsistência, o próprio ser subsistente. Então, Deus é, e todos nós somos em níveis diferentes de ser. Isso organiza nossa cabeça e nos impede de cair em certas loucuras, como as que existem hoje. Por exemplo, essa
semana uma pessoa me falou: "Padre, estou muito perplexa porque morreu minha cachorrinha e me disseram na igreja que fui marcar missa pela alma da cachorrinha." E aí me disseram que não se celebra a missa pela alma da cachorrinha; que cachorrinha, quando morre, acabou e não existe céu dos cachorros. E eu acho que existe um céu dos cachorros. Aí vou lá explicar para a moça que não é assim. Por quê? Porque existem níveis diferentes de ser. O cachorro é, mas num nível muito, muito mais baixo do que o de uma alma humana. Mas, como todo mundo
entende que ser e vida são a mesma coisa e que há uma partícula divina em tudo, por exemplo, o Senhor Leonardo, ele é confessado, panista. O panismo é justamente a doutrina gnóstica que Deus não é tudo. Isso seria o panteísmo. Deus é tudo, mas Deus está em tudo como uma parte, como uma parcela, como uma centelha. Então, Leonardo Boff diz que a vida e a inteligência não são uma prerrogativa do ser humano; são uma prerrogativa cósmica. E ele já chegou a dizer que o ser humano é mau, é pérfido, e que ele vai ter que
ser destruído; ele é um vírus que está no mundo. E aí, quando o ser humano for destruído, as amebas vão começar a desenvolver inteligência e vão se tornar futuras professoras de matemática. Estou aqui ironizando, mas no fundo, é isso. Quer dizer, a imagem de que tem uma partícula divina em cada coisa, e portanto o ser de uma planta... Eles abraçam árvores e tudo mais. O ser de uma planta é ser no mesmo sentido que o ser animal, que é ser no mesmo sentido de um ser humano e é ser no mesmo sentido do ser divino.
Isso é um panteísmo. E a gnose é onde todos beberam a fonte. E aí o que acontece? A analogia doente nos faz perceber esse desnível e essa hierarquia que existe no cosmos, mas não como uma hierarquia de tipo essencialista, em que você tem uma espécie de formas rígidas e frias que são trazidas à existência. Então, parece que o universo é uma espécie de puzzle de peças de encaixe fixas. Não, porque essa visão essencialista já é distorcida, mas de seres mesmo. Ou seja, o mundo está fervilhando de seres em intensidades diferentes. E esse fervilhar de seres
é a realidade. Eles estão aparecendo milhões de acidentes diante de mim. A realidade é riquíssima, é inesgotável. Não é que o universo é inesgotável; essa sala é inesgotável. Nós jamais conseguiremos conhecê-la na sua totalidade. Ela transcende muito mais a nossa capacidade de conhecê-la. Então, o universo está hierarquizado, está não apenas hierarquizado, mas porque eu posso ter uma hierarquia rígida, né? Mas ele está todo como decorrência de uma fonte eterna. É ela, diz respeito ao próprio Deus. É, é, é Deus, essa fonte eterna! Todos os seres estão aqui fervilhando na medida em que recebem intensidades diferentes
do ser de Deus, né, da parte de Deus. Eu quero dizer, e o exercem mesmo em primeira pessoa, dentro da sua intensidade. Isto é maravilhoso! É um outro modo de encarar o mundo. Ou seja, a realidade verdadeira não é esse mundo cementado, que é produto do homem; a realidade mesma é totalmente, eh, como eu poderia dizer, divinamente irregular. Ela é viva. A gente, por exemplo, né, esses dias eu estava conversando com um amigo sobre arquitetura. O que é a arquitetura moderna? Traços retos. Você vai a uma igreja moderna, aquela coisa reta, você entra, você fica
frio, né? O que é a arquitetura tradicional? Por que a gente entra em uma igreja gótica, por exemplo, e a gente se sente bem? Porque a uma igreja gótica, ela é um conjunto de grossas que são encimadas por grandíssimos expostos, etc. Você parece que entrou numa floresta; ela imita a natureza. Ou, por exemplo, se você vai a Barcelona e vê as casas feitas pelo Gaudí, elas te relaxam. Você entra ali e fica psicologicamente por quê? Porque o Gaudí, tudo para ele tem curvas; tudo é cheio de curvas, porque a natureza não é retilínea. Então, você
