O sangue, o sangue dele respingou no meu rosto quando meu pai finalmente conseguiu controlá-lo. Mas já era tarde demais para minha mãe, tarde demais para todos nós. Bom dia, meus queridos. Meu nome é Janete, mas todo mundo me chama de vete por aqui. Tenho 73 anos e nasci em Pelotas, no Rio Grande do Sul, mas já faz mais de 50 anos que vivo em Curitiba. Hoje vou contar uma história que guardei dentro de mim por quase 60 anos. Uma história que muitos da minha família nem conhecem direito, porque a dor era tanta que as palavras
se recusavam a sair da minha boca. Se você tá assistindo esse vídeo, deixa um like e se inscreve no canal. Essa velha aqui agradece de coração. Me conta lá nos comentários de que parte do Brasil você tá me vendo. Às vezes fico imaginando como minhas palavras chegam em lugares que nunca pisei na vida. E isso aquece meu coração de um jeito que nem sei explicar. Também quero pedir para vocês comentarem quantos amados filhos e filhas vocês têm. Ficarei muito grata em saber. Vamos começar pelo início. Quando eu tinha apenas 14 anos, em 1965. Éramos uma
família simples, mas feliz. Meu pai, Valdir, era policial militar, um homem reto como uma espada, daqueles que não aceitavam nenhum cafezinho de graça em serviço. Sabem? Policial tem que ser exemplo, net. Ele sempre dizia, ajeitando aquela farda impecável antes de sair. Minha mãe, Marilene, era professora primária, mulher de fibra, que acordava às 5 da manhã para deixar o café pronto, a marmita dele preparada, e ainda chegava pontualmente na escolinha, onde ensinava as crianças. Nossa casa era modesta no bairro Portão, que naquela época era quase zona rural de Curitiba. Tínhamos um quintal grande com pés de
bergamota, goiaba e um limoeiro que meu pai cuidava como se fosse um filho. Ah, e falando em filhos, éramos só eu, filha única por muito tempo. Papai e mamãe tentaram ter mais filhos, mas depois de três abortos espontâneos, os médicos disseram que era arriscado pra saúde da minha mãe tentar novamente. Eu cresci sendo o centro das atenções deles, mas sem ser mimada. Privilégio traz responsabilidade. Mamãe sempre dizia quando eu reclamava de ter que ajudar nas tarefas de casa. Estudava no mesmo colégio onde minha mãe dava aulas, o que era um terror para uma adolescente. Imagina
só. Não podia fazer nada de errado que logo ela ficava sabendo. Nossos fins de semana eram simples. Aos sábados íamos ao mercado municipal comprar as coisas para a semana. Depois passávamos na casa da minha avó paterna, que morava no centro. Aos domingos, depois da missa, era dia de macarronada e de receber os amigos do meu pai, quase todos policiais também, com suas famílias. Era uma vida comum, sem luxos, mas cheia de segurança e amor. Tudo mudou naquele inverno de 1965. Lembro como se fosse hoje, o vento cortante de Júlio em Curitiba, aquele frio que penetra
até os ossos. Meu pai chegou em casa mais tarde que o normal, com um semblante diferente. Não era cansaço, era emoção. Ele, que sempre foi de poucas palavras, naquela noite não parava de falar durante o jantar. Marilene Nete, conheci hoje um menino que partiu meu coração. Ele começou mexendo a sopa de feijão com legumes que mamãe tinha preparado. Foi numa ocorrência lá na Vila das Torres. A mãe dele, usuária de drogas, foi presa por tráfico. O pai ninguém sabe quem é. O menino estava lá, magro, assustado, sem ter para onde ir. Mamãe ouvia atenta, como
sempre fazia. Ela respeitava profundamente o trabalho do meu pai, mesmo com todo o perigo envolvido. Ele tem 16 anos, Marilene. Chama-se Bernardo, um rapaz educado, apesar de tudo que passou, poderia estar no crime como tantos outros daquele lugar, mas estuda, tem caderno arrumado, notas boas. Foi aí que eu vi nos olhos do meu pai algo que nunca tinha visto antes. Uma determinação diferente, quase uma súplica. Ele vai para um abrigo estadual, mas sabe como são esses lugares. Mal tem recursos para as crianças pequenas, quanto mais para um adolescente. Minha mãe colocou a mão sobre a
dele, como se já soubesse o que viria a seguir, e veio. Eu estava pensando, Marilene, nós temos espaço, temos condições. Anete sempre quis um irmão. Lembro do silêncio que seguiu. Um silêncio pesado, cheio de possibilidades. Mamãe olhou pro meu pai, depois para mim, depois de volta para ele. Valdir, você está falando de adoção? Ele assentiu, aqueles olhos azuis brilhando de um jeito que eu raramente via. Ele pode ficar no quartinho dos fundos, aquele que era da sua mãe. Já é quase um homem, não vai dar trabalho de criança pequena. E acredite, esse menino é especial.
Senti isso. Naquela noite, a conversa se estendeu até tarde. Eu fiquei ali meio que esquecida na mesa, enquanto eles discutiam os prós e contras. Minha mãe tinha suas reservas. Afinal, acolher um adolescente desconhecido não é decisão que se toma da noite pro dia. Mas meu pai estava determinado de um jeito que eu nunca tinha visto. Marilene, eu não consigo explicar. Olhei para esse menino e vi algo. Vi fazer diferença real na vida de alguém, de dar uma família para quem nunca teve. Minha mãe, que tinha coração mole, apesar da aparência durona de professora, acabou cedendo.
Vamos conhecê-lo primeiro, Valdir. Vamos com calma. Na semana seguinte, meu pai conseguiu autorização para trazer Bernardo para um almoço em casa. Lembro de ficar espiando pela janela, curiosa para ver como seria esse possível novo irmão. Quando o carro do meu pai estacionou, primeiro desceu ele. Depois um rapaz magro de cabelos castanhos bem cortados, usando uma camiseta limpa, mas visivelmente desbotada, e uma calça jeans surrada. Bernardo entrou em nossa casa como quem entra num museu, olhando tudo com reverência, quase com medo de tocar qualquer coisa. Tinha olhos castanhos grandes, um pouco tristes, e um sorriso tímido
que aparecia raramente. Falava pouco, sempre muito educado, chamando meus pais de senhor e senhora e a mim de menina. "Pode me chamar de nete?", eu disse, tentando quebrar o gelo. "Todo mundo me chama assim." Ele assentiu, ainda sem me olhar diretamente. "Obrigado Net. O almoço foi meio desconfortável no início." Bernardo comia devagar. pequenas porções, como se tivesse medo que a comida acabasse ou que alguém fosse tirar o prato dele. Minha mãe, com seu instinto maternal logo percebeu. "Tem bastante comida, filho. Pode repetir à vontade", ela disse com aquela voz doce que usava com seus alunos
mais tímidos. "Foi a primeira vez que vi Bernardo sorrir de verdade, um sorriso que transformou completamente seu rosto, que de repente pareceu muito mais jovem, quase infantil. A senhora cozinha muito bem, dona Marilene", ele disse, finalmente se permitindo olhar diretamente para minha mãe. "Vi o olhar que meus pais trocaram naquele momento. Sei agora, olhando para trás, que foi ali que a decisão realmente foi tomada." Nas semanas seguintes, Bernardo veio mais vezes. Ficava para o jantar, ajudava meu pai a regar as plantas do quintal, perguntava sobre meus estudos. A cada visita parecia se soltar mais um
pouquinho. Contou que sua mãe biológica o deixava sozinho por dias, que muitas vezes não tinha o que comer, que aprendeu a se virar desde pequeno. Disse que seu sonho era ser mecânico, que gostava de desmontar e montar coisas para entender como funcionavam. "O senhor acha que eu posso mesmo, seu Valdir, ser mecânico um dia?", Ele perguntou certa vez, com uma esperança tão genuína na voz, que até com meu ceticismo adolescente me comovi. "Claro que pode, rapaz, com dedicação. Você pode ser o que quiser." Meu pai respondeu, colocando a mão no ombro de Bernardo. O menino
ficou rígido por um segundo, como se não estivesse acostumado ao toque, mas logo relaxou. Minha mãe foi a última a se convencer totalmente. Não por maldade, mas por cautela. Ela observava mais que falava. Notei como seus olhos seguiam Bernardo quando ele não percebia, como ela fazia perguntas aparentemente casuais para conhecê-lo melhor. Numa noite, quando Bernardo já tinha ido embora, ouvi meus pais conversando na cozinha. Ele é um bom menino, Marilene. Teve uma vida difícil, mas manteve a bondade. Isso é raro. Eu sei, Valdir. Só tenho medo de não sermos o que ele precisa. Já pensou
se não dermos conta? Se ele precisar de mais ajuda do que podemos oferecer, vamos dar um dia de cada vez. Mas aquele menino precisa de uma família e nós podemos ser essa família. Três meses depois daquele primeiro almoço, em outubro de 1965, Bernardo se mudou oficialmente para nossa casa. A burocracia não foi tão complicada quanto poderia ser. Meu pai conhecia pessoas no sistema e a mãe biológica de Bernardo assinou todos os papéis de abdicação de guarda sem pestanejar, ansiosa para se livrar do que considerava um fardo. Montamos o quartinho dos fundos, aquele que era da
