E já estive aqui em Jfora outra vez para falar sobre temas menos teológicos, tais como ideologia de gênero, cultura da morte e coisas afins. É uma satisfação estar com vocês, todos irmãos que estão chegando na Igreja Católica, e podermos falar um pouco sobre a natureza da Igreja, que é o tema dessa palestra. Recentemente, eu assistia a um vídeo de um teólogo protestante brasileiro em que ele falava sobre o cânon bíblico e apresentava uma teoria que é a teoria do cânon autoautenticado. A teoria conhecida não é nenhuma novidade, mas ele a apresentava de um modo
muito, eu diria, persuasivo pela repetição com que as ideias eram repisadas o tempo todo. E, durante a exposição, no fundo, o argumento central dela era muito simples: quem definiu o cânon não foi a Igreja; quem definiu o cânon foi o próprio cânon. Por quê? Porque o cânon foi definido por [música] Deus. Aqui existem vários problemas. O primeiro deles é a confusão entre a inspiração divina da Sagrada Escritura e o cânon, ou seja, a lista dos livros inspirados. Segundo, a confusão entre a inspiração da Escritura e a Bíblia em si. Ou seja, eu não posso dar
à Bíblia atributos divinos; ela não é Deus. Eu não posso fazer isso com ela. Ela é uma palavra inspirada por Deus, mas ela não é o próprio Deus. Senão, nós caímos numa espécie de bibliolatria, que no fundo é o caminho pelo qual, digamos assim, singram todos os fundamentalismos. Porém, o problema central daquilo que esse teólogo dizia é a incapacidade de entender que os autores bíblicos do Novo Testamento são eles mesmos Igreja. Ou seja, um debate de teologia bíblica, na verdade, era uma fachada. O problema essencial que está por trás é um problema eclesiológico. Ou seja,
eu estou fazendo a teologia bíblica entrar num esquema eclesiológico que é o esquema eclesiológico protestante clássico. Ou seja, a Igreja dos Apóstolos... ninguém sabe exatamente o que era; o que veio depois disso é uma pluralidade indeterminada e, portanto, tudo que veio na sequência é plenamente inventado ou feito ao modo como se queria fazer. Enfim, e aí as eclesiologias vão surgindo como alternativas de um grupo ou de outro para o problema de como vive a fé cristã. E a pergunta fundamental é: o que é a Igreja? Vejam, essa pergunta parece ser uma pergunta secundária, uma pergunta
até, eu diria, um tanto tosca. Mas ela é a pergunta dos nossos dias. É a pergunta principal do nosso tempo e é a pergunta que está por trás de todos os movimentos de reforma, assim como de todos os cismas, de todas as heresias e assim por diante. O que é a Igreja? O conceito de Igreja, ou o termo Igreja, aparece no Novo Testamento por todos os lados. Digo, no Evangelho de São Mateus, aparece duas vezes, e o Evangelho de São Mateus é o único que de fato cita a palavra Igreja. Mas depois, em Atos, nas
epístolas, especialmente nas epístolas de São Paulo, mas também em todas as outras, no Apocalipse, etc., aparece esse termo Igreja. Ora, será que os apóstolos ou os escritores eclesiásticos, aqueles que escreveram os escritores sagrados que escreveram o Novo Testamento, quando falavam de Igreja, estavam pensando em coisas diferentes ou eles tinham uma ideia bem determinada do que eles estavam falando? Essa é a pergunta fundamental. Por quê? Porque se nós entendemos que eles não sabem do que estão falando, eles estão falando de uma espécie de fantasma, de uma ideia genérica, então, digamos assim, as múltiplas e infinitas eclesiologias
protestantes têm razão. Ou seja, cada eclesiologia é plenamente válida. Porém, isso coloca em xeque a própria inspiração divina da Escritura. Por que que inspiração divina é essa que inspira os autores sagrados a conceitos e termos completamente equívocos, em que um não tem relação com o outro? E sustentando-se essa ideia, digamos assim, etérea de Igreja, eu tenho que demolir a inspiração divina da Sagrada Escritura e o edifício da reforma cai por terra. Também, para destruir a Igreja Católica, você também tem que destruir a reforma; não tem muito para onde escapar. Ora, se a Escritura é inspirada
e se os autores do Novo Testamento, quando falam de Igreja, estão pensando na mesma realidade, então a Igreja é uma sociedade. Os reformadores acreditavam nisso; eles acreditavam que a Igreja era uma sociedade. Eles divergiam na natureza dessa sociedade. Uma sociedade de quê? Essa era a questão fundamental. Mas que é uma sociedade, todos eles acreditam que é uma sociedade. Se para Calvino é a sociedade dos predestinados, para Lutero é a sociedade dos crentes. Enfim, você vai ter que resolver outros problemas que são subsequentes, que é o fato de que a Igreja tem joio e trigo. Então
você vai ter ali, inegavelmente, crente e não crente, homem piedoso e homem não piedoso, predestinado e não predestinado. Então, mais uma vez, ele se retorna ao problema: Igreja é um termo equívoco. Ou seja, existe uma realidade chamada Igreja que ela subjaz a uma série de noções de Igreja. Então, volto ao conceito. Voltando ao conceito esquizofrênico, volto ao problema fundamental do Novo Testamento. Percebem? Não sei se vocês estão acompanhando o raciocínio que estou fazendo. Ora, então eu preciso admitir que a Igreja é uma sociedade e que ela é uma sociedade visível e tangível. Aliás, seria muito
estranho que o Verbo tenha se encarnado para deixar todo mundo na incerteza. E seria muito estranho que, por exemplo, ele tenha dito que edifica sua Igreja sobre a pedra, mas ninguém sabe onde ela está, ou que a Igreja seja uma entidade aleatória. Como alguém dizia esses dias, um senhor veio conversar comigo; ele é protestante batista e ele se apegava à ideia de... Igreja, apenas a partir da, digamos, da natureza semântica da palavra "igreja". Então, igreja é uma assembleia onde tem uma assembleia de gente. Ali, a igreja... bom, então a torcida do Corinthians é uma igreja,
ou qualquer agremiação humana é uma igreja. Veja a coisa teologicamente mais profunda. E é por isso que, quando São Roberto Belarmino tenta responder essa questão e a contrasta, a meu ver, de modo definitivo contra os reformadores, ele dá uma natureza visível e verificável da igreja. A igreja é a sociedade dos fiéis que professam a mesma fé, celebram os mesmos sacramentos e estão sob a jurisdição dos mesmos pastores. Esta é a definição de igreja; ela não é, como querem os tradicionalistas, contraposta pela eclesiologia do Concílio Vaticano I. Não, a eclesiologia do Concílio Vaticano II explora a
