Quando Paulo Freire observa que a educação é uma forma de intervenção no mundo ele se refere tanto àquela intervenção que aspira a transformações na sociedade no campo da economia, das relações humanas, do trabalho e do direito à moradia, à educação e à saúde; mas se refere também à possibilidade de intervenção reacionária, aquela que pretende imobilizar a história e manter essa ordem que privilegia poucos. A questão, portanto, é que a educação sempre é uma forma de intervenção. Por isso que ensinar exige a tomada consciente de decisões.
Paulo Freire nos adverte que o professor democrático deve se manter particularmente atento às incoerências da sua prática, que, quando não são alvo de reflexão permanente, acabam se tornando frequentes e inviabilizam uma pedagogia da autonomia. Ele argumenta que a incoerência entre as afirmações progressistas e aquele estilo desastrosamente elitista de ser intelectual, que muitas vezes conduz o professor a um autoritarismo paternalista, que induz os alunos a um estado de dependência de sua “superioridade”, em vez de estimular a sua autonomia, esse tipo de atitude inviabiliza qualquer discurso. A virtude da coerência, que não é uma virtude natural, exige reflexão constante, exige autocrítica, exige humildade para rever posições, a coerência é uma virtude indispensável para tomar decisões com consciência.
Um professor que quer construir uma prática progressista, mas se mostra preconceituoso, por exemplo, vai ter a sua autoridade implodida. Não deixa de ser um alerta irônico, ou trágico, de certa forma, observar que, em geral, a gente enxerga muita coerência entre professores e intelectuais autoritários, de direita ou de esquerda. Dificilmente um professor ou uma professora autoritária vai respeitar ou estimular a curiosidade crítica entre os estudantes, a pluralidade de vozes e de visões de mundo em sala de aula, o gosto pela dúvida e pela aventura intelectual movida pelo desejo aberto de aprender.
Nada disso. O professor autoritário costuma ser coerente em seu autoritarismo porque dificilmente vai agir, de maneira consciente e deliberada, para fortalecer a autonomia dos estudantes. A sua coerência é clara: ele fala, alunos ouvem, ele sabe, alunos não; o seu papel é transferir conhecimento e o papel dos alunos é receber aquilo de forma passiva e repetir, até passar de ano, ou não.
A dimensão política da educação está precisamente na direção em que o professor confere sentido aos conteúdos. Vai aprender só para passar de ano? O conhecimento da escola não tem nada a ver com a vida?
Ok, está aí uma direção. É uma decisão política do professor. O discurso do professor sobre os usos do conhecimento discutido em sala de aula tem outro objetivo, outra meta, outra direção?
É treinar o aluno para que ele funcione melhor e cumpra as necessidades daquele momento do mercado de trabalho? Isso é um direcionamento político possível para o conteúdo. O objetivo, por outro lado, é estimular o senso crítico, é fortalecer a autonomia, é favorecer a capacidade de articular informações e produzir conhecimentos novos?
Isso é outro direcionamento possível. O objetivo é transformar a realidade a partir dos conhecimentos? Outro direcionamento.
A dimensão política é uma dimensão inerente da educação, assim como é inerente a qualquer ação humana que implica escolhas. Quando se proíbem as escolhas, aí sim a gente vê a ascensão do autoritarismo e do esvaziamento da ética, mas ainda assim, tudo isso não deixa de ser uma decisão política. É por isso que Paulo Freire observa que é impossível um ensino neutro.
É impossível não porque um suposto professor doutrinador quer que a educação seja assim. A educação não se torna política por causa da decisão de um educador. A educação é política, quer o educador tome as suas decisões com essa consciência, ou não.
Aqueles que imaginam que os professores, a parte mais frágil do sistema ideológico da educação, seriam os verdadeiros culpados por fazer com que a educação fosse “deturpada” ao "ficar ideológica", politizada, são pessoas que nem conseguem esconder a forma depreciativa como entendem o significado de política, nem esconder o pensamento autoritário que fundamenta essa aversão à possibilidade de escolha. Para Paulo Freire, a raiz mais profunda do caráter necessariamente político da educação se encontra em uma qualidade que é uma das características definidoras do ser humano. O ser humano é um ser inacabado.