minha avó antes dela falecer. Pintamos as paredes de azul claro, colocamos uma cama nova, uma escrivaninha para os estudos, uma estante para os poucos pertences que ele tinha. Minha mãe comprou roupas novas, material escolar, até um rádio pequeno que ele podia ouvir nos tempos livres. No dia em que ele chegou para ficar de vez, minha mãe fez um bolo de chocolate com a frase "Bem-vindo à família Bernardo", escrita com confeitos coloridos. Ele olhou para aquilo e, pela primeira vez, desde que o conhecemos, chorou. Não escondeu o rosto, nem tentou disfarçar. Apenas deixou as lágrimas rolarem
enquanto agradecia. repetidamente. "Ninguém nunca, nunca fez algo assim por mim", ele disse entre soluços. "Minha mãe o abraçou e, pela primeira vez ele retribuiu o abraço sem hesitação. Meu pai, que não era homem de demonstrar emoções facilmente, limpou discretamente uma lágrima. A adaptação não foi imediata nem perfeita. Claro. Bernardo tinha hábitos estranhos. Às vezes acordava gritando no meio da noite por causa de pesadelos. Escondia comida no quarto como se temesse que um dia ela acabasse. Tinha dificuldade em aceitar presentes ou qualquer forma de gentileza, sem achar que precisava retribuir imediatamente. Mas aos poucos o menino
foi se sentindo mais seguro, mais em casa. Matriculamos ele na mesma escola onde eu estudava e onde minha mãe dava aulas. No início, os outros alunos coxixavam, faziam perguntas indiscretas sobre de onde ele tinha vindo, porque estava morando conosco. Bernardo respondia com educação, mas sem dar muitos detalhes. Sou o irmão da Nete agora. Era tudo que ele dizia, com uma simplicidade que desarmava até os mais curiosos. Em casa, ele se esforçava para se encaixar em nossa rotina. Acordava cedo, arrumava sua cama meticulosamente, oferecia-se para ajudar em todas as tarefas. Minha mãe tinha que insistir para
que ele também descansasse, para que entendesse que não precisava pagar por estar ali. Filho, você não precisa fazer tudo isso. Esta é sua casa agora, não um lugar onde você trabalha em troca de abrigo", ela explicava com paciência. É difícil acostumar, dona Marilene", ele respondia, baixando os olhos. "Sempre tive que fazer algo em troca de qualquer coisa. Nada era de graça. Meu pai encontrou uma oficina mecânica perto de casa, onde Bernardo podia ajudar aos sábados de manhã. O dono, seu Antônio, era amigo antigo do meu pai e concordou em ensinar o básico para o rapaz.
Bernardo voltava dessas manhãs com as mãos sujas de graxa, mas com um brilho de satisfação nos olhos que era bonito de ver. Seu Antônio disse que tenho jeito para coisa. Ele contava animado durante o almoço de sábado. Hoje consegui desmontar e montar de volta um carburador sozinho. Nas noites de domingo, quando recebíamos os amigos do meu pai para o tradicional macarrão, Bernardo inicialmente ficava retraído, quase escondido. Com o tempo, começou a participar mais, até a contar algumas histórias que faziam todos rirem. Os colegas do meu pai o tratavam como parte da família, o que claramente
significava muito para ele. Comigo, a relação demorou um pouco mais para se desenvolver. Eu, com meus 14 anos e toda a insegurança da adolescência, não sabia direito como agir com esse novo irmão que tinha aparecido do nada. Às vezes implicava com ele, testava os limites, queria ver até onde ia sua paciência. Bernardo nunca revidava, apenas sorria aquele sorriso triste e dizia: "Tudo bem, Nete, não tem problema. Foi numa tarde chuvosa, daquelas típicas de Curitiba, que nossa relação começou a mudar. Eu tinha prova de matemática no dia seguinte e estava tendo dificuldades com equações. Frustrada, joguei
o caderno longe e comecei a chorar de raiva. Bernardo, que passava pelo corredor, parou na porta do meu quarto. Posso ajudar? Matemática sempre foi minha matéria favorita", ele ofereceu timidamente. Relutante, deixei que ele se sentasse ao meu lado. Para minha surpresa, Bernardo explicava de um jeito muito mais claro que o professor. Tinha paciência, usava exemplos do cotidiano, não ficava bravo quando eu não entendia de primeira. Viu só? Você consegue, Net, é só questão de ver o problema de outro ângulo", ele dizia com uma gentileza que me desarmou completamente. Depois daquele dia, comecei a ver Bernardo
com outros olhos. Não era mais o intruso na minha família, mas alguém que tinha seu próprio valor, suas próprias qualidades. Comecei a incluí-lo quando saía com meus amigos, a defender ele quando alguém na escola fazia comentários maldosos, a realmente tratá-lo como irmão. Seis meses depois de sua chegada, a mudança em nossa casa era evidente. Bernardo sorria mais, falava mais alto, ocupava seu espaço sem pedir desculpas por existir. Meus pais estavam radiantes com o progresso, orgulhosos de como ele estava se desenvolvendo na escola, na oficina, em casa. Melhor decisão que já tomamos. Meu pai comentou certa
noite, observando pela janela, enquanto Bernardo ajudava minha mãe a colher limões do pé. Aquele menino merecia uma chance e olha só como ele aproveitou. Se alguém me perguntasse naquele momento se eu era feliz com meu novo irmão, teria respondido que sim, sem hesitar. Bernardo parecia ser exatamente o que minha família precisava para se completar. Um filho para meus pais, um irmão para mim, alguém que trouxe uma energia nova e positiva para nossa casa. Como eu poderia imaginar que, por trás daquele sorriso tímido, daqueles olhos tristes, daquela gratidão aparentemente sincera, se escondia algo muito mais sombrio?
Como eu poderia saber que aquela decisão tomada com tanto amor pelo meu pai acabaria destruindo nossa família de uma forma que nenhum de nós poderia prever? Naquela época, eu só via quis. Não via os pequenos sinais, os comportamentos estranhos, que, olhando para trás agora, eram como bandeiras vermelhas, balançando furiosamente, avisando de um perigo que não soubemos reconhecer a tempo. Os primeiros meses com Bernardo foram como um sonho, um sonho que muito em breve se transformaria no pior pesadelo das nossas vidas. Vocês já perceberam como a gente sempre ignora aquela vozinha dentro da cabeça que diz
que algo não está certo? Foi assim comigo. Os sinais estavam todos lá, piscando como semáforo quebrado, mas escolhi não enxergar. Talvez por ingenuidade, talvez por não querer decepcionar meus pais, talvez por medo de estar sendo injusta com alguém que tinha sofrido tanto. Foi no início de 1966, uns três meses depois que Bernardo se mudou oficialmente paraa nossa casa, que comecei a notar pequenas mudanças. Nada gritante no começo, só estranhezas, detalhes que pareciam fora do lugar, como um quadro na parede que alguém moveu 1 cm. E só quem conhece bem a casa percebe. A primeira coisa
que notei foi como ele olhava para minha mãe quando achava que ninguém estava vendo. Não era um olhar de filho para mãe, nem de gratidão. Era algo mais possessivo, como se ele estivesse planejando alguma coisa. Quando ela passava por ele na cozinha e tocava seu ombro carinhosamente, algo nos olhos dele mudava por um segundo. Um lampejo de algo que na época eu não soube identificar. Mas hoje, olhando para trás, reconheço como raiva contida. Certa manhã, acordei mais cedo que o normal e fui até a cozinha beber água. Parei na porta ao ouvir vozes baixas, Bernardo
e minha mãe. Ela estava preparando o café, como sempre fazia, por volta das 5 da manhã, e ele tinha se levantado cedo para ajudar. Não precisava ter acordado tão cedo, filho. Minha mãe dizia com aquela voz doce dela. Eu gosto de ficar sozinho com a senhora. Ele respondeu num tom que me causou um arrepio. Seu Valdir e a Nete não entendem a senhora como eu entendo. Minha mãe riu. Aquela risada educada que ela dava quando não sabia bem como responder a algo. Que bobagem, Bernardo. Nós somos uma família. Antes eu não tinha nada. Ele continuou
como se ela não tivesse falado. Agora tenho a senhora. Foi a forma como ele disse. Não, agora tenho vocês ou agora tenho uma família, foi específico. Agora tenho a senhora. Como se minha mãe fosse uma coisa que pertencesse a ele. Quando entrei na cozinha, Bernardo mudou completamente. Voltou a ser um menino educado e sorridente, oferecendo-me servir um copo de leite, perguntando se eu tinha dormido bem. Mas peguei seu olhar antes da transformação, irritado por eu ter interrompido o momento. Comentei com minha melhor amiga, Solange, sobre essas pequenas percepções. "Você tá com ciúmes, Nete?", ela disse,