natureza da igreja como um mistério, a fim de não esvaziá-la numa fria definição sociológica, mas não nega essa mesma natureza sociológica que a igreja tem: ela é uma sociedade que se verifica nessas três características principais: a profissão da mesma fé, a celebração dos mesmos sacramentos e o governo eclesiástico dos mesmos pastores, ou seja, sob a autoridade do Romano Pontífice. Hoje, todos esses três traços da igreja estão sendo colocados em questão por diversas pessoas. Por exemplo, há aqueles que privilegiam a profissão da mesma fé e ficam procurando picuinhas doutrinais aqui e ali, apontando quem é herege
e quem não é, para se apresentar como a verdadeira igreja. Pouco importa se essa verdadeira igreja está reunida num cocheiro, se é constituída por um grupo de 15 pessoas doidas, ou seja lá o que for. Outros privilegiam a questão dos sacramentos: não é que tem que ter a mesma liturgia, a liturgia tradicional? Vejam, hoje a ideologização do rito romano tradicional é um problema, visto que a igreja sempre foi plurirreligiosa. Mas veja, por exemplo, nós temos o rito de Asai e Madai, que é um rito católico que não tem as palavras da consagração. O sacerdote pede
a Deus que torne o pão no corpo de Cristo, torne o vinho e sangue de Cristo, mas não tem propriamente ditas em primeira pessoa as palavras da consagração. É um rito católico. Então, vejam, quando eu privilegio um aspecto em detrimento do outro, eu posso cometer um atentado contra a unidade da igreja. E, em terceiro lugar, nós temos o regime eclesiástico, ou seja, os mesmos pastores, o que para nós é absolutamente vital. E eu fico muito preocupado com pessoas que estão vindo para a Seara católica e, aqui chegando, com o ímpeto de questionar a autoridade suprema
do Papa, a legitimidade do colégio episcopal e assim por diante. Porque, ou seja, você sai do protestantismo para cair numa seita de matriz católica. Saiu do protestantismo, mas o protestantismo não saiu dele. E inventam coisas das mais esdrúxulas, por exemplo, isolando textos ou falas dos pastores da Igreja do seu contexto original, o que é muito problemático. Porque é diferente você ter, por exemplo, uma declaração, uma encíclica, uma bula, um ensino magisterial solene ou menos solene; e, por exemplo, uma fala que eu faço num encontro e que eu digo alguma coisa no sentido antropológico. É muito
diferente uma coisa da outra. Então, vejam, essas três características são simultâneas e constituem a igreja; elas são constitutivas do que é a igreja: simultaneamente a mesma fé, os mesmos sacramentos e o mesmo regime eclesiástico. Se eu não considero essas três características da igreja simultaneamente, eu decaio num tipo de eclesiologia que foi condenado pela Igreja. Vejo que, recentemente, houve um congresso em São Paulo no qual houve uma mesa redonda e falaram sobre esses temas de tradicionalismo católico, sedevacantismo, não sei quê. E alguém disse: "não, o sedevacantismo não é herético", porém fez, falou lá errado, por causa
de eu levantei a mão e falei alto: "lá existem heresias eclesiológicas". Existem, sim, heresias eclesiológicas, por exemplo, o joaquimismo. Em que consiste o joaquimismo? O joaquimismo consiste na crença de que existe a estrutura da igreja, mas dentro dela há uma igreja espiritual que é a verdadeira igreja. E todas as afirmações eclesiológicas, todas elas, extraem a sua força da gnose antimaterialista. Ou seja, a igreja precisa ser espiritual, porque, no fundo, a matéria é má. E, como a igreja precisa ser espiritual, acreditava o abade Fiore, que então vai chegar um tempo em que a igreja será tão
espiritual que não haverá mais sacramentos, que não haverá mais sacerdócio, que todos serão místicos, e o que importa é uma espiritualidade alta, elevada, imaterial e assim por diante. Ou seja, o joaquimismo é uma heresia que está na matriz da eclesiologia protestante, porque o que há de comum entre todas as eclesiologias protestantes é justamente a invisibilidade da igreja; a igreja tem que ser uma estrutura invisível, conhecida apenas por Deus. E, como costumam fazer os nossos irmãos, eles vão pegando textos isolados e tirando o contexto. Por exemplo, "o reino de Deus não está aqui ou ali, mas
ele está no meio de vós". Cristo está falando sobre a graça, eles estão entendendo a igreja como um todo e assim por diante, ou onde dizer "o filho do homem está aqui ou está ali, não acrediteis", porque, quando o filho do homem voltar... Bom, Jesus está falando da parusia, Ele não está falando da sua presença mística na igreja. Não está falando disso. São textos que são, digamos assim, desnaturalizados para darem sustentação à heresia jainista que, no fundo, está por detrás disso. Daí, há um livro do... Do Padan Rubac, com o qual tem muitas diferenças, porém
é um livro interessante. Ele fala sobre a influência e a posteridade histórica de Joaquim de Fiore, assim como, por exemplo, existe outra heresia eclesiológica que é o galicanismo, que diz assim: "Tem um Papa em Roma, mas aqui a gente faz o que a gente quer. É a gente que decide quem vai bispo, é a gente quem ordena quem a gente quer, e a gente vive a disciplina eclesiástica ao nosso bel-prazer." Mas é verdade, tem o Papa lá em Roma; isso é herético, porque eu preciso estar sobre a mesma unidade jurisdicional. Eu não posso cometer um
atentado contra a unidade jurídica da Igreja sem deformá-la. É impossível que isso aconteça. As variações do galicanismo, como o josefinismo e outras, todas partem da mesma noção, que, no fundo, é a politização da Igreja. Porque vejam, quando os soberanos nacionais quiseram ter hegemonia sobre as decisões internas da Igreja, isso já é um problema desde a polêmica das investiduras com São Gregório VI, mas volta quando os Estados nacionais são formados nos séculos 18 e 19, e que depois se reconfiguram em propostas de Igreja fora da Igreja. Ah, tem um Papa; rezamos por ele, mas nós não
somos obedientes àquilo que ele determina. É um outro erro. Então, o que nós precisamos observar é que a Igreja simultaneamente carrega estas três determinações da sua natureza, e essas três determinações não podem ser corrompidas em benefício de uma delas, sem deformar a própria natureza da Igreja. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto: São Roberto Belarmino mostra como a natureza dessa sociedade, que é a Igreja, é uma natureza perfeita, ou seja, ela é idônea para atingir os seus fins, e tal idoneidade é uma demonstração da sua origem divina. São Tomás já havia dito, na Suma Teológica,
