Esse mineiro voltou diferente após anos em uma cidade escondida. Olá, pessoal. No início do outono de 1993, um hospital modesto e pouco conhecido situado em uma cidade isolada nos Montes Rurais, recebeu um paciente que deixaria toda a equipe médica em estado de alerta.
O homem chegou carregado por dois trabalhadores locais que o haviam encontrado vagando próximo às trilhas montanhosas, descalço com a roupa em frangalhos e o olhar fixo em algum ponto invisível à frente. Vestia um uniforme de mineração típico da década de 80, desgastado, com manchas inexplicáveis e sinais evidentes de desnutrição severa. Os ossos sob a pele saltavam, os olhos estavam fundos e suas mãos tremiam levemente, como se há muito não tivessem repouso.
Ao apagar-se a luz do quarto, os enfermeiros perceberam algo ainda mais estranho. Manchas claras em sua pele começavam a emitir um brilho fraco, esverdeado, como um tipo de bioluminescência. Durante a triagem inicial, o comportamento do homem chamou a atenção de todos.
Apesar do estado físico deplorável, sua fala era calma e articulada, embora repleta de expressões fora de uso que lembravam documentos e gravações dos anos 70. Sem que lhe fosse perguntado, ele se identificou. Pioter Pavlovic Romanov.
Eu voltei. A enfermeira que anotava os dados congelou no lugar. O nome soava familiar e bastou uma rápida consulta aos arquivos antigos da cidade para confirmar a suspeita.
Aquele homem estava oficialmente morto desde 1986. A partir daí, o hospital foi tomado por uma atmosfera de inquietação que só aumentaria com os dias seguintes. O desaparecimento de Romanov havia sido um mistério jamais resolvido na cidade.
Ele era funcionário de uma mina que operava nas encostas da região e 7 anos antes fora designado para inspecionar uma galeria parcialmente desativada após sinais incomuns de tremores registrados nos instrumentos. A comunicação com ele foi perdida às 8:47 da manhã. Equipes de busca foram imediatamente enviadas ao local, mas não encontraram nem sinal de colapso, nem os equipamentos, nem vestígios de sangue ou luta.
O local parecia intocado. O único detalhe mencionado nos relatórios foi a descoberta de uma parede anormalmente lisa, situada na sessão oeste da galeria. A rocha tinha um brilho úmido e era tão suave ao toque que parecia polida por dentro, como se algo tivesse atravessado a estrutura sem deixar marcas visíveis.
Três meses após o desaparecimento, com todas as buscas encerradas, Romanov foi oficialmente declarado morto. A esposa inconsolável deixou a cidade. O apartamento onde viviam foi redistribuído a outro trabalhador da mina.
Com o tempo, o caso caiu no esquecimento da maioria, tratado como uma tragédia acidental ou possivelmente resultado de alguma falha geológica não identificada. Por isso, a notícia de seu retorno, vivo e fisicamente alterado, provocou tanto espanto entre os habitantes mais antigos. O hospital recebeu ordens de realizar exames completos e especialistas foram acionados discretamente.
As impressões digitais, registros odontológicos e traços faciais confirmaram sem margem de erro. Aquele homem era mesmo Pioter Romanov. Internado sob observação, ele começou a compartilhar fragmentos do que havia vivido durante os s anos em que esteve desaparecido.
Segundo seu relato, tudo mudou no instante em que tocou a parede lisa da galeria. Sentiu um puxão leve, sem dor, como uma perda repentina de equilíbrio. Depois disso, o chão sumiu.
Ele não se lembrava de queda ou impacto, apenas de despertar em um lugar completamente diferente, uma câmara subterrânea iluminada por pontos de luz fraca, azulada e verde. Paredes e o teto eram cobertos por estruturas semelhantes a fungos que emitiam uma luminosidade constante e suave. O ar era quente e úmido, com um cheiro terroso e um leve zumbido ambiental, quase imperceptível.
Os primeiros dias foram marcados por confusão e silêncio. Ele vagava pela câmara tentando entender onde estava. Chamava por ajuda, mas não obtinha resposta.