rindo. "É normal quando chega um irmão novo?" Talvez fosse isso mesmo. Talvez fossem só ciúmes bobos de adolescente. Decidi tentar ser melhor, me esforçar mais para aceitar Bernardo completamente, mas as coisas estranhas continuaram acontecendo. Minha mãe começou a notar que alguns objetos pessoais dela sumiam. Um batom, uma chape, uma foto antiga onde ela aparecia sozinha. Pequenas coisas que poderiam facilmente ser justificadas como perdidas pela casa. Quando ela mencionava esses sumos no jantar, Bernardo era sempre o primeiro a se oferecer para ajudar a procurar, sempre o mais preocupado. "Que coisa estranha, dona Marilene", ele dizia com
aparente preocupação. "A senhora tem certeza que não deixou na escola?" Uma tarde voltei mais cedo da escola porque tinha passado mal durante a aula de educação física. Ninguém esperava que eu chegasse àela hora. Mamãe estava na escola, papai no trabalho e Bernardo devia estar na oficina, já que era seu dia de aprendizado lá. Mas quando entrei em casa, silenciosamente por causa da dor de cabeça, ouvi barulho no quarto dos meus pais. Pensei que fossem ladrões e fiquei paralisada de medo. Então, muito devagar, espiei pela porta entreaberta. Era Bernardo. Estava deitado na cama dos meus pais,
abraçado ao travesseiro da minha mãe, com o rosto afundado nele, respirando profundamente, como se quisesse absorver o cheiro dela. Ao lado dele, espalhados na cama, estavam vários objetos que reconheci como os perdidos, o batom, a, algumas fotos, até uma escova de cabelo. I antes que ele me visse, o coração batendo tão forte que achei que ele pudesse ouvir. Saí de casa sem fazer barulho e fui para a casa da Solange, inventando que tinha passado mal na rua, não em casa. Naquela noite não consegui dormir. Queria contar para meus pais, mas que diria? Peguei Bernardo cheirando
o travesseiro da mamãe. Soava ridículo até para mim. E se realmente fossem só ciúmes, como Solange tinha sugerido? E se eu estivesse vendo problemas onde não existiam por não querer dividir meus pais? Decidi observar mais antes de falar qualquer coisa. Comecei a prestar atenção em cada detalhe do comportamento de Bernardo, especialmente quando ele não sabia que estava sendo observado. Foi aí que percebi o quanto ele mudava, dependendo de quem estava por perto. Com meu pai era o filho perfeito, respeitoso, trabalhador, interessado nas histórias de trabalho na polícia. com minha mãe era carente, quase infantil, às
vezes, sempre buscando aprovação e afeto físico, um toque no braço, um abraço, um cafuné. Comigo alternava entre o irmão mais velho protetor, e longas horas me ignorando completamente, como se eu fosse invisível. Mas havia momentos, pequenos instantes em que a máscara escorregava, como quando meu pai o corrigiu na frente de um vizinho sobre como segurar uma ferramenta. Vi seu rosto se contrair numa expressão de puro ódio antes de rapidamente sorrir e agradecer pela correção. Ou quando minha mãe mencionou orgulhosa que eu tinha tirado a nota mais alta da classe em português. Bernardo quebrou o lápis
que segurava em dois, escondendo o gesto debaixo da mesa. As coisas começaram a desaparecer ou quebrar pela casa. O relógio de pulso antigo do meu pai, herança do meu avô, um conjunto de pratos que minha mãe tinha ganhado no casamento, meu diário que mantinha escondido debaixo do colchão. Quando questionado sobre qualquer coisa, Bernardo sempre tinha um álibe perfeito, sempre estava em outro lugar, sempre tinha uma explicação razoável. Um dia encontrei meu gato, Romeu, morto no quintal. Tinha apenas do anos e era saudável. Chorei desconsolada enquanto meu pai o enterrava debaixo da goiabeira. Bernardo estava ao
meu lado, me consolando, dizendo que provavelmente o gato tinha comido algo envenenado na rua. "Ess gatos são assim mesmo, Nete?", ele disse, passando o braço sobre meus ombros. "Nunca se sabe onde vão, o que comem. Não se apegue tanto a bichos. Eles sempre vão partir e te deixar". Algo no tom dele me incomodou profundamente. Olhei para seus olhos e, por um instante, vi algo frio, quase divertido, como se estivesse apreciando minha dor. Afastei o pensamento. Seria absurdo demais. A situação com minha mãe piorou gradualmente. Bernardo começou a criar pequenos conflitos entre ela e meu pai.
Contava histórias ligeiramente diferentes para cada um sobre o que o outro tinha dito ou feito. Nada. óbvio ou agressivo, apenas pequenas distorções que com o tempo foram criando desconfiança. Dona Marilene, seu Valdir, comentou no café que a senhora anda muito cansada, que deveria deixar algumas aulas. Ele acha que a senhora não dá conta, ou então, seu Valdir, a dona Marilene disse que fica chateada quando o senhor chega tarde sem avisar. Ela acha que o senhor não se importa com a família. Meus pais, que raramente discutiam antes, começaram a ter pequenos desentendimentos. Nada sério, mas o
suficiente para criar uma tensão que não existia antes. E Bernardo estava sempre lá, sendo o pacificador, o compreensivo, aquele que entendia os dois lados. Dona Marilene, a senhora trabalha demais. É normal o seu Valdir se preocupar. Seu Valdir, a dona Marilene só fica preocupada porque ama o Senhor. Ele criava o problema e depois se apresentava como a solução. Era como uma dança macabra que só eu parecia enxergar. No meio desse turbilhão, aconteceu algo que me deixou ainda mais alerta. Clara, minha prima de 15 anos, que morava em Ponta Grossa, veio passar uma semana conosco durante
as férias de julho. Ela era linda, cabelos loiros, olhos verdes, aquele tipo de menina que faz os rapazes virarem a cabeça na rua. Bernardo ficou imediatamente fascinado por ela. No início, pensei que fosse apenas um garoto de 17 anos encantado por uma menina bonita. Era normal, certo? Mas havia algo mais intenso, mais perturbador na forma como ele a observava, como se ela fosse uma presa. Clara percebeu e começou a evitar ficar sozinha com ele. Quando perguntei o que estava acontecendo, ela hesitou, parecendo envergonhada. Nete, seu irmão é meio estranho, não é? Ele ele me segue
pela casa, fica me observando quando acha que não estou vendo. Ontem de noite acordei e ele estava parado na porta do quarto de hóspedes, só me olhando dormir. Senti um frio na barriga. Você contou para a tia Marilene ou pro tio Valdir? Ela balançou a cabeça. Não quero causar problemas. Ele não fez nada, só me deixa desconfortável. Como se Como se quisesse algo de mim. No dia seguinte, Clara disse que tinha recebido um telefonema urgente e precisava voltar para casa mais cedo. Meus pais acharam estranho, mas não questionaram muito. Bernardo pareceu irritado com a partida
repentina dela, embora tentasse disfarçar. Naquela noite, ouvi barulhos vindos do quarto dele, ruídos ritmados, como se estivesse batendo em algo repetidamente. No dia seguinte, notei que seus nós dos dedos estavam vermelhos e esfolados, como se tivesse socado uma parede. O comportamento estranho só piorou depois disso. Bernardo começou a me tratar com uma mistura de desdémada. Quando estávamos sozinhos, às vezes se aproximava demais, invadindo meu espaço pessoal. "Sua prima é uma mentirosa", ele sussurrou uma vez, me encurralando no corredor. "Ela inventou coisas sobre mim, não foi o que ela disse?" "Senti medo pela primeira vez. Não
medo vago e distante, mas um terror real, físico. Havia algo em seus olhos que não era mais humano. Era como olhar para um predador. Ela não disse nada. Consegui responder à voz trêmula. Só teve que voltar por causa da avó doente. Ele sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos. Bom, porque se alguém começar a contar mentiras sobre mim, Nete, eu vou ficar muito triste. E quando fico triste, faço coisas que me arrependo depois. Era uma ameaça clara. Engoli em seco e assenti, tentando parecer calma. Quando ele finalmente se afastou, corri para o banheiro e
vomitei, tomada por um pavor que não conseguia explicar. Decidi que precisava falar com meus pais, não importava se parecia loucura. Escolhi meu pai primeiro. Ele era policial, treinado para perceber quando algo não estava certo. Esperei um momento em que estávamos sozinhos. Um domingo à tarde, em que minha mãe tinha ido visitar uma amiga doente e Bernardo estava supostamente na biblioteca estudando para uma prova. Pai, comecei, a voz mais trêmula do que gostaria. Preciso te contar uma coisa sobre o Bernardo. Meu pai baixou o jornal que estava lendo e me olhou com atenção. O que foi,
filha? Contei tudo o que tinha visto no quarto deles, os objetos desaparecidos, como ele olhava para minha mãe, o incidente com Clara, as ameaças veladas. Enquanto falava, via o rosto do meu pai mudando, primeiro com surpresa, depois com preocupação, finalmente com algo entre descrença e tristeza. Quando terminei, ficamos em silêncio por um longo momento. Meu pai suspirou profundamente. Nete, tem certeza que não está interpretando mal as coisas? Bernardo teve uma vida muito difícil. É natural que tenha alguns comportamentos estranhos. Às vezes senti como se tivesse levado um tapa. Meu próprio pai não acreditava em mim.
