A minha loucura é minha consciência, minha consciência está aqui, no momento da verdade, na hora da decisão, na luta, mesmo na certeza da morte. Não precisamos de heróis! Precisamos resistir, resistir!
E eu preciso cantar! Eu preciso cantar! Terra em Transe nunca foi e nunca será unanimidade.
O filme, dirigido por Glauber Rocha, começou a gerar polêmica antes mesmo de chegar nos cinemas. . Para participar do festival de Cannes, onde foi exibido pela primeira vez, o filme precisou da autorização do governo militar, que só foi dada depois de uma grande pressão dos intelectuais, junto com a imprensa nacional e estrangeira e de manobras políticas dos produtores do filme, que, dez dias antes, havia sido interditado por uma comissão de censores que o acusava de ser mal montado, primitivo e de contar uma história sem pé nem cabeça.
A fome do absurdo. A fome. O ano era 1967, o AI-5 ainda não vigorava e os militares ainda se preocupavam em manter uma aparência de legalidade do regime.
Para mim era uma questão de vida e morte, porque eu ia passar o filme em Cannes de qualquer jeito. Tinha sido proibido lá em Brasília sob a acusação de propaganda subliminar marxista e lesbianismo. No decreto da censura que saiu, disse que o filme era de baixa qualidade, então tinha que ser proibido, não podia ter certificado de boa qualidade.
Pra evitar o desgaste de um mal estar diplomático, o filme acabou sendo liberado para passar em Cannes, e, consequentemente, para ser exibido nas salas de cinema do Brasil, mesmo tendo um conteúdo extremamente subversivo. O Gama e Silva liberou o filme dizendo o seguinte: - Eu vou liberar, agora se não trouxer a Palma de Cannes, eu vou dar uma palmada no diretor. Mas, apesar do sucesso no festival, onde ganhou o prêmio da crítica internacional e espanhola por ter sido o filme que mais contribuiu com o desenvolvimento da linguagem cinematográfica naquele ano, no Brasil, Terra em Transe sofreu críticas de gregos e troianos, ou seja, tanto da direita quanto da esquerda brasileira e o debate que se seguiu a sua estreia refletiu ironicamente as mesmas controvérsias vividas pelas personagens do filme.
Agora, temos que ir até o fim! Terra em Transe conta a história de Eldorado, um país ficticio, metáfora da América Latina, que nos é apresentado através do olhar de Paulo Martins, Eu gostaria mesmo é de fazer política. poeta burguês e jornalista aspirante a revolucionário que rompe sua relação com o conservador Porfírio Diaz, O povo no poder, isso nunca!
para se dedicar a um projeto politico mais progressista ao lado do populista Felipe Vieira. Pode ficar tranquilo meu filho, que eu vou acabar com isso tudo, pode ir tomando nota, Marinho. Após conseguir eleger Vieira como governador da província de Alecrim, as contradições do processo politico se tornam evidentes e os conflitos de classe se acirram.
Temos que escolher entre as bases eleitorais e os compromissos. Diante da eminência de uma possível vitória de Vieira para a presidência da república, Se houver eleições Vieira ganha, se não houver ganho eu! Diaz organiza um golpe de estado para garantir seus interesses, assim como os interesses de seus aliados em Eldorado.
Como vou explicar a meus sócios? Você não tem que explicar nada! Vamos dar um golpe, virar a mesa.
No momento derradeiro, Vieira decide não resistir ao golpe com medo do derramamento de sangue, porém Paulo insiste na resistência armada como a melhor via de ação. Nossa aventura terminou! Aventura?
Você chama nosso trabalho de aventura? Inconformado, ele se lança sozinho contra as forças repressoras, tornando-se um mártir de uma causa perdida. Não é mais possível essa festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos.
A repercussão primeiro da interdição e depois da participação do filme em Cannes atiçou a curiosidade dos cinéfilos e da intelectualidade brasileira que num primeiro momento foi em massa aos cinemas para ver o que havia causado tanto rebuliço na França e nos órgãos de censura do país. Para os conservadores, o incomodo foi óbvio: a defesa da resistência armada diante do golpe de Estado, a crítica da exploração do povo pela burguesia e das perversões das classes dominantes, já foram o suficiente para fazer com que a direita se voltasse contra o filme. Os progressistas, por outro lado, se dividiram: alguns reconheceram o valor dos questionamentos propostos por Glauber, Ando pelas ruas e vejo o povo magro, apático e abatido, esse povo não pode acreditar em nenhum partido.
mas outros não foram capazes de digerir as duras críticas feitas ao populismo de setores da esquerda que se aproveitam do apoio popular para se eleger, mas depois não cumprem suas promessas de campanha e, pior, reprimem a população quando esta exige seus direitos. E agora, o que vai fazer? Repressão policial.
