Capítulo 2.2 - Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado - Pedagogia da Autonomia

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Prof. André Azevedo da Fonseca
Se não tem sentido negar a realidade, também não é papel da educação submeter-se a ela. É preciso te...
Video Transcript:
No vídeo anterior, vimos que a consciência do inacabamento é o ponto de partida para uma educação transformadora. Agora, Paulo Freire nunca foi idealista, no sentido de propor uma prática educativa utópica e irrealizável. Por isso ele alerta para a necessidade de tomarmos consciência de que estamos sempre condicionados pela nossa realidade.
Mas se o mundo é inacabado e a realidade está em permanente transformação, é preciso também ter a consciência de que as condições concretas condicionam, ou seja, impõem limites, mas não determinam a prática. E um dos papeis papel da educação é justamente superar esses limites. Porque se não tem sentido negar a realidade, também não é papel da educação submeter-se a ela.
A aprendizagem e a construção de nossa presença no mundo não se faz no isolamento, distante das influências do nosso contexto. Mas se a minha presença no mundo é necessariamente condicionada por esse contexto, não tem sentido eu abrir mão da responsabilidade pelos meus atos e tentar explicar ou justificar as minhas ações como se fossem reações inevitáveis, ditadas pela sociedade e que não dependessem de minha vontade. Quem faz isso renuncia à responsabilidade ética que o define como ser humano.
Não aprende e não se humaniza aquele que imagina que a sua vida não tem nada a ver com o mundo. E da mesma forma, não aprende aquele que simplesmente se mantém passivo, se adapta à realidade e aceita o mundo como ele é. A presença humana no mundo não é a de quem se adapta, mas a de quem interfere, participa.
Essa é a perspectiva de quem busca ser não um objeto, mas um sujeito da História. As condições concretas que encontramos na realidade não são fatalidades, mas sim resultados de decisões, disputas, negociações e conquistas históricas – construídas e reproduzidas por sujeitos históricos – e portanto, estão sempre em transformação. E a cada um cabe a decisão ética, crítica e criativa de participar desse processo de invenção do mundo, ou de aceitá-lo passivamente, tal como ele se impõe.
E vale a pena insistir: uma educação humanizadora é aquela que favorece a participação do sujeito no mundo. E não aquela que treina o aluno para que ele se submeta à realidade. O principal objetivo do método de conscientização que Paulo Freire começou a empregar no Brasil nos anos 60, e que foi brutalmente interrompido pela ditadura militar, era justamente essa reflexão crítica sobre os obstáculos que condicionam o nosso processo de aprendizagem e de humanização.
O objetivo de Freire era que os alunos nos seus cursos de alfabetização superassem aquela crença ingênua de que o mundo já estava posto, e que o papel que eles deveriam cumprir na sociedade era aceitar passivamente a realidade e se adaptar a ela, sem querer transformá-la. Ou seja, Paulo Freire percebia a importância de firmar uma crítica àquela ideologia reacionária que, desde a escola, procura impor uma visão fatalista do mundo. Como se o papel da escola fosse estabelecer um local predeterminado para as pessoas na ordem social.
Aquela que ensina coisas assim: "Ponha-se no seu lugar. " "O mundo é assim, sempre foi e sempre será. " "Obedece porque essa é a ordem natural das coisas.
" A denúncia dessa violência simbólica tem tudo a ver com educação. A curiosidade epistemológica – aquela curiosidade que supera a ingenuidade – exige que o sujeito tenha consciência do caráter inacabado do conhecimento e do mundo para que ele se sinta livre e encorajado a transformá-los, o conhecimento e o mundo. Um ensino fechado, que não permite que os alunos explorem novos conhecimentos além dos conteúdos, que não permite que eles abram a novas possibilidades de aprender, sufoca a curiosidade.
Em um sistema escolar autoritário, a curiosidade é entendida como um defeito. Nessa ideologia conservadora e reacionária, o papel do aluno se restringe a obedecer e repetir o conteúdo, sem questionar. Um ensino fechado não desafia o estudante a se superar.
Ele quer só que o aluno decore e repita o que já é feito para reproduzir os conhecimentos e a realidade tais quais eles são. Mas na perspectiva humanizadora, os conhecimentos escolares não são o fim. Mas o ponto de partida.
E além disso, a dupla consciência do caráter inconcluso do conhecimento e do fato de que a realidade condiciona – mas não determina – a nossa ação, essa consciência favorece naturalmente um processo de busca. Mulheres e homens, seres históricos e culturais, nos humanizamos quando a curiosidade nos leva a ultrapassar os limites que nos condicionam. E essa disposição é o princípio fundamental da produção de conhecimento.
E mais ainda. Para Paulo Freire, a curiosidade, por si só, já é conhecimento. Assim como a própria linguagem, que é um instrumento que utilizamos para produzir conhecimento, mas ao mesmo tempo é também uma forma própria de conhecimento, a curiosidade já é um saber potencialmente transformador.
No vídeo anterior, quando discutimos a dimensão ética dos seres humanos, ficou claro que são as nossas escolhas que transformam o mundo em um lugar pior ou melhor. Por isso Paulo Freire insiste que o ensino de habilidades técnicas e científicas, em qualquer área do conhecimento, não pode jamais deixar de lado a formação ética. O educador que, ao ministrar qualquer disciplina, impede a manifestação da curiosidade do estudante e insiste apenas na memorização mecânica dos conteúdos, ele aniquila o potencial que a liberdade oferece de o estudante se aventurar, relacionar conceitos de forma inesperada e produzir conhecimentos novos.
Segundo Paulo Freire, a escola com ideologia reacionária ou neoliberal não quer, propriamente, educar. Quer disciplinar, domesticar. Ela forma um estudante obediente e passivo, treinado para não contestar o saber do professor, da autoridade e reproduzir conhecimentos para se tornar uma mão de obra igualmente obediente e passiva que vai apenas aceitar e reproduzir a sociedade.
Daí, mais uma vez, a importância da consciência do inacabamento aliada ao reconhecimento de que somos condicionados. Só é capaz de se educar aquele que tem uma consciência clara de que é um sujeito imperfeito, limitado, que vive em um mundo ainda inconcluso. Ou, nas palavras de Paulo Freire "Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados.
Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. " Inacabados e conscientes do inacabamento, curiosos, abertos, à procura e conscientes de nossas limitações e possibilidades, nós conseguimos exercitar tanto mais e melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não meros objetos do processo nós nos assumimos.
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