Pai, não é só comportamento estranho, tem algo errado com ele, algo sério. Ele está, ele olha paraa mamãe de um jeito que me dá arrepios e a forma como falou comigo no corredor, ele me ameaçou. Meu pai passou a mão pelo rosto, parecendo subitamente mais velho e cansado. Filha, Bernardo está se adaptando ainda. Foi ele quem sugeriu essa ideia na sua cabeça. O de adotar um rapaz foi minha. Sei que não é fácil para você dividir nossa atenção depois de tantos anos sendo filha única. Foi como se o chão tivesse sumido sob meus pés. Meu
pai achava que eu estava inventando tudo por ciúmes, ou pior, que Bernardo tinha razão sobre mim. Você acha que estou mentindo? Perguntei, a voz embargada. Não, filha, não é isso. Só acho que talvez esteja vendo problemas onde não existem. Todos estamos nos ajustando a essa nova dinâmica familiar. Naquele momento, ouvi a porta da frente se abrindo. Bernardo entrou, carregando alguns livros. Quando nos viu na sala, parou, olhando de mim para meu pai e de volta para mim. Algo em meu rosto ou na postura do meu pai deve ter denunciado o tema da nossa conversa, porque
vi algo escurecer no olhar dele. Boa tarde, seu Valdir. Oi, Net. Ele disse com aquele sorriso perfeito que agora eu sabia ser completamente falso. Internrompo algo? Não, filho. Estava só conversando com a Nete sobre coisas de família. Meu pai respondeu, levantando-se. Como foi o estudo? Produtivo, Bernardo respondeu, ainda me encarando. Aprendi muitas coisas novas hoje. Quando meu pai saiu da sala para buscar água, Bernardo se aproximou de mim. Sua voz era apenas um sussurro, mas cada palavra era clara como cristal. Já te avisei uma vez, netinha. Não teste minha paciência. Você não vai gostar de
ver o que acontece quando me irritam de verdade. Recuei, sentindo o sangue gelar nas veias. Não era mais apenas intuição ou paranoia. Havia algo profundamente errado com Bernardo, algo perigoso. E ninguém além de mim parecia capaz de enxergar. Naquela noite tranquei a porta do meu quarto pela primeira vez e nos dias que se seguiram comecei a perceber que algo terrível estava se formando em nossa casa. como nuvens de tempestade se acumulando no horizonte, anunciando um desastre do qual não poderíamos escapar. O pior estava por vir. E quando finalmente chegou, destruiu tudo que eu amava de
formas que nenhum de nós poderia ter imaginado. Às vezes me pergunto se existem momentos na vida que dividem tudo em antes e depois. Para mim foi 17 de novembro de 1966. Uma quinta-feira que começou como qualquer outra. Mas terminou como o dia que destruiu nossa família para sempre. A semana tinha sido tensa. Depois da minha conversa com meu pai, Bernardo intensificou a vigilância sobre mim. Já não disfarçava mais quando estávamos sozinhos. O sorriso gentil e os olhos tristes davam lugar a um olhar frio, calculista, que me seguia pela casa como um predador rastreando a presa.
Mamãe estava mais cansada que o normal naquela semana. A escola onde lecionava estava com problemas, falta de professores, crianças indisciplinadas, reuniões de pais que se estendiam até tarde. Ela chegava em casa exausta, os ombros caídos, aqueles olhos bondosos, agora sempre vermelhos de cansaço. Naquela quinta-feira, acordei com um peso no peito, uma sensação de que algo ruim estava para acontecer. Conhecem aquela angústia inexplicável, como se o ar estivesse pesado demais para respirar. Tentei convencer mamãe a ficar em casa. Inventei que estava me sentindo mal, que precisava dela por perto. Mas havia uma reunião importante na escola.
Prometo chegar mais cedo hoje, meu amor. Ela disse beijando minha testa. Podemos assistir aquele filme que você tanto gosta depois do jantar? Observei pela janela, enquanto ela se afastava, uma figura pequena e determinada caminhando em direção ao ponto de ônibus. Não sabia que seria a última vez que haveria com vida. A escola liberou mais cedo naquele dia algo sobre uma assembleia de professores. Cheguei em casa por volta das 2as da tarde, esperando encontrar a casa vazia. Papai estava no trabalho, mamãe na escola e Bernardo devia estar na oficina como todas as quintas-feiras. Mas quando abri
a porta, senti imediatamente que algo estava errado. Primeiro, o silêncio. Não o silêncio normal de uma casa vazia, mas um silêncio pesado, opressivo, como se o próprio ar estivesse segurando a respiração. Depois, o cheiro, leve, metálico. Na época não reconheci, mas hoje sei. Era o cheiro de sangue. Tem alguém em casa? Chamei minha voz pequena no silêncio. Nenhuma resposta. Deixei minha mochila no sofá e caminhei lentamente pelo corredor. A porta do quarto dos meus pais estava entreaberta, uma fresta de luz escapando para o corredor escuro. Empurrei-a devagar, o coração batendo tão forte que parecia que
ia estourar minhas costelas. O que vi naquele quarto vai me assombrar até o dia em que eu fechar os olhos pela última vez. Minha mãe estava na cama deles. Usava o vestido azul claro de que tanto gostava, agora manchado de vermelho escuro. Seu rosto, sempre tão expressivo, tão cheio de vida, estava congelado numa expressão de horror e surpresa. Os olhos abertos, vidrados, olhando para o teto sem ver. A garganta. Ó meu Deus. A garganta dela tinha um corte profundo, de orelha a orelha, como se alguém tivesse tentado decaptá-la. E ao lado da cama, sentado numa
cadeira, observando-a com uma expressão quase sonhadora, estava Bernardo. As mãos ensanguentadas descansavam no colo. Ao seu lado, no chão, uma faca de cozinha, a mesma que mamãe usava para cortar carne nos domingos. Ele não percebeu minha presença imediatamente. Estava perdido em algum tipo de transe, olhando para o corpo da minha mãe como se admirasse uma obra de arte que ele mesmo tinha criado. Um som escapou da minha garganta. Não um grito, nem um choro, mas um ruído animalesco, primitivo, de puro horror. Foi isso que fez Bernardo virar a cabeça em minha direção. Ah, Nete, ele
disse, como se estivéssemos nos encontrando no café da manhã. Você chegou mais cedo hoje. Não consegui responder. Meus olhos iam da minha mãe morta para Bernardo e de volta, incapazes de processar o que estavam vendo. Ela voltou mais cedo também, continuou ele, apontando casualmente para o corpo. Disse que não estava se sentindo bem. Queria descansar um pouco antes de preparar o jantar. Um sorriso estranho apareceu em seu rosto. Acho que agora ela vai descansar para sempre. Finalmente encontrei minha voz. O que você fez? As palavras saíram estranguladas, quase inaudíveis. Bernardo inclinou a cabeça para o
lado, como um cachorro curioso. O que parece que eu fiz, netinha? Libertei todos nós. Libertou? Repeti, incapaz de compreender. Ela estava atrapalhando. Ele explicou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Ficava entre mim e seu pai, entre mim e você. era possessiva, controladora, não percebeu como ela sufocava a todos nós com aquele amor falso. Era como ouvir alguém falando em uma língua estrangeira. Conseguia distinguir as palavras, mas elas não faziam sentido juntas. "Você matou minha mãe", falei. E dizer isso em voz alta tornou tudo terrivelmente real. "Você matou minha mãe!" O grito pareceu
despertar algo em Bernardo. A expressão sonhadora desapareceu, substituída por aquele olhar frio e predatório que eu tinha visto apenas em vislumbres antes. E agora vou ter que matar você também, ele disse, levantando-se lentamente. É uma pena. Gostava de você, Net. Poderíamos ter sido uma família feliz, eu, você e seu pai. Mas você nunca me deu uma chance, não é? sempre desconfiando, sempre me observando, como uma pequena espiã. Peguei a faca. Não me lembro de terme movido, de terme abaixado para pegá-la do chão. Num instante estava paralisada na porta. No seguinte, a faca estava na minha
mão, pesada e escorregadia com o sangue da minha mãe. Fique longe de mim, avisei. A voz mais firme do que esperava. Não se aproxime. Bernardo riu. Uma risada gultural, doentia, que não combinava com seu rosto jovem. Ou o que, netinha, vai me matar também? Você não tem coragem. Sempre foi a queridinha da mamãe, a bonequinha protegida. Ele deu um passo à frente. Pare. Gritei erguendo a faca. Outro passo. Estou avisando, Bernardo. Mais um passo. Agora ele estava perto o suficiente para que eu sentisse seu cheiro. Uma mistura de suor, sangue e algo mais. Algo químico