Assim, do mesmo jeito que a polêmica ajudou Terra em Transe ser liberado pela censura, a má repercussão após seu lançamento fez com que ele fosse retirado de cartaz rapidamente, , já que a maioria das pessoas ficavam, por um motivo ou por outro, extremamente incomodada com o filme. Por oferecer multiplas interpretações, Terra em Transe dividiu a intelectualidade que não conseguiu chegar a um acordo nem sobre o significado do filme, nem sobre o teor de sua proposta estética, acusada de ser confusa a ponto de ser inteligível. O culpado é o senhor, Dr Paulo, o culpado é o senhor!
Dois anos após o lançamento do filme, Glauber disparou contra seus críticos em um de seus textos: Abre aspas. Os revolucionários têm medo das coisas novas em arte. São tradicionalistas, viciados na cultura burguesa.
Não são verdadeiros revolucionários, porque uma revolução socialista só se realiza integrando economia e cultura e desta dialética a cultura nova deverá ser o próprio socialismo. Os antifascistas são tão fascistas quanto os censores fascistas do poder. Fecha aspas.
Pesado, né? Vai vendo. No mesmo ano em que escreveu isso, Glauber afirmou em uma entrevista: Abre aspas.
existem intelectuais, escritores, artistas e cineastas que justificam uma péssima qualidade da obra artística em nome da intenção política progressista. Isto é traição que não admito porque acredito que o fenômeno politico, o fenômeno social, só ganham sua importância artística quando expressos através de uma obra de arte que esteja colocada numa perspectiva estética. autores que combatem a alienação do ponto de vista sociopolítico realizam filmes que [aparecem profundamente alienados e que estão, no fundo, ligados aos preconceitos culturais colonialistas do cinema americano e europeu.
Quando fiz Terra em Transe, quis que fosse uma ruptura a mais radical possível com esse tipo de influências, com a aspiração de que fosse uma bomba. Lançada com toda intenção. Atacando os preconceitos de uma esquerda acadêmica, conservadora, a que reagiu contra o filme de forma neurotica, e isto foi positivo.
Interessa-me criar polêmica, participar da atividade cultural e política Por isso Terra em Transe me parece meu filme mais importante e é o que mais defendo, Mesmo que saiba que tem defeitos, porque são defeitos que nunca poderiam ter deixado de existir. Se fizesse um filme sobre o transe da América Latina e lhe desse uma forma acabada, estaria atuando contra a própria práxis do filme. Um filme de ruptura, de crise, tem de estar tão pobre quanto seu próprio tema, todo integrado.
Isto é, sem fazer diferenças de forma e conteúdo. É essa uma discursão velha e acadêmica. Fecha aspas.
As pessoas têm que entender o cinema como a câmera escreve, canta, dança, A montagem é um ritmo, não tem leis para isso. Os críticos em geral não entendem a cozinha da criação cinematográfica, os cineastas trabalham muito sem. .
. assim. .
. no que pintar, deu. .
. O tema não quer dizer nada, o que interessa é o método. Provavelmente, a mais importante chave para decifrar o enigma estético que é Terra em Transe seja outro texto de Glauber, sua famosa tese da Eztetyka da Fome, na qual a fome na América Latina é vista como a característica central das nossas sociedades.
Dessa forma, para Glauber, apenas uma cultura da fome poderia corroer as proprias estruturas e se reinventar de dentro pra fora, sendo esta fome, no sentido literal, material e psicológico, a maior originalidade do cinema novo em relação aos outros cinemas da época. Claramente inspirado pelo anticolonialismo de Franz Fanon, Glauber afirma que a mais nobre manisfestação cultural da fome é a violência, expressa no cinema novo através da miséria de seus temas e da crueza e anemia técnica de suas imagens e sons. Se começamos a ver as coisas claras, somente a violência das mãos.