entra: "Nossa, mas por que estou me sentindo bem?" A arquitetura te alivia da sensação de que você está andando por entre formas matemáticas, entre formas perfeitas. Então, a analogia do ente nos devolve o senso das proporções. Esse senso das proporções depois se revela em tudo. Por exemplo, na moral, eu, os católicos de hoje em dia, os católicos, eh, ditos conservadores, eles estão se tornando muito doentes do ponto de vista da moral, tornaram-se escrupulosos, então não conseguem ver o senso das proporções. Uma vez, uma menina mandou uma mensagem assim: "Padre, eu fui colocar açúcar no café
e tinha uma formiga dentro do açúcar. Então, mas mesmo assim eu adocei e tomei o café, só que era sexta-feira e eu tinha me esquecido e é proibido comer carne." Formiga carne, quer saber: "É pecado grave, mortal?" Eu falei assim: "Querida, vai ao psiquiatra, né, porque isso aqui já virou uma outra coisa; não tem nada a ver mais com Teologia Moral, né?" Porque as pessoas não sabem mais o censo das proporções, elas não conseguem perceber o censo das proporções, e isso vai tornando todo mundo doido. Quer dizer, se não, que eu disse uma mentira, isso
é a mesma coisa que matar uma pessoa, né? Pelo amor de Deus, né? As pessoas perdem essa capacidade de ver as proporções. Você veja que o protestantismo é feito disso. Os pastores protestantes ensinam que não existe pecadinho, pecadão. Pecado não tem tamanho. Uhum, ah, tá, pera aí, escuta: mas não é isso! Não é verdade, quer dizer, que se a sua mulher olhar para um homem e, se ela te botar chifre, tá indo pra cama, qual é a mesmíssima coisa? É isso que o senhor quer dizer? Não, não é isso que eu quero dizer. Então, ele
tá descrevendo algo que é contrário à percepção dele. É. Se você pensar, por exemplo, mesmo a teologia, por exemplo, calvinista, né? Que ela tem muito a ver com a modernidade porque ela conversa com o determinismo mecanicista, eh, que tem fundo materialista. Então, no fundo, Deus decidiu tudo desde toda a eternidade, quem vai para o céu, quem vai para o inferno, as minhas ações, tá tudo determinado. Deus, ele é uma espécie de, eh, diretor de cinema; ele fez um roteiro e tá todo mundo aqui obedecendo o roteiro, sem liberdade nenhuma. A nossa liberdade, ela é uma
[música] ficção. Só que isso não corresponde à minha experiência real. Quando eu vou, sei lá, a uma pizzaria, um rodízio de pizza, aí a pessoa fala assim: "Ah, tem uma pizza aqui." Aqui no Brasil é o país que inventa pizza, sabores de pizza, né? Tem uma pizza de rabada e tem uma pizza de Margherita. O que você quer? Ah, eu acho que eu quero a Margherita. Ou seja, ele decidiu, ele tomou uma decisão e fez uma escolha; a experiência dela é dele, essa é uma escolha livre. Mas ele diz, ele confessa com a cabeça que
aquela escolha não é livre. Então, esse descompasso entre o que se diz, o que se crê e a percepção real é enlouquecedor! Deus não pode fazer uma coisa dessa. Quer dizer que Deus nos enganou. Ele nos colocou aqui; ninguém é livre. Não existe liberdade nenhuma e a única coisa que existe é que nós estamos aqui recitando um roteiro. Não é verdade! Não é verdade! Então, a analogia do ente nos devolve o senso das proporções e, devolvendo-nos o senso das proporções, a analogia do ente nos faz estar abertos à realidade. Veja qual é o problema dos
sistemas, eh, materialistas de entendimento, de compreensão. É que eles pensam o seguinte: é um sistema fechado, né? Então, eles tentam explicar o mundo a partir de uma premissa materialista. Então, por exemplo, toda a realidade, ela é resultado do processo evolutivo. Mas como é que eu posso demonstrar que esse processo evolutivo resultou na minha autoconsciência da evolução? Porque se isso é assim, do momento em que eu tomo autoconsciência da evolução, eu estou dando um passo evolutivo. Como é que eu demonstro a ligação de uma coisa com a outra? Eu não consigo demonstrar. Ou seja, uma concepção