que não reconheci na época, mas que mais tarde descobri ser cocaína. Seus olhos estavam dilatados, febriz. "Você é igual à sua mãe", ele sussurrou. Fraca, patética. Acha que pode me deter faca? Eu acabei de cortar a garganta dela e nem pissei. O que acha que vou sentir quando for sua vez? Algo dentro de mim se quebrou. Não sei explicar. Foi como se uma represa estourasse e toda a raiva, todo o medo, todo o horror daquele momento inundasse meu corpo. Avancei com a faca, não por autodefesa ou cálculo, mas por puro instinto animal. A lâmina entrou
na barriga dele com uma facilidade assustadora. Como cortar manteiga mole? Bernardo olhou para baixo, surpreso, como se não pudesse acreditar no que estava acontecendo. Então, seus olhos encontraram os meus e, pela primeira vez vi medo genuíno neles. Você daí ele começou, mas não terminou a frase. Cambaleou para trás, arrancando a faca da minha mão quando caiu no chão. Sangue começou a se espalhar rapidamente pelo açoalho, misturando-se ao da minha mãe. Fiquei ali paralisada novamente, olhando para minhas mãos ensanguentadas, para o corpo da minha mãe na cama, para Bernardo se contorcendo no chão. Não sei quanto
tempo passou, segundos, minutos, horas, talvez. O tempo tinha perdido todo o significado. Só voltei à realidade quando ouvi a porta da frente se abrindo, a voz do meu pai chamando alegremente. Estou em casa. Consegui sair mais cedo hoje. O que aconteceu a seguir ficou gravado na minha memória como uma série de flashes desconexos, imagens congeladas no tempo. Meu pai aparecendo na porta do quarto, o sorriso morrendo em seus lábios quando viu a cena. Bernardo, ainda vivo, esticando uma mão trêmula em direção a ele. Pai, ela me esfaqueou. Socorro. Eu, coberta de sangue, incapaz de explicar,
incapaz de fazer qualquer coisa, além de apontar para o corpo da minha mãe. Ele matou ela. Pai, ele matou a mamãe, meu pai, caindo de joelhos entre nós dois, o rosto contraído numa máscara de dor indescritível. Bernardo, subitamente ganhando força, puxando uma pequena pistola de sob o colchão, a arma reserva do meu pai que ele guardava para emergências. O som ensurdecedor do tiro quando meu pai, percebendo a intenção de Bernardo, se jogou sobre ele. A bala que errou meu pai por centímetros e se alojou na parede. A luta desesperada entre os dois. Meu pai tentando
arrancar a arma das mãos de Bernardo. Bernardo usando suas últimas forças para tentar atirar novamente. E finalmente o momento em que meu pai, policial treinado, conseguiu virar a arma na direção de Bernardo. Outro tiro. Silêncio. O corpo de Bernardo finalmente imóvel, os olhos abertos fixos no teto, exatamente como os da minha mãe. Meu pai, respirando pesadamente, largando a arma como se queimasse suas mãos. Nós dois, sentados no chão daquele quarto transformado em matadouro, incapazes de falar, de chorar, de fazer qualquer coisa além de olhar para os dois corpos e para o sangue que parecia estar
em todo lugar. Foi assim que a polícia nos encontrou uma hora depois, quando um vizinho, tendo ouvido os tiros, finalmente criou coragem para ligar para a delegacia. O que se seguiu foi um borrão de uniformes, perguntas, luzes de flash de câmeras fotográficas, fitas amarelas isolando nossa casa. Lembro de ser envolta em um cobertor, apesar do calor, porque não parava de tremer. Lembro do olhar de pena dos policiais, colegas do meu pai, quando nos levaram para a delegacia. As próximas semanas foram um pesadelo de depoimentos, funerais, manchetes de jornal sensacionalistas. Tragédia familiar, adolescente adotado, mata a
mãe e é morto pelo pai policial. A investigação revelou coisas sobre Bernardo que nenhum de nós sabia. Ele não era o órfão inocente que meu pai acreditava ter resgatado. A mãe dele não estava presa por tráfico. Tinha sido assassinada três anos antes, com fortes suspeitas de que o próprio filho fosse culpado. Embora nunca tenham conseguido provar. Bernardo tinha passado por cinco famílias adotivas antes de nós. Todas o devolveram ao sistema, alegando comportamento perturbador, desde tortura de animais até tentativas de agressão sexual contra crianças mais novas. Tudo isso estava nos registros que, por algum motivo, incompetência
ou corrupção, nunca chegaram ao meu pai quando ele iniciou o processo de adoção. Encontraram em seu quarto um diário detalhando fantasias violentas envolvendo minha mãe e mais perturbador ainda, planos para matar meu pai e fazer parecer suicídio. Depois me convencer a fugir com ele para outro estado. A investigação concluiu que tanto meu pai quanto eu tínhamos agido em legítima defesa. Não houve acusações formais, mas o dano já estava feito. Nossa família tinha sido destruída. Nossa casa, antes cheia de amor e segurança, agora estava manchada por sangue, que nenhuma quantidade de limpeza conseguiria remover. Vendemos a
casa algumas semanas depois. Nenhum de nós conseguia sequer olhar para ela sem reviver aquele dia. Nos mudamos para um pequeno apartamento no outro lado da cidade, tentando recomeçar, tentando encontrar um caminho através do horror que tinha se tornado nossa realidade. Mas como recomeçar quando seu mundo inteiro desmoronou? Como seguir em frente quando a pessoa que mais amava foi brutalmente arrancada da sua vida? Como confiar novamente quando a confiança do seu pai em alguém resultou em tamanho desastre? Essa é a pergunta que me atormentou nos meses e anos seguintes. Uma pergunta para a qual não tinha
resposta, pelo menos não ainda. O que eu não sabia naquele momento terrível enquanto olhava para o sangue nas minhas mãos, o sangue da minha mãe, o sangue de Bernardo, era que aquilo era apenas o começo da nossa provação, que o pior ainda estava por vir. na forma do silêncio esmagador do meu pai, no peso da culpa que o consumia dia após dia, na depressão que gradualmente o afastava de mim, a única família que lhe restava. E eu, uma menina de 15 anos que tinha acabado de ver sua mãe assassinada e sido forçada a esfaquear alguém
para sobreviver, como poderia saber que precisaria encontrar forças que nem imaginava ter para não apenas seguir vivendo, mas para salvar meu pai do abismo de desespero em que ele estava afundando? A vida, como conhecíamos tinha acabado naquele quarto ensanguentado, e o caminho pela frente era mais escuro e solitário do que qualquer coisa que pudéssemos imaginar. O silêncio tem um peso, sabia? Depois daquele dia, o silêncio no nosso novo apartamento era tão pesado que às vezes eu acordava no meio da noite sufocando, como se ele tivesse se transformado em algo físico, pressionando meu peito até eu
não conseguir respirar. As primeiras semanas após o enterro da mamãe foram de puro torpor. Era como se estivéssemos nos movendo debaixo d'água, lentos, desorientados, incapazes de ouvir ou sentir completamente. Papai arranjou uma licença no trabalho e eu faltei à escola por quase um mês. Ninguém questionou. A história tinha saído em todos os jornais locais. A tragédia da família Santos. Estampavam as manchetes com fotos nossas tiradas de álbuns de família que alguém, algum conhecido, algum vizinho tinha vendido para a imprensa. Nosso pequeno apartamento no bairro Água Verde, distante da nossa antiga casa, deveria ser um novo
começo. Mas como recomeçar quando sua vida foi dilacerada tão violentamente? Nos primeiros dias, mal falávamos um com o outro, não por raiva ou ressentimento, mas porque as palavras pareciam totalmente inadequadas diante do que tínhamos vivido. À noite, eu ouvia meu pai chorando no quarto ao lado, um choro contido, abafado pelo travesseiro, como se até na sua dor ele tentasse não me incomodar. De manhã, ele preparava nosso café em silêncio, os olhos inchados e vermelhos, mas sempre tentando sorrir quando me via. Um sorriso que nunca chegava aos olhos, que só destacava ainda mais a devastação em