que uma sociedade perfeita deveria ser uma espécie de misto dos três regimes humanos possíveis: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Mas São Roberto Belarmino eleva isso ao máximo do seu apogeu. Ele mostra que é necessário que haja uma monarquia do Romano Pontífice e que o Romano Pontífice justamente tem que ser um monarca supremo, porque o seu ofício é custodiar a fé católica. Porque a fé católica tem que ser uma, e a ele que cabe o encargo por todas as Igrejas. É muito interessante que São Roberto Belarmino configure a sua eclesiologia em função da fé,
porque vejam, é bastante evidente: se é um só Deus, uma só fé, um só batismo, eu tenho que ter uma cabeça visível que seja o garante dessa unidade. Qualquer padre sabe que, se você faz uma reunião de conselho e fala assim: "Vamos ter um quer mestre mês que vem", e todo mundo diz "vamos", então tá bom. Aí você fica sentado e espera o dia chegar; não vai acontecer nada. Você tem que ter o responsável pela barraca A, o responsável pela barraca B, o responsável por isso, o responsável por aquilo, e você tem que colocar, por
assim dizer, um CPF por trás do CNPJ; senão, você não aciona alguém que tem esse ofício. O Novo Testamento demonstra que Cristo não apenas fundou uma instituição, uma sociedade; e se ele não o tivesse feito, que Deus encarnado é esse que vem salvar o mundo e deixa tudo assim, à livre escolha de cada um, ao livre arbítrio de cada um? Cada um faz o que quer, e cada um tem que encontrar o seu caminho. Pera aí, não teria sentido se a divina revelação, da qual ele é o cume, é a verdade sobrenatural que nos guia
para a vida eterna. Então, ele tem que fundar uma sociedade que seja a custódia dessa verdade. Mas não basta isso: você tem que colocar um CPF por detrás desse CNPJ imenso. Estou falando em termos metafóricos, né? Ou seja, você tem que ter alguém que tem esse ofício e que, justamente, ele tem um poder supremo, porque a fé é o bem supremo, e que ele tem uma jurisdição universal, e que ele não seja súdito de ninguém. Por isso que ele tem que ter até um estado, porque ele tem que defender a fé. Ora, só que não
basta defender a fé; é preciso que a fé seja ensinada. E para que a fé seja ensinada, você não pode ter o doutor universal da Igreja lá em Roma, e basta. Você precisa ter aristocratas bispos que são príncipes próprios das suas circunscrições, e são eles que vão ensinar a fé diretamente ou através dos seus colaboradores mais diretos, que são os presbíteros, contendo sob sua jurisdição uma Igreja perfeita, que nós chamamos de Igreja particular, porque ela é uma verdadeira partícula da Igreja. Ou seja, ela tem todas as notas de eclesial dentro dela. Ela tem um bispo
que pode celebrar todos os sacramentos, ela tem um mestre, que é aquele que é responsável por dar o ministério da palavra para todos, ela tem um governante único que está unido à sua diocese, inclusive de maneira expal. Antigamente, os bispos não renunciavam, né? E depois da década de 70, começaram a renunciar. Eu tenho minhas dúvidas se isso foi uma coisa boa, porque, de fato, a unidade entre o bispo e sua diocese é uma unidade teológica. Ele não é uma espécie de legado do Papa; ele é príncipe próprio. Ele é o pai daquele povo. Antigamente, e
vocês vejam que existem pequenas diferenças que são interessantes. Geralmente, os padres têm que fazer o em pé, mas os bispos podem fazer sentados, pois eles são os mestres. Antigamente, havia uma disciplina que, quando era missa pontifical, ficavam vários clérigos sentados nos pés do bispo, às vezes uns velhinhos assim, com a perna; uma coisa um pouco... mas era. Interessante, pois são os filhos sentados aos pés do Pai. É ele que tem o ofício de ensinar adaptado para suas ovelhas. Me lembro que Santo Afonso, na sua vida, chegou a um momento em que ele foi ordenado. Ele
foi nomeado bispo com 76 anos, uma coisa assim. E aí, quando ele estava com seus 80 e poucos anos, ele pediu ao Papa, talvez fosse Pio XIV, a renúncia. O Papa falou: "Não. Enquanto você estiver, enquanto você tiver sombra, você governa a diocese com a sua sombra. Você não vai sair daí." Forte isso. Vejam o fato de que a Igreja particular seja uma verdadeira Igreja, ou seja, ela pode prover para si mesma todos os meios de salvação. Também é importante sociologicamente, visto que é muito difícil você dominar a Igreja toda, porque ela está muito desarticulada.
Você tem inúmeras dioceses por todos os lados. Você teria que dominar uma, depois dominar outra, e quando você vai dominar outra, essa daqui você já não consegue mais, e assim por diante. Quer dizer, a unidade da Igreja se sustenta por essa monarquia e por essa aristocracia. Mas São Roberto Belarmino também coloca a democracia que existe entre os clérigos inferiores, que são os presbíteros, e os clérigos ainda mais inferiores, porque qualquer um na Igreja pode ser bispo, pode ser padre. Qualquer um, pobre ou rico, de uma família honesta ou menos honesta, de uma família católica ou
não tão católica; qualquer um pode ser sacerdote. E exatamente por isso, como a Igreja Comunidade, reunida em torno da fé, dos sacramentos e do mesmo regime eclesiástico, você tem uma espécie de porção dada a cada presbítero com o pastor próprio da sua igreja, quer dizer, o pároco é um pastor próprio. Isso está muito prejudicado hoje em dia, mas ele é o pastor próprio da sua paróquia, e ali ele é o responsável por garantir que cheguem os meios de salvação desde a Igreja para o povo, individualmente, para cada ovelha. Então, na estrutura da Igreja, nós temos
dada a sua capacidade de chegar ao seu fim, de ser a Igreja de Cristo. Notem que São Roberto Belarmino esclarece uma coisa: o Santo Padre é o único bispo do mundo que é bispo de Roma porque é Papa, e não o contrário. Ele explica que no conclave, os cardeais elegem o candidato ao sumo pontificado, mas ele só se torna Papa quando lhe perguntam: "Aceita a sua eleição como Romano Pontífice?" Quando ele diz "aceito", Deus o faz tornar-se Papa, e por ser Papa, bispo de Roma. Ou seja, a importância capital da pessoa do Romano Pontífice para
a Igreja é constitutiva até os dias de hoje. É Cristo diretamente dizendo: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu estou edificando a minha Igreja." Não é algo humano; há um mistério sobrenatural por trás disso que os nossos olhos não podem alcançar. Em terceiro lugar, São Roberto Belarmino fala sobre as notas da Igreja. As notas são aquelas características pelas quais a Igreja pode ser identificada. Ele menciona 11 notas, mas eu não vou mencioná-las todas aqui, porque não é o meu objetivo fazer uma exposição cansativa. Eu também queria dar a oportunidade de vocês perguntarem, se quiserem.