fechada sempre permanecerá, eh, hostil à realidade. Eu sempre vou olhar pra realidade com desconfiança, não, as coisas não são como elas parecem, né? Existe um negócio oculto aqui, existe uma coisa escondida. Eu vou ficar... Isso é uma neurose, praticamente. Em todos os contemporâneos, se nós pensarmos, né, o Kant, ele quis descobrir as estruturas a priori do conhecimento, as chamadas categorias cananas, né, as estruturas a priori do conhecimento. Depois veio o Hegel e quis descobrir o processo, digamos assim, oculto do desenvolvimento histórico, as leis do desenvolvimento histórico. E, a partir daí, todo mundo começou a falar
das coisas cultas, né. Então, o Marx fala da luta de classes, que é a estrutura ali que está por baixo de tudo, a tensão de classe, e as pessoas explicam tudo a partir da luta de classes. Então, por exemplo, ontem mesmo eu escutava um exegeta ateu, ex-teólogo Batista, era Batista, ele dizendo o seguinte: que a percepção de Deus é um resultado da percepção do nosso descontrole sobre a realidade. Então, nós criamos a ideia de que existe Deus, que a gente pode, no fundo, negociar com a natureza, que é incontrolável, mas que aí depois surgiu o
sistema político. Então, as classes políticas entenderam que o melhor modo de você dominar a classe dominada é usar a ideia de Deus, você dominar a ideia de Deus. Você cria uma teologia que mantém todo mundo comportadinho para fazer aquilo que você quer. Muito bem, se isso é assim, quem é que está por trás do que você está dizendo? Porque você está querendo exercer sobre mim um poder? Você quer invalidar todas as minhas crenças em nome de certos pressupostos que são inclusive bastante indemonstráveis? Em que sentido você não pode voltar lá? Você não pode conversar com
aquelas pessoas? Você não pode saber se as coisas são como ele está dizendo? Se essa era a experiência real, ele está projetando, de certo modo, um pressuposto que é moderno, o de que a economia define a sociedade, no passado, quando as pessoas não estavam nem aí para esse assunto porque não tinha o sistema econômico. No fundo, eu estou querendo plantar para eu comer. Estou evitando de morrer para amanhã, né? Então vejam, tudo isso nasce de uma concepção fechada da realidade. Agora, com São Tomás, nós temos uma percepção aberta da realidade porque eu sei que a
minha inteligência, inclusive, ela também é analógica e ela também é participada, ou seja, ela é alimentada desde uma fonte que a transcende. Aliás, a ideia da substância, né, da forma substancial, ela me ajuda a compreender isso. Por que que é o eu? Essa capacidade que eu tenho de dizer "eu" não é resultado, como dizem os racionalistas, da minha psique, porque da minha capacidade psicológica, porque eu não me lembro de todos os fatos da minha vida. A minha unidade psicológica é mínima. Quer dizer, eu sou o que aconteceu comigo transcende muito mais aquilo que eu consigo
lembrar. Ao mesmo tempo, a minha unidade não está na minha matéria, porque veja, o que tem a ver aquele molequinho que nasceu desse tamanhinho com essa jamanta que está aqui diante de vocês? Não tem nada a ver, todas as células mudaram, não tem unidade material nenhuma praticamente. Da onde vem essa unidade? Essa unidade vem desse fundo que está por baixo de mim ou neste fundo que sou eu, que está por baixo de tudo, que é o meu eu. O meu eu substancial é aquilo que a gente chama de forma substancial. E da onde que vem
isso? É esse ente permanente sobre o qual acontecem todas as alterações. Se ele não foi autogestado, da onde vem isso? Só pode vir de uma fonte eterna, só pode vir de Deus mesmo. Então, vejam, a filosofia de São Tomás, pela via analógica, demonstra como o meu ser é participado e ele é participado não apenas enquanto ideia, mas, como dizia Platão, é participado enquanto ato. O meu ato não nasceu de mim mesmo, ele não é autogestado, mas eu o exerço realmente. Então vejam, toda essa noção de que os filósofos contemporâneos, às vezes, eles não... É que
eles estão errados, a filosofia está mal enfocada, né? Então, por exemplo, existe de classe. Existe, existe, é um fenômeno real, mas eu não posso fazer com que ele transcenda para além daquilo que ele é. Então, por exemplo, todo o esforço do Derrida para mostrar que tudo no mundo é linguagem, tudo é linguagem, tudo é linguagem, tudo é linguagem. Qual que é o problema dessa percepção do Derrida? O problema é o seguinte: eles têm uma certa razão porque nada escapa do reino semântico para o ser humano. Nada, nada, nada, nada. Tudo tem um significado, tudo, absolutamente