seu rosto. "Como você está hoje, filha?", ele perguntava, a mesma pergunta todas as manhãs, como um ritual. "Estou bem, pai", eu respondia, a mesma mentira todos os dias. Não estávamos bem. Estávamos despedaçados, sangrando por dentro, incapazes de lidar com a monstruosidade do que tinha acontecido. Foi na terceira semana em nosso novo lar que percebi que algo além da dor e do luto estava consumindo meu pai. Ele começou a perder peso rapidamente, sempre alegando não ter fome quando eu tentava fazê-lo comer. Dormia cada vez menos. Muitas vezes eu o encontrava de madrugada sentado na pequena varanda
do apartamento, olhando para o nada. um copo de whisky na mão. "Você precisa dormir um pouco, pai", eu dizia. "Não consigo fechar os olhos sem ver". Ele começava, mas nunca terminava a frase. Não precisava. Eu também via quando fechava os olhos. Minha mãe na cama, o sangue, Bernardo, a faca, o tiro. Um filme de horror que se repetia sem parar. Uma manhã, quando entrei na cozinha, encontrei meu pai sentado à mesa, cercado por papéis. Relatórios policiais, documentos de adoção, fotos de Bernardo mais jovem, matérias antigas de jornal. Ele tinha os olhos fixos vidrados nas páginas
à sua frente. "O que é isso, pai?", perguntei, embora já soubesse. "Eu deveria ter visto, Net", ele respondeu. A voz rouca de quem não fala há horas. Está tudo aqui, todos os sinais, o histórico dele, os alertas. Como pude ser tão cego? Sentei-me ao lado dele, olhando para os documentos espalhados. Havia relatórios de psicólogos descrevendo Bernardo como potencialmente perigoso, incapaz de empatia, propenso a comportamentos manipulativos. Havia registros de ocorrências nas casas anteriores. Uma criança mais nova empurrada da escada, um cachorro encontrado morto, objetos roubados, pequenos incêndios. "Não era sua culpa", falei, segurando a mão gelada
do meu pai. Você não sabia. Ninguém te mostrou esses documentos. Eu sou policial, Net, ele disse, puxando a mão de volta. Meu trabalho é investigar, descobrir a verdade. E eu nem mesmo investiguei o garoto que trouxe para dentro da minha casa, para perto da minha família. Lwinkle. A culpa começou a consumi-lo como uma doença. Dia após dia, via meu pai desaparecendo dentro de si mesmo. Quando finalmente voltou ao trabalho, após seis semanas de licença, era apenas uma sombra do homem que tinha sido. Os outros policiais o tratavam com uma mistura de pena e desconforto. Ele,
que sempre tinha sido respeitado pela integridade e competência, agora era visto como uma tragédia ambulante. Voltei para a escola também, embora tivesse implorado para mudar para outra. Não suportava os olhares, os coxichos quando eu passava. Algumas amigas tentaram se aproximar, mas eu não sabia mais como ser normal, como falar sobre coisas comuns de adolescente quando tinha visto e feito coisas que ninguém da minha idade deveria experimentar. Solange, minha melhor amiga, foi a única que persistiu. Vinha ao apartamento quase todos os dias depois da aula, mesmo quando eu mal falava. Sentava-se comigo em silêncio, às vezes
apenas segurando minha mão, outras vezes contando as fofocas da escola como se nada tivesse acontecido. Sua presença era como um fio tênue conectando-me ao mundo que existia antes da tragédia. À medida que os meses passavam, uma rotina sombria se estabeleceu. Papai trabalhava longas horas, chegando em casa tarde, muitas vezes cheirando a álcool. Eu cuidava da casa o melhor que podia, cozinhava o básico que tinha aprendido com mamãe, tentava manter as notas na escola. Nos falávamos cada vez menos. Foi um ano após a morte da mamãe que a situação atingiu o fundo do poço. Eu tinha
acabado de completar 16 anos, uma data que passou quase despercebida, com apenas um pequeno bolo comprado por Solange e um abraço desajeitado do meu pai. Ele parecia pior a cada dia, mais magro, mais distante, com olheiras profundas e uma expressão vazia que me assustava. Naquela noite, cheguei da escola e encontrei o apartamento escuro e silencioso. Chamei por ele, mas não obtive resposta. Uma sensação de pânico começou a crescer no meu peito enquanto checava os cômodos vazios. Quando cheguei ao banheiro e a porta estava trancada, o pânico virou terror. "Pai!", gritei batendo na porta. "Pai, responde,
por favor! Silêncio. Corri para a cozinha, peguei uma faca e voltei para forçar a fechadura. Quando a porta finalmente cedeu, a cena diante de mim congelou meu sangue. Meu pai na banheira, a água avermelhada, um corte profundo em cada pulso, a cabeça caída para o lado, os olhos fechados. Por um momento terrível, achei que tinha chegado tarde demais. Então, notei o movimento sutil do seu peito. Estava respirando, ainda que fracamente. Não lembro direito o que fiz a seguir. Sei que gritei por socorro, que corri para o telefone, que chamei uma ambulância. Sei que tentei estancar
o sangramento com toalhas, que repeti sem parar. Não me deixa, pai, por favor, não me deixa. As horas no hospital foram as mais longas da minha vida. Sentada sozinha na sala de espera, com as roupas ainda manchadas de sangue, sangue do meu pai dessa vez, senti que tinha chegado ao meu limite. Tinha 16 anos e já tinha visto mais morte e sofrimento do que muitos vem em uma vida inteira. Tinha perdido minha mãe, tinha tirado uma vida, mesmo que em legítima defesa, e agora estava prestes a perder meu pai também. Quando o médico finalmente apareceu
para dizer que ele sobreviveria, que tínhamos chegado a tempo, desabei em lágrimas, não de alívio, mas de exaustão total. Chorei até não ter mais lágrimas, até meu corpo inteiro doer, até os enfermeiros se preocuparem que precisaria de sedação também. Meu pai ficou internado por duas semanas, primeiro na UTI, depois na ala psiquiátrica. Os médicos falavam em depressão severa, ideiação suicida, transtorno de estresse pós-traumático. Para mim eram apenas palavras técnicas para descrever o que eu já sabia. Meu pai estava se afogando em culpa e eu não sabia como salvá-lo. Durante essas duas semanas, fiquei na casa
de Solange. Os pais dela me trataram com carinho, tentando me dar um vislumbre de normalidade. Tio Carlos, pai de Solange e amigo de infância do meu pai, foi me visitar todos os dias no hospital, muitas vezes ficando lá quando eu não podia por causa da escola. Quando meu pai finalmente recebeu alta, veio com uma sacola de medicamentos e uma recomendação para terapia duas vezes por semana. Estava mais calmo, mas ainda distante, como se uma parte dele tivesse permanecido naquela banheira. Me desculpe, Net. Foram suas primeiras palavras quando ficamos sozinhos em casa. Eu eu não estava
pensando em você. Só queria que a dor parasse. Abracei-o, sentindo seus ossos sob a pele, tão frágil, tão diferente do homem forte que eu conhecia. "Vamos superar isso, pai?", falei sem realmente acreditar. "Juntos. Promete que não vai me deixar?" Ele assentiu, mas não conseguiu me olhar nos olhos. Prometo tentar. Os meses seguintes foram de recuperação lenta, dolorosa, com altos e baixos assustadores. A terapia ajudou, não de forma milagrosa, mas aos poucos. O psiquiatra ajustou os medicamentos algumas vezes até encontrar a combinação que mantinha os pensamentos mais sombrios sob controle. Meu pai voltou ao trabalho, mas
em serviço administrativo, longe das ruas e da pressão. Contamos com a ajuda inesperada de pessoas que até então eram apenas conhecidos distantes. A senhora do apartamento ao lado, dona Iracema, viúva de 70 anos, passou a trazer pratos caseiros quase diariamente, insistindo que estávamos muito magros. O porteiro do prédio, seu juvenal, sempre achava um jeito de consertar pequenas coisas no apartamento sem cobrar. A professora de português se ofereceu para me dar aulas extras para compensar o tempo perdido. Pequenos gestos de bondade que juntos formaram uma rede de segurança ao nosso redor, impedindo que caíssemos novamente no
abismo. Ainda assim, nunca voltamos a ser quem éramos antes. Como poderíamos? Carregávamos cicatrizes visíveis e invisíveis que reformularam completamente quem éramos, como víamos o mundo, como nos relacionávamos um com o outro e com os outros. No meu aniversário de 17 anos, meu pai fez um esforço visível para criar alguma normalidade. Comprou um bolo, convidou Solange e mais dois colegas da escola que tinham se aproximado de mim. Até colocou uma música que mamãe adorava. No meio da pequena celebração, nossos olhares se cruzaram e vi nele uma mistura de tristeza e determinação que me partiu o coração.
