Leonardo DiCaprio, The Economist, MBL, Bill Gates, Supremo Tribunal Federal, Rede Globo…. todos esses já foram chamados de comunistas nas redes sociais brasileiras. Nenhum é de fato comunista, mas isso ilustra como essa palavra virou uma espécie de xingamento usado por parte da direita no Brasil — mesmo quando o alvo não tem nada a ver com o comunismo.
A revista britânica The Economist, por exemplo, é um bastião liberal. Mas, para além dos memes e ataques contra adversários, o que realmente significa ser comunista? As origens do comunismo não estão muito claras.
Há quem aponte o surgimento desses ideais na Grécia Antiga, na obra do filósofo grego Platão, que discutia ideias como o fim da propriedade privada e da família. Ele defendia que caberia ao Estado educar as crianças, mas só para algumas classes sociais. O filósofo e professor italiano Giuseppe Bedeschi conta que foi no início da civilização cristã que floresceram os primeiros ideais comunistas voltados a todas as pessoas – e não mais apenas algumas classes.
Esses ideais eram a defesa da vida em comum, do desapego de bens terrenos. A conexão entre espiritualidade cristã e as reivindicações sociais de viés comunista atravessou os séculos. A partir da Idade Média, virou uma espécie de utopia, de todos trabalhando juntos pelo bem coletivo, e influenciou ideais da Revolução Francesa.
Mas muito do que se entende por comunismo hoje deriva do século 19, mais especificamente dos pensadores alemães Friedrich Engels e, principalmente, Karl Marx. Pra resumir, o comunismo marxista prega uma luta de classes entre a burguesia e o proletariado. Dessa luta nasceria a revolução, que por sua vez levaria ao fim das classes sociais e propriedades privadas.
Marx achava que o sistema econômico baseado no lucro privado era instável por natureza e, por isso, acabaria se autodestruindo. Na visão dele, o comunismo iria surgir de forma inevitável em países com economias avançadas –embora muitas releituras de sua obra tenham tentado transpor essa filosofia para países agrários pobres, como a China da primeira metade do século 20 e a própria Rússia dos tempos dos czares. No livro O Capital, Marx descreve as péssimas condições dos trabalhadores nas fábricas inglesas no auge da revolução industrial.
E argumenta que a classe operária era mantida na pobreza e explorada pelos donos das fábricas, enquanto estes detinham todo o poder e dinheiro porque controlavam os meios de produção. É um modelo que, na visão de Marx, entraria em colapso pelo peso de suas próprias contradições. A obra de Marx não explica claramente como seria a sociedade comunista que substituiria o capitalismo.
Só diz que ela libertaria os trabalhadores da servidão. Essas teorias ficaram sem conclusão com a morte dele, em 1883. Já o socialismo, na visão de Marx, era um estágio intermediário anterior ao comunismo, enquanto a classe trabalhadora se conscientiza e se empodera.
Ao longo do tempo, as palavras socialismo e comunismo foram usadas muitas vezes como sinônimos. Mas, depois do surgimento da União Soviética, o termo socialismo acabou sendo associado ao que acontecia fora da esfera de influência russa – inclusive nas chamadas sociais-democracias europeias. Eu vou falar sobre elas mais adiante no vídeo.
Já o termo comunismo ficou mais associado ao implementado na China e, principalmente, no território russo no século 20. A mais importante tentativa de tornar essa ideologia uma realidade começou em 1917 na Rússia. Foi a chamada Revolução Comunista, liderada por nomes como Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Joseph Stálin.
A primeira fase do movimento deu fim a séculos de domínio dos czares. Oito meses depois, a segunda fase foi marcada pela substituição do modelo capitalista pelo socialista, algo que nunca havia sido tentado no mundo. Lênin, o primeiro líder comunista, adotou o slogan "paz, pão e terra" para a população, que enfrentava fome e guerra, entre outras crises.
Ele era um pensador radical que acreditava que uma revolução comunista ajudaria a trazer igualdade para a recém fundada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Muitos russos se lembram dele como um grande líder que libertou o povo. Mas para outros, seu governo era controlador e cruel, porque aprisionava e matava pessoas que discordavam de suas ideias.
Essas duas visões opostas também seriam marcantes durante o governo de Stálin, que foi o principal sucessor de Lênin e virou ditador da União Soviética. O stalinismo é considerado uma forma mais linha-dura, inflexível, autoritária, hierárquica, intolerante à dissidência e não democrática do comunismo marxista-leninista. Ao longo do governo stalinista, a União Soviética passou por transformações profundas e conturbadas: perdeu parte de seus parques industriais, desapropriou terras, estatizou e repartiu propriedades rurais, em um processo que também levou à fome e a milhões de mortes.
Exemplo disso é a crise de fome na Ucrânia na década de 30, tão profunda que marcou a história do país para sempre. Stálin também promoveu o que ficou conhecido como o Grande Terror: a perseguição, o expurgo e o assassinato de todos aqueles que eram considerados inimigos da revolução. A paranoia e o denuncismo tomaram conta da sociedade.