tudo. Só que, justamente porque tudo tem um significado, eu não posso explicar tudo a partir disso. Eu não consigo sair disso para explicar isso desde fora. Eu consigo fazer isso porque, a partir do momento que eu me distancio e digo: "Olha, tudo tem um significado, isso que eu estou falando também tem um significado", então não consigo sair disso. Ou como o Foucault, né? Ele compôs a chamada microfísica do poder. Todas as relações são relações de poder. Ele tem uma certa razão, só que, justamente porque todas as relações incluem algo de poder, se eu quiser enxergar
tudo a partir dessa matriz, eu não consigo sair dela para enxergá-la desde fora. Então, não tem jeito, eu estou me enganando. A filosofia de São Tomás coloca a nossa inteligência na perspectiva correta e a perspectiva correta é a perspectiva do ato de ser. E a partir daí enxerga o resto do ato de ser analógico. E, por fim... Um terceiro antídoto que nos dá a filosofia de São Tomás é o antídoto moral. Em que sentido? No sentido de eu perceber que estou em movimento e que esse movimento visa um fim, ou seja, o ser humano. Essa
está na base da ética de Aristóteles, mas é infinitamente aprimorada por São Tomás. Há uma diferença entre uma vida boa e uma vida não boa; há uma diferença. Essa percepção, nós não estamos enganados em relação a essa percepção. Então, por exemplo, qualquer pessoa louva uma conduta honesta e repudia uma conduta desonesta. Por exemplo, se uma pessoa é desleal, qualquer ser humano é capaz de execrar a deslealdade e glorificar a lealdade. Por que eu não estou errado? Por que eu não posso pensar como Nietzsche, por exemplo, ou como Hobbes, em que, na verdade, o grande objetivo
é eu prevalecer sobre todos, custe o que custar? Não que Hobbes defendesse isso; aliás, tem aspectos muito bons no modo dele pensar. Mas Nietzsche diz exatamente assim: o homem sem moral é o homem poderoso; é ele que realmente é o Super-homem. Ele não tem mais escrúpulos, ele não tem mais culpa; ele faz aquilo que ele quer e o que ele quer prevalece sobre os demais. Por que isso não consegue pegar? Porque, vejam, nós temos os freios morais; são o grande, o grande obstáculo. Marx, por exemplo, cria de maneira totalmente segura na cabeça dele que, como
os meios de produção estão nas mãos dos trabalhadores, materialmente nas mãos dos trabalhadores, e os trabalhadores são a maioria, eles iriam fazer a revolução de qualquer jeito, porque os meios de produção estão nas mãos deles. Então, por exemplo, digamos assim: você tem uma indústria automobilística. Quem é que está manejando as máquinas? São os trabalhadores. Então, ele acreditava que chegaria o momento em que os trabalhadores, que são a maioria, dirão: “Agora essa fábrica é nossa, não é sua.” No entanto, isso não aconteceu. Por que isso não aconteceu? Porque existe dentro de nós a percepção de que
estou caminhando para um fim. Eu tenho em mim uma certa proporção para esse fim e a noção de propriedade está incutida na minha alma. Eu não consigo atropelar meu fim, de quem eu sou. Não tem como você conseguir fazer isso em alguns casos, mas não consegue fazer isso com a humanidade inteira. Ou seja, eu preciso ser profundamente indutivo em relação às coisas morais; eu não posso ser aventureiro. Eu tenho que olhar para o que deu certo, eu tenho que enxergar a realidade tal como ela se apresenta diante de mim. Eu tenho que ver o ser
humano tal como ele realmente é, inclinado para o seu fim, e esse é o modo de procedimento que caracteriza o homem virtuoso. O homem virtuoso é flagrantemente melhor do que o homem não virtuoso. O homem virtuoso é prudente; ele analisa todas as coisas, ele pondera. O homem virtuoso é justo; ele tem o que é dele e dá o que é do outro. O homem prudente, porque é justo, ele é veraz, ele é honesto, ele é generoso, etc. O homem virtuoso é corajoso; ele tem convicções e diz as coisas com a fortaleza devida na hora necessária.