Mais tarde naquela noite, quando todos já tinham ido embora, ele me entregou um pequeno embrulho. Era da sua mãe ele disse. Ela queria que você tivesse no seu aniversário de 18, mas acho que ela ia querer que você tivesse agora. Dentro da caixinha havia um colar de ouro com um pequeno pingente em forma de livro aberto, uma referência ao amor que mamãe tinha pela leitura e tentava incutir em mim desde pequena. Ela comprou meses antes, antes de tudo acontecer. Ele continuou, a voz embargada. Guardei exatamente onde ela tinha escondido. Olhando para aquele colar, algo quebrou
dentro de mim, não de forma destrutiva, mas como se uma represa finalmente cedesse, liberando emoções que eu tinha mantido contidas por tanto tempo. Sinto tanta falta dela", confessei, as lágrimas escorrendo livremente. Todos os dias, pai, todos os dias acordo pensando que vou ouvir a voz dela pela casa. Eu também, filha", ele respondeu e pela primeira vez desde a tragédia, chorou abertamente na minha frente, não escondido no quarto, não silenciosamente, mas grandes soluços que sacudiam todo o seu corpo. "Não passa um segundo sem que eu pense nela, sem que eu me arrependa." "Não foi sua culpa",
falei com toda a convicção que pude reunir. "Pai, olha para mim. Não foi sua culpa. Você só queria ajudar alguém, só queria fazer o bem, mas eu trouxe o monstro para dentro da nossa casa, Net. Eu insisti mesmo quando sua mãe tinha dúvidas, e ele nos enganou. Enganou a todos. Até os especialistas não viram o que ele realmente era. Ficamos ali abraçados, chorando juntos pela primeira vez. foi doloroso, mas de alguma forma também purificador, como se juntos pudéssemos finalmente começar a drenar o veneno da culpa e do ressentimento que estava nos consumindo por dentro. Aquela
noite não curou magicamente tudo. Meu pai ainda tinha dias ruins, ainda lutava contra a depressão, ainda acordava gritando com pesadelos. Eu ainda tinha flashbacks terríveis, ainda evitava certos lugares e situações, ainda pulava com qualquer barulho repentino. Mas algo fundamental tinha mudado. Não estávamos mais sofrendo separadamente, cada um isolado em sua dor. Estávamos sofrendo juntos e, de alguma forma, isso tornava o fardo mais suportável. Nos meses seguintes, estabelecemos novos rituais familiares, pequenos momentos de conexão que nos ajudavam a continuar. Aos domingos, fazíamos panquecas juntos, como mamãe costumava fazer. Nas noites de sexta, assistíamos a um filme,
sempre algo leve, nada com violência ou suspense. Aos sábados, visitávamos o cemitério, levando flores frescas para mamãe. E aos poucos, tão devagar que mal percebi quando começou, fomos reaprendendo a viver, não como antes, nunca seria como antes, mas de uma nova forma, carregando nossas cicatrizes com mais dignidade, aproveitando os momentos bons quando vinham. enfrentando juntos os momentos ruins. No meu último ano do colégio, quando chegou a hora de decidir o que faria da vida, a resposta veio naturalmente: psicologia. Queria entender o que tinha acontecido com nossa família. Queria ajudar outras pessoas que passavam por traumas.
queria transformar toda aquela dor em algo positivo. Quando contei ao meu pai, vi um brilho nos olhos dele que há muito não via, um vislumbre do homem que ele tinha sido antes, do policial idealista que acreditava em fazer a diferença. "Sua mãe teria tanto orgulho de você", ele disse, segurando minhas mãos. "E eu tenho, Nete, tanto orgulho que mal cabe no peito. Foram palavras simples, mas significaram o mundo para mim. Um sinal de que, apesar de tudo, ainda havia esperança para nós, de que poderíamos não apenas sobreviver a tragédia, mas eventualmente encontrar um caminho para
além dela. O caminho seria longo, sinuoso, com muitos obstáculos ainda por vir. Mas naquele momento, pela primeira vez desde o dia que mudou tudo, senti que talvez, apenas talvez, pudéssemos encontrar algum tipo de paz. O que eu não sabia é que essa paz viria de formas inesperadas e que a jornada de cura seria tão transformadora quanto dolorosa. Que precisaríamos descer ainda mais fundo no poço da dor antes de finalmente encontrar a luz. O tempo é estranho quando você passa por uma tragédia. Às vezes parece que tudo aconteceu ontem. Posso sentir o cheiro do sangue, ouvir
os gritos, ver os olhos vazios da minha mãe. Outras vezes parece que aconteceu em outra vida com outra pessoa. Hoje, aos 73 anos, olhando para trás, vejo que aquela menina de 14 anos, que perdeu tudo em um dia, nunca imaginaria a vida que acabaria construindo a partir das cinzas. Entrei na Faculdade de Psicologia da Federal do Paraná em 1970, com 19 anos. foi uma conquista, não só minha, mas de nós dois, eu e meu pai. Ele tinha voltado a trabalhar em tempo integral, ainda na parte administrativa da polícia, e eu dava algumas aulas particulares para
ajudar nas despesas. Não era fácil, mas estávamos seguindo em frente, um dia de cada vez. O campus universitário era um mundo à parte do que eu conhecia. Pela primeira vez desde a tragédia, estava em um lugar onde não era a menina daquela família, onde as pessoas não sabiam da minha história antes mesmo de me conhecer. Era libertador e assustador ao mesmo tempo. Podia ser quem eu quisesse, mas também me sentia como uma impostora, como se carregasse um segredo terrível que, se descoberto, faria todos se afastarem. No meu segundo ano de faculdade, aconteceu algo que mudaria
minha vida de novo, mas dessa vez para melhor. Num seminário sobre trauma, o professor convidou um psiquiatra para falar sobre sua experiência, tratando sobreviventes de situações extremas. Doutor Eduardo Mendes tinha uns 40 anos, cabelos grisalhos prematuros, olhos gentis por trás de óculos de aro fino. Falou com tanto conhecimento e empatia que fiquei após a aula para fazer perguntas. Você tem um interesse particular no tema? Ele observou depois da minha terceira pergunta. Hesitei. Era a primeira vez que considerava compartilhar minha história com alguém da faculdade. É, pessoal, respondi finalmente. Ele assentiu sem pressionar. Se quiser conversar
algum dia, trabalho na clínica universitária às terças e quintas. Demorei três semanas para criar coragem, mas acabei indo. Sentada naquela pequena sala com paredes azul claras, contei tudo sobre Bernardo, sobre minha mãe, sobre a tentativa de suicídio do meu pai, sobre como ainda acordava gritando muitas noites. Falei por quase duas horas sem parar, palavras jorrando como uma represa rompida. Doutor Eduardo ouviu sem julgar, sem aquela expressão de horror ou pena que eu tanto temia. Quando terminei, ele não ofereceu soluções milagrosas ou frases feitas de consolo. "Janete", ele disse, "e foi a primeira vez que alguém
me chamou pelo nome completo em anos. O que você viveu é inimaginável para a maioria das pessoas. Que você esteja aqui estudando, funcionando é extraordinário. Mas a verdadeira cura não vem apenas de sobreviver, vem de integrar o trauma, a sua história, sem deixar que ele defina quem você é. Aquelas palavras abriram algo dentro de mim. Começamos uma terapia formal uma vez por semana. Não foi fácil. Muitas vezes saía das sessões exausta, drenada, como se tivesse corrido uma maratona emocional. Mas lentamente comecei a ver minha história de outra perspectiva. Você não é apenas uma vítima, Janete.