Entre 1934 e 1939, estima-se que cerca de 750 mil pessoas tenham sido mortas sumariamente, sem direito a julgamento justo. Mas por outro lado, Stálin é exaltado pelo papel fundamental da União Soviética na vitória contra o regime nazista de Adolf Hitler e seus aliados. Até hoje Stálin é admirado por uma grande parcela da população russa.
Para pesquisadores, isso também tem a ver com uma certa nostalgia e romantismo da suposta glória do período soviético, e da aversão à ideia de que “elites gananciosas” controlam o poder hoje em dia. No mundo, o modelo comunista da União Soviética seria, até 1990, o principal contraponto ao modelo capitalista liderado pelos Estados Unidos. Mas outros movimentos comunistas ocorreriam pelo mundo, como a Revolução Chinesa, vitoriosa em 1949 sob o comando de Mao Tsé-tung.
Mao implementou políticas marxistas, mas focando nos camponeses, e não nos trabalhadores das fábricas. Nas primeiras décadas, o resultado lembra um pouco o que aconteceu na União Soviética. Políticas como o Grande Salto Adiante, que visava modernizar a agricultura e a indústria a partir do fim dos anos 50, são tidas como responsáveis pela Grande Fome Chinesa.
Milhões de pessoas morreram. Já a Revolução Cultural, lançada na década de 60, perseguiu críticos de Mao. Outras centenas de milhares de civis morreram em meio à violência desse processo.
A coletivização e a centralização da economia transformaram a sociedade chinesa. Após o fim da era Mao, o país entrou em um processo de modernização e abertura da economia. Com isso, conseguiu tirar 850 milhões de pessoas da pobreza extrema.
Mas a desigualdade se acentuou. Hoje, 70 anos depois da Revolução Comunista, alguns especialistas classificam a China, na verdade, como um capitalismo de Estado, em que a "mão invisível" do Partido Comunista está em todos os aspectos da economia. É o Estado que controla quase todas as maiores empresas do país, que administram os recursos naturais.
Ele também é oficialmente o proprietário de toda a terra, embora, na prática, as pessoas possam ter propriedades privadas. O Estado também controla o sistema bancário, decidindo quem pode tomar empréstimos, por exemplo. Outra revolução que marcou a história foi a Cubana, em 1959.
Um grupo de guerrilheiros liderados por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Raúl Castro derrubou uma ditadura e implementar um governo socialista. O regime cubano, que perdura até hoje, trouxe avanços sociais principalmente nas áreas da educação e saúde, mas é marcado por uma concentração autoritária de poder em um regime de partido único, modelo em que oposicionistas são muitas vezes perseguidos e presos. Mas ideias comunistas, socialistas e marxistas não avançaram só em forma de revolução ou de regimes autoritários.
A chamada social-democracia é, ao lado do comunismo, uma das principais formas de socialismo no século 20. Na maioria das vezes, um partido que se apresenta como social-democrata está na centro-esquerda do espectro político e busca, com esse rótulo, ficar um pouco mais à direita da versão revolucionária ou radical do socialismo. Alemanha, França e países escandinavos têm influentes partidos socialistas que, por diversas vezes, assumiram e ainda assumem seus governos.
Esses partidos bebem das fontes marxistas e de outras tradições socialistas em políticas que buscam reduzir as desigualdades, aumentar os serviços públicos fornecidos pelo Estado e regular o capital por meio de leis, mas respeitando o regime democrático. Além disso, as teorias de Marx tiveram uma influência poderosa sobre muitos partidos trabalhistas e movimentos sindicais, mesmo que eles nem sempre compartilhassem de sua visão de uma revolução global dos trabalhadores. Marx argumentava que o sistema econômico sem regulação estava condenado a períodos de crises recorrentes (ou recessões, para usar um termo atual).
Mas diferentemente do que ele previa, o sistema capitalista não se autodestruiu. Aconteceu o contrário: com a queda do comunismo, o capitalismo não apenas se fortaleceu, como também se espalhou pelo mundo. Embora o colapso da União Soviética no início dos anos 1990 tenha sido grande golpe para a viabilidade da teoria marxista, ela continua alimentando debates – principalmente num contexto de crises financeiras globais e insegurança no mercado de trabalho.
De um lado, muitos associam a doutrina marxista e os governos comunistas ao autoritarismo, violência política e totalitarismo, quando Estados de partido único e ditadores proclamaram o marxismo como sua filosofia norteadora. De outro, parte dos marxistas argumenta que essas experiências comunistas são distorções das ideias de Marx, e que a União Soviética era na verdade apenas uma forma de capitalismo de Estado, no qual os donos das fábricas foram substituídos por burocratas do governo. Esse grupo sustenta ainda que o capitalismo também tem seu lado violento e opressivo a trabalhadores e cidadãos – inclusive por ter alimentado, nos séculos passados, o colonialismo e a exploração.