Não havia sinal de saída nem de tecnologia. Aos poucos, formas começaram a surgir nas bordas da visão. Seres altos, esguios, de pele clara, que também brilhava levemente.
Tinham olhos pequenos, bocas discretas e não faziam qualquer ruído. No início, o observavam de longe, imóveis como estátuas. Piotr descreveu esses momentos como os mais assustadores de sua vida, pois não sabia se estava sendo testado, vigiado ou condenado.
Com o passar do tempo, os encontros tornaram-se mais próximos. Um dos seres se aproximou e estendeu o braço lentamente, tocando de leve o ombro de Piot, com os dedos alongados e finos. Havia uma temperatura morna naquele toque e uma vibração quase imperceptível que percorreu o corpo dele inteiro.
Não houve dor nem palavras, apenas um gesto de aproximação que se repetiria nos dias seguintes. Aos poucos, os seres começaram a emitir sons suaves, como sussurros em baixa frequência. Eles usavam gestos lentos e movimentos graciosos, como se cada ação tivesse um propósito ritmado.
O tempo ali era diferente. Piotre afirmou que perdeu a noção das horas e dos dias rapidamente. Não havia sol nem lua, apenas um ciclo de luz difusa que parecia fluir com os próprios seres.
Depois de um período que ele estima como meses, começou a entender fragmentos da comunicação, uma língua feita de sons vibrantes, assobios e tons emocionais. Não havia palavras no sentido convencional, mas sensações condensadas em sílabas e modulações que ele aprendeu a decodificar com o tempo. A compreensão veio não como aprendizado lógico, mas como adaptação sensorial.
Ele dizia: "Sentir o que era dito mais do que entender. " Foi então que foi levado para outro espaço, muito maior, que chamou de cidade. Não havia ruas, apenas corredores orgânicos que conectavam salas e estruturas moldadas diretamente da rocha viva.
Nada ali parecia construído com ferramentas. As paredes tinham texturas que lembravam colmeias, cascas de árvores ou até mesmo ossos polidos. Era tudo vivo, respirando de forma sutil.
O ambiente era silencioso, com exceção de um zumbido grave e constante, como uma nota contínua de fundo que ele passou a ignorar com o tempo. A temperatura era sempre morna e o ar tinha gosto metálico. Dentro dessa cidade subterrânea, ele foi apresentado a uma rotina simples, sem comando ou imposições.
havia áreas dedicadas à alimentação, descanso, criação de estruturas e até espaços destinados ao cultivo de fungos, musgos e líquens. A luz vinha dos próprios organismos que cresciam ali. Nada parecia ter sido importado da superfície.
A energia era orgânica, autossuficiente. Não havia máquinas, tampouco eletricidade. Tudo era baseado em simbiose entre seres e ambiente.
Ele descreveu os edifícios como seres em si, moldados a partir de um substrato que crescia e se transformava conforme a necessidade dos habitantes. Os alimentos eram compostos por uma pasta gelatinosa de cor pálida, quase translúcida, com sabor neutro. A origem desse alimento era no mínimo, incomum, vermes gigantes e cegos que se moviam lentamente por túneis paralelos ao sistema de habitação.
Alimentavam-se de material orgânico em decomposição, restos vegetais e um pó mineral fino semelhante ao talco. Piotre passou a cuidar desses vermes como tarefa rotineira. limpava os canais, ajudava na coleta da pasta nutritiva e transportava o produto até os reservatórios comunitários, sempre sob o olhar silencioso dos outros habitantes.
O modo como esses seres se organizavam contrastava radicalmente com qualquer modelo humano. Não havia líderes visíveis, nem disputas ou punições. Cada indivíduo parecia saber o que fazer, guiado por uma harmonia que Romanov jamais testemunha na superfície.
Ele não ouvia gritos, não via correria. Tudo era feito com uma lentidão calculada e precisa. Os espaços de descanso eram compostos por plataformas cobertas de um musgo espesso, que emanava um calor constante e um leve aroma terroso.