Mas dentre todas as notas, você percebe claramente as quatro notas principais que estão no Credo: ela é Una, assim como toda substância metafisicamente é constituída sobre a unidade do composto. A Igreja é Una, e ela é Una na sua imensa diversidade. Por exemplo, recentemente eu vi um teólogo presbiteriano dizendo que essa história de que a Igreja Católica é Una é uma grande mentira, porque tem um monte de divisões dentro da Igreja. Ele não entendeu em que consiste a unidade. A unidade não consiste em a gente ter o mesmo jeito; a Igreja não é uma fábrica
de salsicha, onde todo mundo é padronizado igual. Pelo contrário, vejam que nas igrejas protestantes todo mundo é meio que igual. Na Igreja Católica, não; você tem com véu aberto, com véu preto, outra com não sei o quê, você tem jesuítas, franciscanos, beneditinos. Você tem uma variedade imensa, é uma verdadeira Arca de Noé; você tem de tudo, literalmente de tudo. Porém, essa pluralidade existe numa unidade radical em torno dos três princípios: o mesmo Credo. E todo católico tem aquela sábia reserva: se algo que eu penso não está de acordo com o que a Igreja pensa, eu
submeto o meu juízo ao juízo da Igreja. Todo católico pensa assim. É o padrão, ainda que possa haver alguns focos de heterodoxia aqui ou ali. Em segundo lugar, a unidade sacramental: todos frequentam os mesmos sacramentos, os mesmíssimos sacramentos. E por fim, a unidade de governo. Por exemplo, se aqui na diocese começa a surgir um grupo estranho, logo ele vai ser chamado à comunhão, ou senão ele não é eclesial; a coisa não existe. Não existe, digamos assim, 50 tons de cinza na eclesialidade. Ou você está debaixo da mesma autoridade episcopal ou já era; você está fora.
Não tem meio termo nisso aqui. A gente sempre pergunta nas dioceses: "Quem é o seu pároco?" Eu me lembro que há alguns anos atrás tinham os chamados leigos diocesanos. Talvez fosse só lá pelo nosso canto, não sei se aqui também tinha. Era o Fulano que era de, sei lá, da PJ. Aí você pergunta: "Qual é a sua paróquia?" Não, não; eu sou da diocese. Não tem paróquia, não é ovelha de ninguém. Na Igreja Católica não existe isso; todo mundo é de alguém. Ninguém está solto, absolutamente ninguém. A santidade da Igreja é outra nota contra a
qual levantam 100 objeções. Porque, afinal de contas, você olha para a gente aqui e fala: "Bom, eles não são santos propriamente ditos, né?" O problema é o seguinte: a nota da santidade da Igreja ela refuga nas virtudes heroicas dos seus maiores astros e feitos por Deus, né? Então, é muito fácil você pegar, por exemplo, um, sei lá, um protestante piedoso e comparar com um católico canalha. É muito fácil você fazer isso. Eu quero ver você pegar e comparar com o Padre Pio, ou comparar com Curé d'Ars, ou comparar com São Tomás de Aquino, ou comparar
com Santo Inácio de Loyola, com Santa Teresa d'Ávila, com São João da Cruz. Isso você não consegue fazer, porque a nota da verdadeira santidade está presente na Igreja até os dias de hoje, e não há século em que você não tenha grandes esplendores de santidade refúgio na Igreja. Não existe isso. O fato, inclusive, veja, um processo de canonização, teologicamente, ele tem como ponto de partida a chamada fama de santidade. O que é a fama de santidade? Veja bem, quem canoniza, ou seja, quem é o promotor de uma causa de beatificação? É Deus! Começa a surgir
a história da freira que morreu aqui, mas será que ela não é santa? E começam a dar graças, graças e mais graças por intercessão dela. O pessoal começa a entender qual era a vida dela, vão estudar, abre-se um processo para verificar, de fato, mas todo o processo que dá é um juízo humano. Nós vamos ver Deus realmente atuando no processo de canonização porque Ele quer glorificar-se na vida daquele fiel que está caminhando rumo à glória dos altares. Deus quer ser glorificado na vida dele! O culto que nós prestamos aos santos recai primeiramente na Santíssima Trindade.
Essa é a doutrina católica, ou seja, a visão de Deus para o catolicismo é um pouco diferente da visão de Deus protestante, porque o Deus protestante é tudo para mim. Na visão católica, Deus quer ser glorificado na vida deste, na vida daquele, na vida daquele outro. Nós vamos celebrar a festa de todos os santos no domingo e, quando nós olhamos para a Igreja, o que nós vemos são grandes luzeiros de santidade por todos os séculos, aos quais Deus glorificou. Não é glória humana, é algo dado por Deus. Ele que realiza a glória de Deus é
o homem. A glória de Deus é o homem vivo! Santo Irineu, né? Bom, católica é a terceira nota, a catolicidade. Não é um mero título. Todo mundo fala, né? Hoje em dia, tem o pessoal que fala que placa de igreja não salva ninguém. O problema é que não é a questão de que a placa católica não é uma denominação. A catolicidade é a natureza da Igreja. Nas palavras de São Vicente de Lérins, dito de modo português (não vou, né? O pessoal fala que é "São do Lorrain", mas dito de modo brasileiro), "São Vicente de Lérins
é a Igreja Católica porque ela conserva a fé que foi crida sempre e em todo lugar por todos os cristãos católicos." Essa é a catolicidade. Quer dizer, não existe um período da história, desde Cristo até os nossos dias, em que você não verifique a presença da Igreja no mundo e que ela tenha desaparecido. A ideia, por exemplo, que de vez em quando a gente vê por aí: "Não, mas a nossa Igreja é a verdadeira Igreja cristã, ela permaneceu escondida por 1600 e tantos anos", e aí foi aparecendo aos poucos. Pois é, é uma presença histórica
contínua, que nunca ninguém detectou. Isso é um feito, né? Você tem uma presença social. Não é uma presença individual, é uma presença social indetectável por todos os séculos que remete diretamente a Cristo. É óbvio que isso não existe; isso é uma balela. Ao contrário, desde os seus primeiros séculos, a Igreja é católica, ou seja, você não tem um momento na história da Igreja em que você não verifique a sua presença. Algumas vezes, ela pode estar em algum lugar, por exemplo, na Ásia Menor, nos países que foram conquistados pelo Islã, e assim por diante. Porém, você
percebe a ação histórica da Igreja com uma grande continuidade ao longo de todos os séculos. E por isso, ser católica não é uma denominação, né? Sabem que a Igreja Católica até hoje não entrou para o Conselho Mundial de Igrejas. Por esta razão, porque ela não se entende como uma denominação entre outras. Não é isso. Ela é uma unidade histórica e social que remonta aos Apóstolos. Apostólica porque ela conserva a semente da sucessão apostólica que é visível no episcopado. Dizem que, numa cerimônia de ordenação episcopal, são três os bispos que ordens. Por quê? Porque, caso houvesse
algum que cuja sucessão apostólica fosse discutível, os outros sanariam. Veja que coisa interessante! Portanto, quanto mais passa o tempo, mais a originalidade apostólica vai sendo perfeita, ela vai sendo aperfeiçoada. Percebe o que eu estou dizendo? Ou seja, para cada bispo ordenado, você tem três ordens. Portanto, o que é ordenado, digamos assim, tem a semente apostólica de um modo mais intenso, mais direto, do que talvez um que tivesse 1000 anos atrás. Nesse sentido, a garantia só aumenta, a garantia não diminui; a garantia só aumenta. Quanto mais passa o tempo, mais a Igreja apostólica. Isso não é
uma retórica, isso é uma realidade que você toca, que você percebe, que você remonta. Não é uma unidade documental, é uma unidade nos... e você verifica essa apostolicidade aonde? Nas próprias Igrejas. Vejam, o que é uma igreja metropolitana? Ela é a maior e mais antiga igreja de uma província. E dentre todas as províncias, você tem uma que... É primacial que foi a primeira, a mais antiga e a maior de todas elas. Para cada igreja primacial, você tem outras igrejas primaciais das quais ela dev veio. A Igreja sempre se organizou de forma provincial de igrejas metropolitanas.