Se você talvez esteja se perguntando: e como o Brasil fica nessa história? Quem ainda pode, de fato, ser chamado de comunista? No Brasil, o comunismo ganhou forma em 1922, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro, o PCB ou "Partidão", composto por trabalhadores e intelectuais como Caio Prado Jr.
e Graciliano Ramos. A sigla fortalecia movimentos sindicais e camponeses e disseminava teses marxistas à classe trabalhadora. O PCB cresceria até 1935, ano em que foi criada a Aliança Nacional Libertadora, liderada pelo líder comunista Luís Carlos Prestes, que tentou derrubar o governo de Getúlio Vargas, no poder desde o golpe de Estado de 1930.
A intenção da Aliança era fazer levantes e greves no país inteiro, mas a classe operária não aderiu à revolução. O movimento acabou sendo duramente reprimido, e a ofensiva comunista serviria como um dos pretextos para um novo golpe de Estado, em 1937. O “perigo vermelho”, entre aspas, também serviu de justificativa para o golpe militar de 1964.
Para o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, o anticomunismo carrega forte semelhança com o antipetismo atual. "Não há dúvida que a candidatura Bolsonaro se amparou na tradição anticomunista, que foi reapropriada e adaptada aos novos tempos, o que contribuiu de maneira central para a construção do antipetismo. " E o que aconteceu com os comunistas no Brasil?
Bem, para além dos golpes, ao longo dos anos o Partido Comunista teria uma trajetória de disputas internas e afastamento do stalinismo. A primeira grande dissidência se dá em 1962, com a fundação do PC do B, que existe até hoje e se baseia idelogicamente no marxismo-leninismo. Nos anos 90, com o fim da União Soviética, o Partido Comunista sofreria outra grande divisão.
Dela, saiu o Partido Popular Socialista, o PPS, que recentemente mudou o nome, virando o Cidadania. Hoje, o grupo que, após tantos rachas, herdou a sigla PCB, não conseguiu eleger nenhum candidato na eleição de 2020. Seus membros se afirmam comunistas que lutam "pela transformação radical da sociedade atual, visando a substituição do sistema capitalista pelo socialismo, na perspectiva da construção da sociedade comunista".
Segundo a socióloga Sabrina Fernandes, o PCB faz parte do que ela chama de esquerda radical, formada por outros movimentos e siglas como MTST, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto; o PCO, Partido da Causa Operária); o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), e hoje o mais influente deles, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), formado por petistas que se recusaram a apoiar a reforma da Previdência no primeiro governo Lula, em 2003. Em seu livro "Sintomas Mórbidos - A Encruzilhada da Esquerda Brasileira", a socióloga escreve que "os representantes parlamentares do PSOL normalmente não falam tão abertamente de socialismo". Mas suas posições no Congresso têm sido "consistentes com a premissa socialista de construir o poder popular, defender os direitos das minorias, promover políticas anticapitalistas, empoderar dissidentes e mobilizar a esquerda.
" Você deve estar se perguntando: mas e o PT? A Sabrina Fernandes aponta que o Partido dos Trabalhadores, em si, nunca se propôs a ser um partido comunista. "O PT é um partido de esquerda moderada que se adaptou muito bem à ordem no poder, e cujo modo de governar, que é marcado por uma política que a gente chama de lulista, foi muito mais focado em promover crescimento capitalista aliado a políticas de inclusão social do que fazer, no mínimo, algumas reformas importantes, como a reforma agrária.
" Por que então ainda se fala tanto de comunistas em 2022, mais de 100 anos depois da Revolução Russa e mais de 30 anos depois do fim da União Soviética? Os motivos são muitos, mas vale a pena ressaltar dois. Primeiro, por causa dos debates que essas ideologias ainda permeiam, como privatizar ou não determinados setores da economia e proteger ou não direitos trabalhistas.
Segundo, porque parte da sociedade enxerga o comunismo como ameaça – uma espécie de "inimigo imaginário". É nesse contexto que o significado da palavra "comunista" se afastou da definição original e se tornou ferramenta para atacar adversários políticos. Algo parecido ao que acontece com os termos fascista e nazista atualmente.
"Então, em termos discursivos, você coloca em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral. A disputa aqui é basicamente moral. Você no fundo quer.
. . o processo da estigmatização em geral, o da demonização, o da satanização.
O outro precisa ser a encarnação do mal Mas esse tipo de discurso anticomunista não é novo no país – a lembrar do golpe de 1964 "O comunismo sempre foi muito utilizado no Brasil muito por essa ideia dos medos. Quem são os comunistas? São os radicais, são os violentos, são os agressivos que querem impor outra forma de vida e que vão contra a família tradicional.
Os comunistas são aqueles que provocam a bagunça, a desordem, a instabilidade, contra essa ideia conservadora da estabilidade, da hierarquia, da disciplina, da ordem. Que têm que ser ser combatido. " Por hoje eu fico por aqui.
Mas em breve volto com um novo vídeo. Obrigado pela audiência e até a próxima.