O sono vinha fácil e os sonhos eram lúcidos, carregados de imagens que pareciam mensagens codificadas. Com o tempo, a presença de Piotre deixou de ser observada com cautela e passou a ser aceita com naturalidade. Ele caminhava entre os seres sem ser notado como algo estranho.
Começava a sentir que sua presença ali não era apenas tolerada, mas integrada. Em algumas ocasiões, recebia pequenos presentes, fragmentos minerais, porções de fungos especiais ou pedras lisas com inscrições orgânicas. Nada lhe era pedido em troca, mas ele sentia que precisava retribuir.
Passou a dedicar mais tempo aos vermes, ao cuidado com os espaços de descanso e ao cultivo de pequenas áreas de musgo decorativo. Ele descrevia a comunicação como algo que se intensificava em sonhos. Começou a ter visões recorrentes de padrões de luz e vibração que se repetiam em sequência, como se fossem códigos.
Acordava com frases estranhas na mente, sons que não sabia pronunciar acordado. Aos poucos, começou a esquecer palavras em russo. Tropeçava na própria língua quando tentava explicar conceitos simples.
A sensação era de estar sendo moldado, adaptado, lentamente transformado por aquele ambiente. Não havia dor, mas havia uma perda gradual daquilo que ele considerava identidade. Foi nesse contexto que ele passou a chamar os seres de gente de dentro.
Essa denominação surgiu de forma intuitiva ao perceber que eles não viam a si mesmos como separados do mundo onde viviam. Tudo era parte de um único organismo, uma unidade viva e consciente. Eles não falavam sobre morte, não celebravam nascimentos.
Os enfermos eram levados para áreas de musgo especial, onde, segundo ele, seus corpos se desintegravam. lentamente e ao final do processo davam origem a novas tramas luminosas no solo. Tudo ali parecia seguir um ciclo de integração e de solução sem ruptura.
O vínculo de Romanov com aquela comunidade subterrânea tornou-se mais profundo quando ele foi levado a um setor afastado, quase sempre isolado, onde vivia uma única habitante. A chamava de Vera, embora nunca tenha recebido dela um nome propriamente dito. Vera possuía características semelhantes às dos demais, mas havia algo diferente em sua presença.
Seus movimentos eram ainda mais suaves, quase flutuantes, e sua pele emitia uma luz azulada mais intensa. Ela não participava das rotinas da comunidade e parecia viver em silêncio absoluto, como se tivesse sido esquecida ou poupada de alguma função coletiva. Roma descobriu, através de gestos e associações sensoriais, que Vera era estéril.
Essa condição a tornava uma exceção entre os gente de dentro, cuja existência era regida por ciclos orgânicos de crescimento e de solução. A ausência desse ciclo em Vera fazia com que ela vivesse à margem, mas não como rejeição. Era como se fosse preservada.
Vera ofereceu a ele um espaço de convívio, uma espécie de domo coberto por musgos decorativos que emitiam uma luminosidade suave e constante. O local era protegido por dobras naturais da rocha e ali a temperatura era mais amena. Romanov passou a viver com ela, dividindo momentos de silêncio e trocas emocionais que não dependiam de palavras.
Ela cultiva fungos ornamentais de cores incomuns e padrões simétricos que se alteravam com o tempo, como se fossem sensíveis ao estado emocional do ambiente. Em um desses ciclos, que ele já identificava como equivalentes a um ano, Vera lhe deu um presente, um fungo de cor azul intensa, que crescia em espiral e exalava um aroma levemente adocicado, algo entre resina e flores de campo. Piotre plantou junto à parede de sua morada e disse que era a primeira coisa ali que sentia como sua.
Mas o tempo começou a alterar mais do que apenas sua percepção. As mudanças físicas tornaram-se visíveis. As manchas em sua pele expandiam-se lentamente, adquirindo padrões que lembravam raízes ou filamentos.
Em ambientes escuros, ele próprio emitia uma luz fraca, mas constante. Suas unhas tornaram-se translúcidas e resistentes, os cabelos rarearam e os dentes começaram a cair, substituídos por estruturas mais lisas que ele descrevia como placas de osso polido. A digestão dos alimentos oferecidos ali tornara-se completa, e qualquer memória gustativa da comida da superfície lhe causava repulsa.