Sempre houve primazia na Igreja, mesmo entre os bispos. Por que isso? Porque assim se elucida a natureza apostólica da Igreja. Ou seja, no final das contas, você vai chegar em uma Igreja apostólica, ou na Igreja de Roma, de Antioquia, de Alexandria e assim por diante. Você vai chegar a uma Igreja apostólica. Essas quatro notas, que de certa maneira são desdobradas por São Roberto Belarmino, não basta que eu diga, tipo assim: a gente faz junto um grupo de gente e diz o credo: "Creia em Deus Pai, Tal, Tal; creia na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica."
Não, se você realmente não está nela, pode dizer o que quiser. Isso não é uma questão discursiva, isso está na ordem da realidade. Ou seja, a eclesiologia católica é uma eclesiologia tangível, concreta, real, de um Deus que se fez carne e que criou uma continuidade histórica presente até os nossos dias, que tem os seus momentos de luz e sombras, que foi se tornando mais autoconsciente do que ela é ao longo do tempo. Em vão procuram, por exemplo, nos primeiros séculos, um exercício do poder jurisdicional do romano Pontífice sobre toda a Igreja, quando isso era materialmente
impossível. Mas a realidade do romano Pontífice já estava presente, inclusive reconhecida a sua primazia, que em determinados momentos históricos nem sempre foi, digamos assim, tida em sua plenitude de jurisdição. Isso foi desenvolvido ao longo dos tempos. Ou seja, e assim termino: a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade da Igreja não são meros títulos ou meros nomes, mas têm concretude real e manifestação tangível para todos os homens e para quem quiser ver. Alguém tem alguma pergunta? Pois não, seria interessante levar o microfone? Não sei, talvez não. Diga, certo, são escolarizados no sentido de que
não fazem parte da Igreja. Ok, Apost... não. Então eles não podem certamente, certo? Certo. Mas depende. Tudo bem. Por exemplo, o batismo... Não, não, não, depende do poder de ordem. A graça de Deus é de uma abundância incomensurável, e os protestantes professam a fé em Jesus Cristo como Deus. Então, embora não tenham todos os meios de salvação, nós não podemos dizer que, se estão de boa fé nessas comunidades, eles não possam ter acesso à graça de Deus, porque pela fé em Jesus, eles a têm, com todos os limites que isso implica para nós católicos. Nem
sempre nós nos damos conta, nós nem sempre nos damos conta da profundidade dos sacramentos, do privilégio que é ter os sacramentos. Por exemplo, uma coisa é alguém se arrepender por condição perfeita, que sempre será limitada; outra é ela receber a graça de maneira perfeita pelo sacramento, ainda que a contrição seja imperfeita. Uma coisa é alguém chegar a uma união mística com Cristo, que é dificílimo, e outra coisa é o fiel que comunga o próprio Cristo na Eucaristia e que, desse modo, na hora em que ele comunga, está em uma união equivalente da sétima morada dos
grandes místicos, porque está de maneira perfeita unida ao Cristo. E assim por diante, os sacramentos, quando São Tomás diz que eles são aperfeiçoamentos do culto divino, mostram a importância e o valor que eles têm para a nossa vida normal, especialmente a confissão e a comunhão. Agora, eu não posso dizer que, à parte dos sacramentos, não existe acesso à graça pela fé. Ela existe, mas é privada de aperfeiçoamentos anteriores, por exemplo, e assim vai. Não é deficiente? Não há dúvida disso, mas alguém tem pergunta? Pois não, lá. A Igreja é santa em primeiro lugar porque ela
não é a soma dos seus membros nesta terra. Quando nós falamos da Igreja, nós temos que entender que a maior parte da Igreja triunfa no céu e é santa. No purgatório, embora ainda se purificando, mas já são benditas, já são bem-aventurados. Depois, dentre os fiéis, os meios de santificação são abundantemente distribuídos pela Igreja: os sacramentos, a pregação que produz a fé e, entre os fiéis, se manifesta uma santidade que é muitas vezes extraordinária. Você percebe as ações heroicas, isso não se dá apenas com os grandes santos. Eu vejo isso normalmente. Então, por exemplo, se alguém
morreu, uma senhora que teve um câncer avassalador de uns seis meses mais ou menos, sofreu terrivelmente, embriagada de uma alegria espiritual e de um agradecimento a Deus e de um espírito de união com Cristo, que realmente me edificou muito. Humanamente, isso é impossível, isso é virtude heroica. E assim existem muitas pessoas que manifestam virtudes heróicas no dia a dia. A gente vê isso. Um padre toca isso diariamente no confessionário, por exemplo, quando ele vê o que as pessoas são capazes de fazer por Deus, e você vê que aquilo não pode ser humano. Aquilo realmente é
sobrenatural. Então a santidade da Igreja se manifesta desde coisas assim, mais ordinárias, até esses grandes fulgores de santidade que culminam em Jesus e Maria, a ordenação, uma sucessão de ordenações episcopais, mas não só. Vejam, quando a gente fala de Sagrada Tradição, os protestantes têm uma grande dificuldade de entender isso, porque eles imaginam que a chegada da tradição são os escritos extrabíblicos dos padres apostólicos, etc. Não é só isso. A tradição são as próprias igrejas. Então você tem a Igreja de Roma, que está lá desde São Pedro; você tem a Igreja de Antioquia, também que está
