A gente costuma aprender na escola que o Brasil não tem desertos. Afinal, os professores ensinam que mesmo as regiões mais secas do país têm um mínimo de chuvas que impede a existência dessas paisagens. Só que essa explicação não serve mais.
O desmatamento e as mudanças climáticas provocaram o surgimento de um deserto do tamanho da Inglaterra dentro do Brasil. Eu sou João Fellet, repórter da BBC News Brasil, e neste vídeo vou falar sobre como a desertificação na Caatinga criou áreas que deixaram de abrigar qualquer forma de vida. São verdadeiros desertos dentro do território brasileiro.
A Caatinga é o quarto maior bioma brasileiro. Ela ocupa 11% do território nacional e abarca uma parte de todos estados do Nordeste, além de uma parcela de Minas Gerais. É um ecossistema com plantas e animais que ao longo de milênios se adaptaram ao clima Semiárido da região, com secas intensas e altas temperaturas.
Mas a ação humana tornou essas condições extremas demais até mesmo para as espécies adaptadas. A Universidade Federal de Alagoas tem um laboratório que desde 2012 monitora a desertificação no Semiárido brasileiro. Em 2019, esse laboratório anunciou que 13% de toda a região estava em processo avançado de desertificação.
Nesse cenário, o processo é praticamente irreversível, e a terra deixa de abrigar qualquer forma de vida. Essa área desertificada equivale ao tamanho da Inglaterra ou a três vezes o estado do Rio de Janeiro. Mas essas terras não são todas contíguas, ou seja, ligadas, e elas ocupam diferentes partes do Semiárido.
Imagens de satélite mostram como os núcleos desertificados cresceram nas últimas décadas, enquanto as áreas verdes em volta deles foram rareando. Um dos maiores núcleos fica no vale do rio São Francisco, nos arredores do município pernambucano de Cabrobó. Esta imagem de satélite mostra com era a região em 1969.
Agora olha como a mesma paisagem ficou 51 anos depois, em 2020. Hoje o único verde ali está na margem do São Francisco, em lavouras irrigadas com a água do rio. Outro núcleo de desertificação fica em Irecê.
Esta imagem aqui foi feita em 1984 - olha como a região era na época. E aqui você vê como a mesma área ficou em 2020. Este outro núcleo fica em Gilbués, no interior do Piauí.
Um detalhe é que esta área desertificada fica perto de grandes plantações de soja que avançam pela região conhecida como Matopiba. Dá até pra ver na imagem as linhas retas que indicam a atividade de tratores nessas plantações. Esses são só três exemplos, mas há vários outros lugares do Semiárido onde os desertos têm se expandido.
Este mapa da Universidade Federal de Alagoas mostra as áreas da região que já estão em desertificação Nas áreas em vermelho, a desertificação já é considerada muito forte. Em amarelho, ela é forte e em azul, moderada. Mas até nas áreas que estão no estágio moderado especialistas dizem que é muito difícil reverter o processo.
Mas por que isso aconteceu? Como é que esse grande deserto surgiu no interior do Brasil? Eu fiz essas perguntas ao pesquisador Humberto Barbosa, que é o coordenador do laboratório em Alagoas que monitora a desertificação no Semiárido.
Além de meteorologista, Barbosa é doutor em ciência do solo e em sensoriamento remoto. "O nosso. .
. a região tropical, a região onde a localização geográfica. .
. a gente não tem deserto. Naturalmente, não haveria deserto.
Só que a gente hoje tem um deserto, e esse deserto foi em função da ocupação, da ocupação da terra, dos processos de desmatamento, entendeu? Hoje a gente tem deserto, mas não foi uma coisa natural, climática, foi em função de como a exploração, a ocupação dessas áreas foram ocorrendo E isso foi fazendo com que esse solo perdesse a atividade biológica, embora as chuvas continuem até acima do que se espera em uma região desértica. Esse que é o paradoxo.
" Barbosa me disse que a mudança do clima tem intensificado a desertificação e que é muito difícil determinar quanto desse processo se deve ao desmatamento, e quanto se deve à mudança do clima. Entre 2012 e 2017, o Semiárido enfrentou a maior seca desde que os níveis de chuva começaram a ser registrados, em 1850. E a intensidade desta seca, que foi atribuída às mudanças climáticas, ajudou a expandir as áreas desertificadas.
O professor Barbosa me explicou que a desertificação costuma seguir os seguintes passos: Primeiro, a vegetação nativa da Caatinga é derrubada e incendiada para que se plante capim no local. Então essa pastagem então é usada intensamente por animais pesados, como bois, que pisoteiam o solo e o deixam bem compactado. Chega uma hora em que o solo está tão compactado que nem mesmo o capim cresce mais lá.
E quando chove, as águas levam embora os últimos nutrientes da superfície. O professor Barbosa me contou que visitou uma dessas regiões há dois anos: A gente foi a uma região específica para ver a temperatura do solo e fazer umas medições em Alagoas, e a gente chegou com uma temperatura à tarde assim, no solo, nos primeiros centímetros de profundidade do solo, a gente chegou com tempraturas de 48, quase 50 graus. O que isso significa?
Significa que qualquer atividade biológica é difícil de mantê-la. Alagoas é o estado brasileiro mais impactado pela desertificação, com 32,8% de seu território afetado pelo fenômeno. Em seguida vem a Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Sergipe, Ceará, Minas Gerais e Piauí.
Esse processo de degradação da Caatinga se iniciou há séculos, quando colonizadores passaram a derrubar grandes porções da vegetação nativa para criar gado na região. Segundo o MapBiomas - uma plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, a caatinga já perdeu pouco mais da metade de sua vegetação original Mas mais de um quarto de toda essa destruição aconteceu nos últimos 35 anos E no primeiro semestre de 2021, os índices de desmatamento deram um salto preocupante. Segundo o Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, houve até 1° de agosto 2.
130 focos de queimadas na Caatinga. Foi o maior número em nove anos e uma alta de 164% em relação ao mesmo período de 2020. O professor Humberto Barbosa diz que, apesar da gravidade da situação, não existe nenhum plano governamental para mapear a desertificação no Semiárido e combatê-la.
A última iniciativa do governo federal nesse campo foi o Programa Nacional de Combate à Desertificação, o PAN, que foi lançado em 2006, mas descontinuado. Também não há um sistema nacional para monitorar o desmatamento na Caatinga e orientar ações de fiscalização - ao contrário do que já existe em relação à Amazônia, por exemplo. A deterioração das condições climáticas do Semiárido foi citada no último relatório do IPCC - o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
Segundo documento, o Semiárido brasileiro e outras regiões semiáridas do mundo "vão muito provavelmente enfrentar um aquecimento em todos os cenários futuros e vão provavelmente enfrentar um aumento na duração, magnitude e frequência das ondas de calor". Os maiores prejudicados pelas mudanças serão as populações locais. Segundo o IPCC, essas comunidades tendem a enfrentar oscilações na oferta de água, o que impactará gravemente sua "segurança alimentar e prosperidade econômica".
Em um relatório anterior, de 2019, o IPCC disse que 94% da região semiárida brasileira está sujeita à desertificação. Ou seja, sem ações contundentes para frear as mudanças climáticas e conter o desmatamento na Caatinga, esse deserto no interior do Brasil pode crescer muito mais. É isso, eu fico por aqui.
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