O homem virtuoso é temperante; ele não é um animal indomável do ponto de vista do prazer. O homem virtuoso é alguém que aprende com suas experiências, que aprende com a experiência dos outros, que procura entender a melhor maneira de viver. Ele sempre está de olho, né? É exatamente o que diz o livro do Eclesiastes: o homem sábio ama a casa do luto mais do que a casa do neonatado, porque o recém-nascido não viveu. Então, você não sabe o que vai dar aquilo. Agora, a pessoa que morreu, a vida dela chegou à sua forma final. Então,
ele pode olhar: “Olha essa pessoa aqui; é um pai de família honesto, tem a sua esposa que o ama, seus filhos, seus netos, seus bisnetos; tem toda uma… olha que coisa bonita a vida dessa pessoa.” Eu consigo ter um senso de totalidade. O mesmo vale para a sociedade. A política é… como é que ele escreveu? Ele escreveu lendo as constituições dos países que existiam no tempo dele. Ele pediu que conseguissem para ele a cópia de praticamente todas as constituições que haviam na época e foi estudando a história. Ele foi vendo como os povos se desenvolvem.
Ele foi vendo que existem coisas que dão certo e coisas que não dão certo. Ou seja, não tem uma fé absoluta no futuro, uma fé aventureira no futuro. Então, a filosofia de São Tomás nos engancha na realidade e, por causa disso, eu não me torno um aventureiro do futuro; eu tenho responsabilidade. Isso significa que não vou assimilar novidades? Não, mas é mais ou menos como o corpo humano: nós só estamos vivos porque temos esses dois sistemas em nós. Pela nutrição, nós assimilamos novidades, mas pela digestão, nós só conservamos o que é bom e jogamos fora
o que é ruim. Então, se eu tenho só digestão, eu não me alimento de novidades; eu não tenho como ficar vivo. Mas também, se eu só me alimentasse de novidades e não tivesse sistema digestivo, eu morreria. Então, precisamos das duas coisas. Porém, o que nos impede de sermos aventureiros e de sacrificar o presente em função de um futuro eventual, que nós não sabemos o que será, é justamente a percepção de que o futuro eu não conheço e o presente e o passado. Sim, eu sei lidar com isso. É esse realismo, realismo, porque eu gosto dos
autores, e o pessoal diz que, por exemplo, Machado de Assis é realista, é pessimista. Não, ele não é pessimista, ele é realista, e ele descreve as coisas com um realismo muito vivo e cru para que nós entendamos. Você lê, por exemplo, o conto "A Cartomante", né? Que o fulaninho lá está traindo, está ficando com a mulher de um amigo, e ele vai se enganando, achando que está tudo certo. Recebe uma carta anônima, aí fica com medo, é chamado pelo amigo, e passa numa cartomante. A cartomante fala: "Tá tudo maravilhoso, vai dar tudo certo, tudo perfeito."
Ele vai descrever naquela cena o homem voando, quase de tanta leveza da confiança. Tal, quando ele chega, pá! O cara dá um tiro e mata, mata, mata o protagonista, que já tinha olhado e tinha visto a mulher morta do lado de dentro. Ou seja, o que Machado está dizendo com isso? Isso nunca deu certo, não é com você que vai dar. Então, essa fé irresponsável no futuro, esse otimismo boçal só vai te levar para o buraco, meu filho. Você não tem um sistema de conservação eficiente de autodefesa. Portanto, são apenas algumas ideias. Aqui, eu não
tenho a pretensão de esgotar o tema, nem de ser... né, só algumas ideias que nos ajudam a perceber, de um lado, a loucura moderna, e, de outro lado, a sanidade da filosofia de São Tomás de Aquino. Alguma dúvida? Tem pessoas participando ao vivo? Não sei se elas conseguem fazer perguntas. Alguém quer fazer pergunta? Pelo... hum, pessoal?