desde São Pedro, que foi o primeiro bispo de Antioquia; você tem a Igreja de Alexandria, na qual estava São Marcos. Você tem... É uma coisa real. Você tem as pessoas que estão nessa sucessão ininterruptamente e, quando você percebe que a ordenação episcopal, ela vai produzindo mais apostolicidade, ao invés de ser o contrário, porque o princípio da entropia é esse: quanto mais passa o tempo, mais aquilo se corrompe. Só que, no caso da sucessão apostólica, é o contrário; quanto mais passa o tempo, mais apostólica fica, porque a linhagem apostólica se confirma. Não entendeu? Você não entendeu
o lance dos três bispos consagrados. Quer dizer, se algum deles ali pudesse ter alguma contaminação, alguma coisa assim, por que eu estou querendo chamar de contaminação, sei lá, um desses bispos foi ordenado pelo presbitério de uma igreja, por exemplo. Para... são necessários três, pelo menos. Então, você tem uma espécie de purificação e ela se torna cada vez mais apostólica. É o contrário do que do princípio da entropia, né? Como a gente entra no rito mesmo, na nomeação e no rito de ordenação, isso é muito lindo. Eu conheci um bispo que fez a história, né, quando
a igreja estava sendo perseguida na Lituânia pelos comunistas. Então, todo mundo se escondeu e o padre foi trabalhar lá como operário numa fábrica. Rapazinho, eles ordenavam assim: pegava fulano, olha, católico tal, eu ordenava, porque a igreja estava perseguida e não dava para você estabelecer ali os critérios normais. Então, um sacerdote mais velho chegou para esse padre e falou assim: "Olha, eu quero te convidar para um retiro no próximo final de semana. Eu vou para uma chácara tal, você esteja lá no sábado." Ele foi. Aí, o padre disse: "É o seguinte, os bispos estão aqui no
nosso país e eles não podem deixar que morra a semente apostólica. Então, eles decidiram que vão te ordenar bispo essa noite. A única coisa que você faz é ficar caladinho; às 11 e pouco da noite, eles vão entrar aqui e você não faça nada. Fique quieto." E assim foi. O padre foi lá, 11h da noite, todas as luzes apagadas, entram aqueles senhores vestidos de camponeses, aí um pega o papelzinho, tal, o outro, tal, olho na cabeça, termina um beijo aqui, um beijo aqui de cada um, tal. Ele nem sabe falar nada, ele nem sabe como
é que foi, quem é que estava lá. E depois, quando parou a perseguição, ele foi fazer o seminário, foi estudar filosofia, teologia, essas coisas todas. Então, isso não é uma coisa que você toca, é real, né? São nessas coisas que a gente percebe a seriedade da Igreja Católica. Quer dizer, a igreja não é um negócio qualquer, né? Você tem que realmente... essa corrente apostólica que ultrapassa todas as barreiras. Que mais? Ah, meu filho, não é um problema pastoral dos mais comuns e a gente vai morrer e as coisas vão estar difíceis. Então, problema pastoral é
o que mais tem; sempre haverá e teremos que resolvê-lo até o fim dos tempos. Rezar por isso, trabalhar, fomentar a unidade. Nós temos que sempre ser fermento de unidade na igreja, sempre, porque isso é o que edifica a igreja de verdade. O problema não é esse: sacrificar a eclesiologia em função da soteriologia. O problema ainda é da salvação. O problema é o seguinte: é que você sacrifica a divina revelação em função de uma soteriologia barata, ou seja, o que é a igreja é divinamente revelado e é de fé. Eu não posso dizer: "Ah, bom, então
para apresentar a salvação, o que que eu vou fazer? Vou fazer o contrário do que Cristo fez e vou apresentar uma salvação, anábi, uma salvação, digamos assim, lefer, em que cada um faz do seu modo." Não, isso não é apresentação da salvação; isso é um barateamento da salvação. Porque eu acho que é um dos problemas também principais: Cristo não é apenas o nosso salvador; ele é o nosso Senhor, ou seja, ele não é apenas o que me redime. Eu tenho que obedecê-lo; eu tenho que viver de acordo com o que ele quer. No fundo, veja,
essa sociologia barata, ela é individualista e, em última análise, ela vai às antípodas do que é a noção de salvação do cristianismo, que é totalmente baseada no alterum, que é o Cristo. Ou seja, não sou eu que me batizo, não sou eu que me absolvo, não sou eu que me santifico; é Cristo. Então, o cristianismo é uma religião da obediência. Eu tenho que me submeter; eu tenho que entrar na porta da salvação. Notem que, por exemplo, há um texto que eu sempre gostei muito no Pentateuco, que é o de Levítico, agora não sei se é
9 ou 19, que é o sacrifício de Nadab e Abiú, em que Deus havia estabelecido o rito para o sacrifício e o sacerdócio aarônico, e eles fazem exatamente o que tem que ser feito e Deus manifesta a sua glória, etc., e todo o povo se regozija. Aí, os dois filhos de Arão, chamados Nadab e Abiú, pegam os seus turíbulos e vão oferecer incenso que não foi ordenado diante da arca, e o que acontece? Eles são fulminados com fogo porque foram apresentar ao Senhor um fogo estranho. Quando São Pedro diz da manhã de Pentecostes: "Em nenhum
outro há salvação, porque debaixo do céu nenhum outro nome foi dado entre os homens, pelo qual importa que sejam salvos" — na tradução do Almeida, essa aqui é a tradução perfeita, do Almeida corrigido e fiel, aliás Almeida Revista Atualizada. O que na verdade eles estão estabelecendo é um princípio permanente: na igreja, eu tenho que passar pela porta. Sou a porta, né? Jesus diz: "Eu sou a porta". Eu tenho que passar, eu tenho que passar por Ele. Não sou eu que invento o meu meio. Ah, não! É que a salvação é Cristo; o resto não importa.