Ele começou a ter pesadelos vívidos com supermercados, comida industrializada, carne cozida. Acordava em sobressaltos com náusea e suor frio. Passou a se comunicar quase exclusivamente no idioma vibratório dos gente de dentro, mesmo quando pensava.
Percebeu que havia começado a sonhar nessa nova linguagem. Esse ponto marcou um momento de profunda crise interior. Romanov passou dias em silêncio absoluto, apenas sentado na entrada de sua morada, olhando fixamente para a rocha viva, que ondulava levemente com o calor interno.
Percebeu que estava mudando não apenas no corpo, mas na mente. Ideias humanas começaram a parecer distantes, como se fossem de outra vida. nomes, datas, vozes, até a imagem de sua esposa.
Tudo parecia esmaecer. Ele descreveu essa sensação como o ato de assistir à própria biografia se dissolvendo em névoa. Foi nesse estado que decidiu partir.
Comunicou a Vera sua intenção com um gesto simples, pousou a mão sobre o peito e apontou para cima. Ela não reagiu de imediato, apenas o olhou longamente, com os olhos apertados e a luz de sua pele oscilando em tons mais escuros, quase violeta. Só no dia seguinte o conduziu até uma das câmaras mais profundas.
Essa câmara era diferente de tudo que ele havia visto até então. As paredes eram curvas e pulsavam lentamente, como se respirassem. No centro havia uma fenda vertical estreita, que parecia emitir uma corrente de ar contínua, levemente quente.
A própria luz do ambiente era instável, como se houvesse algo além da fenda, alterando o espaço ao redor. Vera permaneceu ao lado da entrada e disse apenas uma frase, com entonação grave e melódica, que ele interpretou com clareza. Se for, não volte, a menos que esteja certo.
Piotre hesitou, olhou para ela, depois para a fenda. Sentia o corpo reagir com tremores finos, como se alguma parte dele resistisse, mas atravessou. O despertar no hospital foi súbito.
Ele estava em uma maca, cercado por rostos humanos, barulhos agudos e a luz cortante de lâmpadas fluorescentes. O choque sensorial foi tão intenso que perdeu os sentidos novamente. Quando recobrou a consciência, os exames já haviam começado.
Médicos anotavam níveis anormais de fósforo no sangue, ausência de flora intestinal típica, uma bioemissão constante da pele. Nenhum alimento era aceito por seu corpo. Água potável comum lhe causava náusea.
Dormia pouco e durante o sono murmurava frases em uma língua que ninguém reconhecia. Os psiquiatras não sabiam se tratava-se de uma psicose dissociativa ou de um caso extremo de isolamento sensorial. Nenhum diagnóstico parecia suficiente.
O caso atraiu atenção externa. Um homem apareceu no hospital sem identificação clara, portando documentos antigos com o nome de Piotre e relatórios do desaparecimento em 1986. Passou 6 horas trancado com ele.
O conteúdo da conversa jamais foi revelado, mas após o encontro recomendou sua transferência imediata para uma clínica psiquiátrica. Romanov recusou. Disse apenas que precisava de ar e pediu para caminhar ao redor do hospital.
nunca mais foi visto. Na manhã seguinte, uma enfermeira relatou pegadas finas nos arredores da cidade, seguindo em direção à antiga galeria. As marcas cessavam repentinamente no solo úmido, como se a pessoa tivesse sido absorvida.
Anos depois, estudos geológicos detectaram anomalias profundas na região da antiga mina. Zonas de temperatura instável, variações sutis de radiação e deslocamentos de umidade sem explicação lógica. A galeria, selada desde então, tornou-se objeto de estudo para poucos especialistas.
Nos arquivos do hospital, apenas uma coisa foi deixada sobre a cama de Romanov, uma pequena placa de material rugoso com traços de fungo seco e escrita manual em carvão. A frase dizia: "Eu fui para onde há silêncio. Lá eu sou vivo.
Aqui eu sou sombra. Não me procurem. Abaixo de nós não há vazio.