Dr. Eduardo me disse certa vez, você é uma sobrevivente e mais que isso, você salvou seu pai. Sem você, ele não estaria vivo hoje. Nunca tinha pensado assim. Sempre me vi como a menina que não percebeu o perigo há tempo, que não conseguiu proteger a mãe, que foi forçada a machucar alguém para sobreviver. A ideia de que também havia força e coragem nas minhas ações era revolucionária. Compartilhei essas ideias com meu pai, que agora tinha seu próprio terapeuta. Aos poucos, nossa relação foi se transformando. Não éramos mais apenas dois sobreviventes ligados pela tragédia, mas duas
pessoas reconstruindo uma conexão genuína, baseada não apenas no que tínhamos perdido, mas no que ainda tínhamos um no outro. Foi na terapia que finalmente consegui falar sobre algo que tinha guardado por anos, a culpa por ter matado Bernardo. Mesmo sabendo que foi autodefesa, mesmo sabendo o que ele tinha feito, aquele momento em que enfiei a faca nele me assombrava. Tirei uma vida, confessei, as mãos tremendo. Às vezes acordo e sinto o peso dele caindo sobre a faca. Sinto o sangue quente nas minhas mãos. Em situações extremas, nosso cérebro tem apenas algumas opções: fugir, congelar ou
lutar?", Dr. Eduardo explicou. Você não estava pensando racionalmente naquele momento, estava sobrevivendo. Não foi uma escolha consciente, foi instinto puro. Demorei muito tempo para aceitar isso, para entender que minha reação não me tornava igual a Bernardo, que havia um abismo entre matar por prazer, por poder, como ele fez com minha mãe, e matar para se defender quando não há outra opção. No terceiro ano de faculdade, comecei a me abrir mais. Fiz amigos, participei de grupos de estudo, até fui a algumas festas. Nada extravagante, mas pequenos momentos de normalidade que antes pareciam impossíveis. Um desses amigos
era Carlos, estudante de direito, que conheci na biblioteca. Começamos conversando sobre livros e acabamos conversando sobre tudo. Em nosso quarto encontro, num café perto da universidade, ele pegou minha mão sobre a mesa. "Posso te contar um segredo, Nete?", Ele disse, usando o apelido que poucos usavam. Agora sei quem você é. Sabia desde o primeiro dia. Meu sangue gelou. O que quer dizer? Meu pai é advogado. Ele trabalhou no caso, no seu caso, há 4 anos. Reconheci seu nome. Puxei minha mão, pronta para levantar e sair correndo. Ele continuou rapidamente. Espera, por favor. Não contei para
ninguém. Nunca contaria. Só queria que soubesse que que te admiro. A coragem que deve ter exigido para seguir em frente depois de tudo. Fiquei paralisada, sem saber como reagir. Parte de mim queria fugir, esconder-me da exposição. Outra parte sentia um estranho alívio, como se um peso tivesse sido levantado por não precisar mais fingir, pelo menos com uma pessoa. "Por que está me dizendo isso agora?", perguntei, a voz mal saindo. Porque acho que estou me apaixonando por você? Ele respondeu simplesmente: "E queria começar com honestidade total. Foi o início de meu primeiro relacionamento. Lento, hesitante, cheio
de recuos da minha parte. Carlos tinha uma paciência infinita, nunca me pressionando, sempre respeitando meus limites, mesmo quando não os entendia completamente. Demorei seis meses para deixá-lo me beijar. quase um ano para conseguir ficar sozinha num quarto fechado com ele, sem entrar em pânico. Quando finalmente contei a meu pai sobre Carlos, ele ficou visivelmente nervoso. A ideia de me ver envolvida com alguém trazia de volta os medos do que tinha acontecido com Bernardo. Convidei Carlos para um jantar e meu pai o interrogou, como só um policial sabe fazer. Carlos aguentou tudo com respeito e até
humor, entendendo de onde vinha a preocupação. No final da noite, quando Carlos foi embora, meu pai me abraçou. Ele parece um bom rapaz, Net, disse, a voz embargada. Sua mãe ia gostar dele. Foi a primeira vez que mencionou minha mãe sem aquela sombra de culpa e dor absoluta. Um pequeno milagre. Me formei em 1974, aos 23 anos. Carlos se formou em direito no mesmo ano. Nosso namoro tinha se fortalecido, sobrevivendo às pressões da faculdade, as minhas lutas internas, aos medos do meu pai. Na formatura, com o diploma na mão, olhei para a plateia e vi
meu pai aplaudindo de pé, lágrimas nos olhos. Ao lado dele estava Solange, que tinha se tornado professora, e mais alguns amigos queridos que tínhamos feito ao longo dos anos. Foi naquele momento que percebi algo importante. Tínhamos construído uma nova vida, não perfeita, não sem dor ou cicatrizes, mas uma vida com conexões genuínas, conquistas reais, momentos de alegria verdadeira. Carlos me pediu em casamento naquela noite, durante a festa de formatura. Disse sim, mas com uma condição, que morássemos perto do meu pai. Ele entendeu sem que eu precisasse explicar. Meu pai tinha melhorado muito, mas ainda precisava
de nós por perto e eu não conseguiria ser feliz, sabendo que ele estava sozinho. Nos casamos em 1975, uma cerimônia pequena com apenas amigos próximos e família. Meu pai me levou ao altar, mais magro e com muito mais cabelos brancos do que deveria ter aos 50 anos, mas com um sorriso genuíno no rosto. Quando me entregou a Carlos, sussurrou: "Sua mãe estaria tão orgulhosa da mulher que você se tornou. Compramos uma casa há 10 minutos da dele." Carlos abriu um pequeno escritório de advocacia especializado em direitos humanos. Eu comecei a trabalhar em uma clínica comunitária,
atendendo pessoas que não podiam pagar por terapia particular. O trabalho era desafiador, muitas vezes doloroso, mas profundamente gratificante. Usar minha própria experiência de trauma para ajudar outros a navegarem pelos seus davam sentido para tudo que tinha acontecido. Em 1977, aos 26 anos, descobri que estava grávida. A notícia trouxe uma mistura complexa de emoções. Alegria, sim, mas também terror. Como poderia ser mãe quando tinha perdido a minha tão jovem? Como protegeria essa criança num mundo que tinha se mostrado tão brutal? Dr. Eduardo, agora mais um amigo que terapeuta, me ajudou a navegar por esses medos. Você
não está condenada a repetir o passado, Janete. Ele me lembrou. Sua experiência te deu uma sabedoria que muitos pais nunca terão. Meu pai ficou estasiado com a notícia. Algo nele rejuveneceu com a perspectiva de ser avô. Pintou o quarto do bebê, montou o berço, começou a comprar brinquedos meses antes do nascimento. Será que vou saber ser avô? Ele me perguntou uma noite, a insegurança transparecendo. Depois de tudo. Vai ser o melhor avô do mundo? respondi segurando sua mão. Essa criança vai ter tanta sorte de ter você. Em setembro de 1977, nasceu minha filha, Marilene, nome
escolhido em homenagem à minha mãe. Segurar aquele pequeno embrulho nos braços foi como sentir meu coração fora do corpo, exposto e vulnerável, mas também incrivelmente forte. O amor que senti foi tão avaçalador que me deixou sem fôlego. O primeiro ano com Mari foi exaustivo, assustador e maravilhoso. Carlos se mostrou um pai dedicado, dividindo todas as responsabilidades. Meu pai aparecia quase diariamente, trazendo presentes, oferecendo ajuda, apenas querendo segurar sua netinha por alguns minutos. Mari cresceu rodeada de amor, protegida, mas não sufocada. Decidimos desde cedo que quando ela tivesse idade suficiente, contaríamos sobre o que aconteceu com
nossa família. Não todos os detalhes sombrios, mas o essencial, que sua avó tinha sido vítima de violência, que seu avô e eu tínhamos sobrevivido a uma grande tragédia. Queríamos que ela entendesse suas raízes, mas sem carregar nossos traumas. Em 1980, tivemos nosso segundo filho, Valdir, homenageando meu pai. Ver os dois primos juntos, meu pai com um neto em cada braço, era uma imagem que jamais imaginei possível nos dias mais escuros após a tragédia. A vida seguiu seu curso. Tivemos alegrias. As primeiras palavras dos filhos, aniversários, formaturas. Tivemos tristezas também. A morte do meu pai em
1995, de um ataque cardíaco aos 70 anos. Mas mesmo nas perdas, havia uma diferença fundamental. Não estávamos mais sozinhos, despedaçados pela tragédia. Tínhamos construído uma família, uma rede de apoio, uma vida plena. Apesar de tudo. Mari se formou em medicina, Valdir em engenharia. Ambos casaram, me deram netos maravilhosos. Carlos e eu celebramos 50 anos de casamento no ano passado. Meio século de parceria, respeito e um amor que cresceu das cinzas da maior tragédia que alguém pode imaginar. Hoje, aos 73 anos, sentada nesta sala conversando com vocês, olho para trás e vejo que minha vida não
foi definida pelo que perdi, mas pelo que construí depois. Não sou apenas a menina que sobreviveu ao horror. Sou uma mulher que encontrou força onde achou que não havia nenhuma, que aprendeu a amar quando achou que o coração estava permanentemente quebrado. Se há uma lição que posso compartilhar da minha jornada, é esta: o trauma não tem o poder de determinar quem você será para sempre. Sim, ele deixa cicatrizes. Sim, ele muda você fundamentalmente, mas não determina o valor da sua vida, nem limita sua capacidade de encontrar alegria, propósito e amor novamente. Minha história não é
sobre a tragédia, é sobre o que veio depois. A reconstrução, a cura, a descoberta de que somos muito mais resistentes do que imaginamos. É sobre como mesmo nas noites mais escuras existe a possibilidade do amanhecer. Se você está passando por seu próprio vale de sombras agora, quero que saiba, não está sozinho. Há um caminho através da dor, mesmo quando parece impossível enxergá-lo. Um passo de cada vez, um dia de cada vez. E talvez, anos depois você olhe para trás, como eu estou fazendo agora e veja que construiu algo belo a partir das ruínas. Meus queridos,
se essa história tocou seu coração, me faria muito feliz se você deixasse um like nesse vídeo e se inscrevesse no canal. Este lugar aqui se tornou meu cantinho para compartilhar não só minhas experiências, mas também para conectar com pessoas como você. E olha, se você quiser receber mais histórias como esta diretamente no seu celular, entre no grupo do WhatsApp do canal. O link está na descrição abaixo. Lá enviamos todos os dias histórias reais de outras vovós como eu, que passaram por suas próprias provações e encontraram força para seguir em frente. Lembre-se, nossas cicatrizes contam histórias
de sobrevivência, não apenas de dor. E compartilhá-las pode ser o primeiro passo na cura de alguém que está sofrendo em silêncio. Até o próximo vídeo, meus queridos. Que Deus abençoe cada um de vocês.