Pera aí, eu estou apenas dizendo isso, mas eu estou fazendo o contrário. Eu estou fazendo, na verdade, o que eu quero; por isso que eu digo: é um barateamento da soteriologia que sacrifica a Divina Revelação. Agora, se você sacrificou a Divina Revelação, pronto, você não tem mais propriamente o cristianismo na sua originalidade. Cristo disse a Pedro: "Apascenta minhas ovelhas". É que a Igreja Católica não teve um ato fundacional, tipo: "Vamos inaugurar aqui a Igreja Católica". Não! A Igreja Católica foi inaugurada na Encarnação e no que Cristo realizou com seus apóstolos. A gente diz que a
Igreja, o Concílio Vaticano II tem uma fórmula muito bonita que a Igreja foi preparada no Velho Testamento, depois ela foi... não me lembro agora exatamente, mas foi inaugurada em Pentecostes. Ela aparece em Pentecostes, mas ela passa por um processo de gestação, nasceu na cruz, inaugurou em Pentecostes. Acho que é isso. Vamos lá, ortodoxia. A Igreja, inclusive, é muito interessante isso: antes do cisma do Oriente, todos eram católicos. Isso é muito importante! Esses dias eu vi um fulaninho dizendo assim: "Não, a Bíblia não foi conservada pela Igreja Católica, foi conservada pela Igreja Ortodoxa". Pera aí! A
Igreja Ortodoxa propriamente surge no cisma de 1054. E o que acontece? A Igreja Ortodoxa tem um modo diferente. Aliás, os cristãos orientais, de maneira geral, não é só a Igreja Ortodoxa: os cristãos orientais, de maneira geral, têm um modo diferente de lidar com a fé do que os ocidentais. Os orientais, eles são mais místicos. Eles são um pouco avessos à racionalização. Mesmo não sendo hereges, como dizia o Cardeal Newman, ficou um lastro de monofisismo no Oriente, em que, no fundo, eles sempre se relacionam com um Cristo espiritual. Têm um pouco de dificuldade de lidar com
a materialidade da fé, mesmo não sendo hereges. Eles são católicos do ponto de vista da doutrina. Ora, quando nós passamos à doutrina da Trindade e à doutrina da Eucaristia também, os ortodoxos nos acusam de sermos muito racionalistas, de ficarmos tentando fazer uma espécie de anatomia da Trindade. O que está por trás da polêmica sobre o filioque, que não é mais uma polêmica, hoje tanto a Igreja Católica quanto a Igreja Ortodoxa, no fundo, no fundo, pensam exatamente a mesma coisa. É mais ou menos o que aconteceu com os armênios: quando eles voltaram para a comunhão, conservaram
a profissão de fé monotelita armênia, mas sabendo que eles não são mais monotelitas. É uma questão apenas de tradição. Então, o filioque na cabeça, ou seja, visto desde a perspectiva oriental, é uma racionalização excessiva que foi provocada por uma ingerência aí do Carlos Magno, etc. Tem toda uma questão acerca disso, mas são modos de abordar o mesmo mistério sem que seja, de uma maneira, digamos assim, de mútua anatomização. Não sei se me expliquei. Não deu para entender? Ou seja: nós, nós escamoso, são dois modos católicos, são dois modos ortodoxos de lidar com o problema. Um,
um pouco mais criterioso do ponto de vista terminológico, racional, etc.; e o outro, um pouco menos, um pouco mais, eu diria, escrupuloso no que tange à intimidade divina. Há uma forma disso precisa ser resolvido. Eu não sei se precisa resolver isso. Ele deve ter falado, ah, ah, a divisão do cisma. Ah! Sim, isso deveria se encontrar um... sim, um caminho para isso. O Papa Francisco está tentando inclusive agora dizer: "Olha, o Papa João Paulo I já na 'Ut Unum Sint' falava sobre o modo de exercício do primado". Não é a mesma coisa que o primado
em si. Será que nós não poderíamos encontrar formas de exercício do primado que contemplassem a unidade ortodoxa e nós pudéssemos fazer essa unidade acontecer? Qual que é o problema disso? O problema para a unidade dos ortodoxos com a Igreja Católica não é a Igreja Católica; é a própria Igreja Ortodoxa. Porque mesmo entre eles há brigas. E aí, por exemplo, a Igreja da Rússia é inimiga da Igreja da Ucrânia. Aí você tem a Igreja autocéfala lá, não sei de onde, que tem uns monges lá de não sei do quê que não aceitam os outros. Então, é
um rolo mais ortodoxo. É interessantíssimo isso. Vejam que a Igreja Católica ocidental, ainda que esteja, digamos assim, decrépita na Europa, ela está pujante em outras partes do mundo: tipo, no continente americano, grosso modo, na África e em algumas partes da Ásia. Justamente porque ela é uma. A partir do momento que você separou dela, as fragmentações são inevitáveis. Começa a acontecer fragmentação, com a diferença de que não existe reforma protestante no mundo ortodoxo. E sabem por que não existe reforma protestante no mundo ortodoxo? Porque não haveria reforma protestante se não houvesse a emancipação dos estados nacionais
que politicamente impulsionaram os movimentos de reforma a partir do século X. Então, se não houvesse esse background político-econômico, a reforma teria morrido ali mesmo. Não teria, não teria prosseguido por intentos separatistas ou viantes com Pedro Valdo, com os Irmãos do Livre Espírito, com os cátaros, albino, etc. Tal, mas nada disso prosperou porque não havia um respaldo político. A coisa, quando o pessoal foi levar a profissão de fé de Augsburg para o patriarca de Constantinopla, o patriarca olhou assim para eles e olhou para os outros bispos assim... De diplomática comercial com a Alemanha, ele falou: "Né?