No entanto, esta violência não era gratuita ou primitiva, porque ela tinha o sentido revolucionário de impor sua existência ao colonizador, assim como revelar ao publico colonizado sua própria existência. Porém, o público brasileiro, ao ser confrontado com a própria fome, através da estética de Terra em Transe, sentiu vergonha e, ao invés de se reconhecer, a condenou, não suportando as imagens de sua própria miséria. O que levanta, talvez, a maior contradição do cinema novo, já exposta por Jean-Claude Bernadet em seu famoso livro "Brasil em Tempo de Cinema".
Isto é, para um movimento que pretendia conscientizar o público para transformar a sociedade, os filmes do cinema novo falharam em dar representatividade ao povo, apesar de trabalhar com temas e personagens baseados na cultura popular. "A praça é do povo. .
. " O choque estético foi grande demais e o público acabou não se identificando com a violência que via nas telas. A maioria não entendia e quem entendia negava o que via.
Seu Gerônimo faz a política da gente, mas seu Gerônimo não é o povo. O povo sou eu que tenho 7 filhos e não tenho onde morar! Esquerdista, esquerdista!
Mas, finalmente, qual é a mensagem que a estética de Terra em Transe esconde e revela? A política e a poesia são demais para um só homem. Glauber não ofereceu soluções prontas para as questões levantadas no filme, pelo contrario, a própria narrativa questiona o papel social da arte e seus limites na ação política.
As palavras são inúteis. Todas as piadas são possíveis na tragédia de cada dia, Eu, por exemplo, de dou ao vão exercício da poesia. Muitas vezes interpretado como um apelo romantico à revolução comunista, o filme procura mesmo é desmistificar as dinâmicas e processos da vida política na América Latina.
A luta de classes existe. Qual é sua classe? Assim, apesar de não apresentar soluções, Glauber apontou a falência utópica do projeto revolucionário latino americano, servindo de certa forma como um prelúdio morte de Che Guevara, dos longos anos de silêncio político que estavam por vir e da passividade da sociedade civil diante do autoritarismo que começava a se impor naquele momento a todo o continente.
A história do janguismo no Brasil, contada em um país da América Latina e mostrando o óbvio que era a colonização a luta de classes, o racismo, o subdesenvolvimento, o marginalismo, desmistificando o povo, desidealizando o proletariado. Ao comentar o filme, Nelson Rodrigues disse: Abre aspas. Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada.
Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em Transe. Mandam o povo falar, e este faz uma pausa ensurdecedora.
E, de repente o filme esfrega na cara da platéia esta verdade mansa, translúcida, eterna: o povo é um débil mental. Está vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado.
Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber nos deu um vômito triunfal.
E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser essa golfada hedionda Fecha aspas. Em debate promovido pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna e pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro no calor das polêmicas geradas pela estreia do filme Maurício Gomes Leite falou: Eu acho que Terra em transe foca uma verdade desagradável de maneira desagradável. Ou seja, Terra em Transe fere idéias prontas de pensamento ordenado, dos conceitos sólidos da direita, e alguns slogans imutáveis da esquerda.
Terra em Transe oferece num país em crise uma feroz interrogação e muito desencanto. Terra em Transe não é bem um grande filme político. É um filme sobre a agonia da política.
No mesmo debate Hélio Pellegrino afirmou: O filme é uma honrada confissão de um impasse. Dentro de uma estratégia de acomodação não foi possível solucionar o problema de Eldorado. Eu creio que neste sentido, o poeta é um símbolo, contraditório.
Ele é um homem que reflete bem a dialética deste país. Já lhe disse várias vezes que dentro da massa existe o homem, E o homem é difícil de se dominar. O próprio Glauber definiu o filme assim.
Abre aspas. Terra em Transe é um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobre na América Latina. Não é filme de personagens positivos, não é filme de heróis perfeitos, que trata do conflito, da miséria, da podridão do subdesenvolvido.
Podridão mental, cultural, decadência que está presente tanto na direita quanto na esquerda. Porque nosso subdesenvolvimento, além de febres ideológicas, é de civilização, provocado por uma opressão enorme. Então, não podemos ter heróis positivos e definidos, não podemos adotar palavras de beleza, palavras ideais.
Temos que afrontar nossa realidade com profunda dor, como um estudo da dor. Não existe nada de positivo na América Latina a não ser a dor, a miséria, isto é, o positivo é justamente o que se considera negativo. Porque é a partir daí que se pode construir uma civilização que tem um caminho enorme a seguir.
Essa é a minha opinião sobre o filme. Fecha aspas. O que prova sua morte?
O que? O triunfo da beleza e da justiça! Obrigado pela atenção.
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