O ser humano é um processo. Nós ainda estamos caminhando na nossa trajetória de conhecimento para entender quem somos e o que é a realidade. Isso ainda não está resolvido.
Nós não somos seres perfeitos, definitivos, acabados. Nos estamos em pleno processo de busca. Quando passamos a ter consciência sobre a nossa enorme ignorância sobre o mundo e sobre nós mesmos é que nós nos tornamos educáveis, ou seja, capazes e dispostos a aprender o que a gente ignora.
Quem acha que já sabe tudo, quem acha que já está completo, não tem o que aprender. Mas a consciência do inacabamento, ao nos conduzir à busca e também ao próprio processo de construção dessa humanidade inacabada, à construção de uma realidade social, porque se não fomos nós quem criamos a natureza, e mesmo assim a gente consegue modificar muita coisa, fomos nós quem criamos a sociedade, a criação da sociedade é uma obra humana e inacabada, olha o tanto de coisa errada, incompleta, injusta, e como seres humanos, conscientes desse inacabamento, temos que ter consciência também de que temos plenas condições de participar desse processo humano de recriação permanente do mundo. E a questão é que somos seres éticos, nós temos interesses, frequentemente divergentes, como seres éticos nós podemos escolher entre as possibilidades, entre as opções que vão sendo imaginadas na construção de uma sociedade histórica inacabada, que está em movimento.
Porque em um mundo inacabado, há infindáveis possibilidades de construção, nos mais diversos sentidos e nas mais diversas direções. Então só seria possível uma educação neutra se não houvesse nenhuma discordância entre as pessoas em relação às possibilidades e aos rumos na construção da sociedade, nenhuma discordância em relação ao modo de vida individual e social que as pessoas escolhem viver, aos valores e às opções políticas que os indivíduos e as comunidades optam. Seria preciso que não houvesse, por exemplo, nenhuma divergência sobre o que fazer com o problema da miséria no Brasil.
Sem contar com os dilemas éticos da própria ciência. Ou com as divergências metodológicas, ou com o fato de que a ciência está em permanente transformação. O que hoje é cientificamente comprovado, amanhã pode ser superado por uma nova teoria.
Em síntese, só seria possível uma educação neutra em um mundo não humano. Há incompatibilidade total entre o mundo humano, da fala, da percepção, da inteligibilidade, da comunicabilidade, da ação, da observação, da comparação, da verificação, da busca, da escolha, da decisão, da ruptura e da ética, há incompatibilidade total desse mundo humano com uma educação mecânica, neutra, apolítica e inumana. Para Paulo Freire, o que devemos buscar não é a neutralidade da educação, mas o respeito, a toda prova, aos alunos e às alunas, assim como aos professores e às professoras.
O respeito aos professores por parte da administração pública ou privada das escolas, o respeito mútuo entre estudantes e professores. É por isso que a luta para que os poderes públicos e o sistema particular de ensino respeitem o professor é tão importante para garantir essa que é uma das condições pedagógicas básicas para a qualidade da educação. Uma luta para que professores e professoras tenham o direito de pensar o mundo e os conhecimentos, que estão em permanente transformação, com liberdade.
É básico. “Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? Para Paulo Freire, “lavar as mãos” diante uma injustiça é optar pela injustiça.
Não é uma ação neutra. O que se coloca ao educador democrático, que sabe da impossibilidade da neutralidade na educação, é a consciência de que se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também um mero instrumento para reproduzir a ideologia dominante.
O que ele quer dizer é que a educação não é nem uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade, nem uma prisão que apenas perpetua o status quo dominante. O professor não pode cair na armadilha idealista que sugere que a sala de aula pode transformar o país. Mas ele pode demonstrar, com o seu exemplo, que sim, é possível mudar, os conhecimentos e o mundo podem se transformar.
E isso reforça a importância de sua tarefa político-pedagógica. E esse trecho merece ser lido na íntegra: “A professora democrática, coerente, competente, que testemunha seu gosto pela vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta sua capacidade de luta, seu respeito às diferenças, sabe cada vez mais o valor que tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo, de que sua experiência na escola é apenas um momento, mas um momento importante que precisa ser autenticamente vivido. ” Os dois próximos vídeos vão discutir o subcapítulo “Ensinar exige saber escutar.
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