Ah, tá bom. Obrigado. Tchau." E a coisa não, ninguém levou aquilo a sério. Ou seja, foram tratados como um bando de doidos. Aí, 100 anos depois, foram levar de novo a profissão de fé de Augsburg para o Patriarca de Constantinopla, e ele falou: "Não, agora chega! Já basta! Vamos responder essa porcaria. Isso aqui não tem nada a ver com Santos Padres, não tem nada a ver com a tradição da igreja, não tem nada a ver com nada. Vocês são bandidos!" Colocou lá os pingos nos is, e o pessoal voltou pra Alemanha com a viola no
saco. Ou seja, sem um arcabouço político, não haveria reforma. E até hoje, a Igreja Ortodoxa, que não está ligada à ROM, despreza os protestantes com todas as suas forças. É não esse esforço, é com o católico de dialogar e fazer de tudo para casa, eles desprezam a teologia protestante, assim com nojo mesmo. É uma coisa muito interessante, não está errada, mas depende do que você está querendo dizer com isso. Não, a igreja crê que, segundo o Novo Testamento, o sacramento da ordem foi instituído simultaneamente com a Eucaristia. Por quê? Porque existe um princípio que está
bem elucidado no capítulo 5 da carta aos romanos, que é o de que o sacerdote é para o sacrifício. Portanto, Cristo instituiu o sacerdócio, e a finalidade do sacerdócio é oferecer o seu sacrifício, o sacrifício do Novo Testamento, como nós dizemos no Lauda Sion: nova PCA, nova legem, nova Páscoa, nova lei. Então, um novo sacerdócio, assim por diante. Acontece que o mesmo sacerdócio na igreja se dá em dois graus diferentes: o episcopado e o presbiterado. Mas é o mesmo sacerdócio, apenas dado em dois graus diferentes. Ou seja, no primeiro grau, com o episcopado, é o
sacerdócio com toda a sua plenitude, inclusive com o poder de ordenar novos presbíteros para a igreja e de representar, de modo mais visível, a apostolicidade da igreja. E o presbiterado, que é o segundo grau, está atrelado ao primeiro. Mas é o mesmo sacerdócio. Veja, durante muito tempo houve uma dúvida se o episcopado seria uma ordem propriamente ou não. São Tomás, por exemplo, dizia que não, que o sacerdócio é um só, mas que é como se o presbítero recebesse amarrado aquilo que o bispo tem desamarrado pela igreja. Isso, inclusive, estava bem expresso no rito de ordenação
antigo, em que o padre era ordenado e a casula ficava amarrada. E aí, quando chegava no final da missa de ordenação, o bispo desamarrava a casula para dizer: "Você pode exercer o seu ministério agora". Mas é porque eu estava amarrando. Por que isso é importante? Eu queria trazer isso porque isso é muito importante. Todas as objeções apresentadas pelos apologetas protestantes, quando dizem que houve bispos na história da igreja que foram ordenados pelo presbitério, há um registro disso em Antioquia, um único. E existe um registro medieval de um abad que recebeu do Papa a faculdade de
ordenar presbíteros para o seu mosteiro. Isso não toca em absolutamente nada a essência do sacerdócio, porque nós comemoramos a instituição de um único sacerdócio na Quinta-feira Santa, dado em dois graus diferentes, mas o sacerdócio é um só. E São Tomás explica isso de uma maneira sublime, quando diz que, quando celebra a missa, tanto um padre quanto um bispo estão oferecendo o mesmo sacrifício a Deus. E no rito maronita, inclusive, o bispo, para celebrar a liturgia eucarística, ele tira todos os paramentos episcopais: anel, não sei o que, tira tudo, e com os paramentos de padre oferece
para mostrar que é um sacerdócio só. Não se trata de dois sacerdócios. Mais alguma pergunta? Ah, não, não, não, não quero dizer que a tradição oral é oral mesmo, mas quando eu digo que é oral mesmo, eu não estou dizendo que parte da tradição oral não tenha sido consignada por escrito. O que eu estou querendo dizer é o seguinte: a liturgia é tradição. Talvez a fonte primária da tradição da igreja seja a liturgia, e a liturgia não é só palavras, não é só coisa que está escrita. A liturgia é um modo de tratar, né? Como
diz o adágio antigo: "Santa Sant tratare". Tem que tratar santamente as coisas santas. E por que isso é importante? Porque, por exemplo, alguns escritores eclesiásticos dizem assim: quando a igreja estava debaixo da perseguição, e até alguns séculos depois — tipo, as perseguições terminam no século V, para falar a verdade, no final do século IV —, mais do que no Édito de Milão, mais uns 200 anos depois, mais ou menos na época do Papa São Gregório Magno, muitas coisas eram arcanas na igreja. Por exemplo, o culto à Nossa Senhora não era público em todas as suas
manifestações, para que não se confundissem com as idolatrias pagãs. Portanto, por exemplo, a festa da Assunção de Nossa Senhora... Por que nós sabemos que a festa da Assunção de Nossa Senhora é apostólica? Porque, de repente, quando chega no século VI, uma igreja lá de não sei onde começa a celebrar a festa. Tem um rito, tem a igreja lá de não sei mais aonde, distante, que não tem nada a ver. No Ocidente, começa a celebrar. E aí você percebe: "Opa, opa! Aqui tem uma tradição precedente que, pela sua universalidade, é católica", embora isso não tenha uma
manifestação clara, a não ser em pequenos fragmentos, como por exemplo, escritos apócrifos, um sermão de um bispo que fez lá não sei aonde, etc., etc. Agora, por exemplo, tem a galera hoje em dia que está divulgando a... Devoção a São José de uma maneira até um pouco... enfim, não vou comentar, mas, por exemplo, alguns falam de místicos que falam sobre a Assunção de São José. Isso é uma doutrina piedosa, mas nunca será dogmática. Nunca! Por que nunca será dogmática? Porque, embora ela não seja herética, ela não é heterodoxa. Nunca você vai poder verificar que há
uma tradição disso no começo da Igreja, em diversos lugares. Não tem como você identificar essa tradição. Ou seja, a tradição não é só o que está escrito literalmente; é o culto, é o modo da Igreja fazer, por exemplo. No Concílio de Éfeso, quando estava condenando Nestório, a Igreja disse que Cristo era Deus e, portanto, Maria é Mãe de Deus. Os fiéis, todos, estavam com tochas acesas do lado de fora, comemorando aquela declaração dogmática. Isso é tradição, embora você não recolha o que cada pessoa estava dizendo ali, você não faça uma crônica detalhada. A tradição é
uma coisa real. Então, quando olho para um bispo, vejo a tradição da Igreja; quando olho para um sacerdote, vejo a tradição da Igreja; quando olho para as igrejas primaciais, vejo a tradição da Igreja; quando olho, por exemplo, para uma catacumba, olho para a tradição da Igreja. Isso tudo é tradição da Igreja, está claro? Então, reduzir a uma... a um joguinho, Torá escrita, Torá oral, né? É muito redutivo, porque não é uma questão de uns rabinos que chegaram aqui interpretando um monte de coisas. Quando a pessoa faz uma peregrinação, que ela vê essa grandeza... Pois é,
por que que é importante para nós, a Terra Santa? Por que que é importante para nós? Eu fui à Terra Santa uma vez só. Gente do céu, quando entrei na Basílica da Anunciação, estava lá escrito "E verbum caro". Nossa, me deu um negócio assim de comoção interior. Meu Deus, isso aqui é uma coisa concreta, né? Que é outra coisa. Você vai à Terra Santa, não é um museu! Você pega lá na Pedra do Calvário, você pega no Santo Sepulcro, você vê, você toca, você pisa, você sente, você bota a mão lá, sabe que Jesus... Exato!
Você, quando vai a Roma, é algo parecido. Você vai, você vê a tumba de São Pedro, você vê os ossos, hoje em dia, né? Depois do que Pio XII proporcionou com o ofício das escavações, você vê a necrópole romana ali. Você vê... É claro, é tangível! Isso aqui não tem comparação com discurso nenhum. Não é uma questão de doutrina, de ensinar; é uma coisa que você toca, é real. Tem tudo a ver com o mistério da Encarnação. Entra, entra, vai ver aquelas colunas de Abrãao... PED, por exemplo, e assim por diante. Bom, acho que já
são 11 horas da noite, né? Então, vamos encerrar. Eu agradeço a paciência de vocês e muito obrigado.