Os irmãos e irmãs, todos os anos, tradicionalmente, no segundo domingo da Quaresma, nos apresentam o episódio da Transfiguração do Senhor. Este ano, lemos segundo São Lucas, que tem as suas particularidades. O texto do lecionário começa dizendo: "Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago e subiu à montanha para rezar.
" A primeira coisa que é característica de São Lucas é que eles subiram ao monte para rezar. Essa é a finalidade da subida ao monte. Por que Jesus chama apenas Pedro e João?
Parece uma alusão àquela cena do Antigo Testamento, em que Moisés sobe à montanha com Arão, Nadabe e Abiú, e os três ficam olhando Moisés de longe, subir um pouco mais alto. Ou seja, de algum modo, o Evangelista está comparando estes três com os três, sendo que Pedro é o sumo sacerdote (Arão) e os demais como sacerdotes no mesmo ministério. Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência.
O que significa isso? São Lucas diz que sua roupa ficou muito branca e brilhante. São Marcos, com um grego um pouco mais rudimentar, diz que a roupa ficou tão branca como nenhuma lavadeira na terra conseguiria deixar.
Aqui, São Lucas diz que o rosto mudou de aparência e a roupa ficou muito branca e brilhante. É como se Jesus, depois da Ressurreição, tal qual glorioso, aparecesse ali diante dos discípulos com todo seu esplendor, aparência mudada. Nós vemos, por exemplo, em São Lucas, que os discípulos de Emaús não o reconhecem.
É mais ou menos o efeito que dá, por exemplo, quando uma pessoa está muito bem maquiada. Eu me lembro, por exemplo, quando eu era muito jovem, tinha uma amiga minha que era meio, digamos assim, fraca de feição, e aí fui a um casamento. Ela fez uma maquiagem muito bem feita e falou comigo.
Quando eu cheguei, eu nem reconheci; reconheci pela voz. Ou seja, ele mudou de aparência; ele é o mesmo, mas a aparência já não tem mais as marcas do tempo, e, ao mesmo tempo, as vestes brilham com um esplendor muito grande. É interessante porque, de um lado, quando Moisés sobe ao monte e recebe de Deus os mandamentos, ele volta com a face brilhante, a ponto de ter que cobri-la com um véu, porque ninguém podia olhar para a sua face.
No caso de Jesus, como ele é maior que Moisés, não é apenas a face que brilha, mas as vestes brilham também. Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. Como é que os discípulos sabiam que era Moisés e Elias?
Nós veremos, depois, que Pedro tem clara impressão de que são os dois. Nós não sabemos, né? Sabemos que, na lógica da narração, quando chegam Moisés e Elias, Jesus fala: "E aí, Moisés?
E aí, Elias? " Pode ser que, na lógica do escritor, seja isso, mas, no fundo, o que nós vemos aqui é uma intenção teológica. Por que Moisés e Elias?
De um lado, porque ambos realizaram uma espécie de Êxodo, e veremos um pouco depois o quanto isso é interessante nesse relato. Ou seja, Moisés tirou o povo de Israel do Egito e o acompanhou até a entrada da terra prometida. Elias, fugindo de Jezabel, passou 40 dias no deserto, numa evocação a uma espécie de Êxodo pessoal que o profeta faz, encontrando-se com Deus no alto da montanha.
Portanto, têm experiências similares. Eles apareceram revestidos de glória; portanto, a glória deles é externa, enquanto a de Jesus não é apenas externa, mas também interna, e conversavam sobre o seu Êxodo. É a palavra que está aqui; eles conversam sobre a sua morte e sobre a saída que ele iria sofrer em Jerusalém.
O Êxodo é a palavra grega que aqui aparece, sendo uma saída. Todo o meio da Páscoa do Senhor, da sua ressurreição, da sua ascensão, da sua saída do sepulcro, é considerado um Êxodo. Está aqui conectado com os eventos pascais da história do povo de Israel.
Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Por que a Transfiguração acontece durante a noite? Pode haver um paralelo com a oração que Jesus faz antes da sua paixão, no orto das Oliveiras.
Pode ser que o relato seja no fim da tarde, uma vez terminada a atividade de Jesus, que sobe à montanha e, como era de seu costume, entra noite adentro em oração. Pode ser que, ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele. E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: "Mestre, é bom estarmos aqui.
Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. " Pedro não sabia o que estava dizendo. O que São Lucas nos quer dizer aqui é que ele tinha a impressão de que, de um lado, Moisés e Elias estavam se afastando, e, de outro, Pedro estava dizendo: "Mestre, é bom ficarmos aqui.
Façamos três tendas. " Ou seja, os três são iguais; os três estão na mesma perspectiva. Então, São Lucas diz que Pedro não sabia o que estava dizendo.
Alguns enxergam aqui uma referência à festa dos Tabernáculos, mas talvez não seja exatamente isso. Pedro não sabia o que estava dizendo. Ele ainda estava falando quando apareceu uma nuvem e os cobriu com sua sombra.
Os discípulos ficaram com medo ao entrarem na nuvem. Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: "Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz.
" Quando nós lemos no Velho Testamento que o povo de Israel, além de por 40 anos em seu Êxodo, viver em tendas, viver em cabanas, deu a sua arca, também permaneceram em cabanas durante muito mais tempo, até os dias do Rei Salomão, a arca de Deus estava numa tenda. Ou seja, Jesus é o novo templo de Deus; Jesus é a Tenda de Deus. Assim como, quando Moisés entra na tenda, a glória de Deus, manifestada na nuvem, enchia a Tenda da Divina Presença, e Moisés falava com.
Deus do mesmo modo, Jesus é a Tenda de Deus; Ele é o lugar do encontro entre Deus e os homens. Por isso, não tem sentido fazer três tendas, porque os três não são iguais e porque a tenda já está feita. É Cristo.
É interessante porque, no relato de São Lucas da Anunciação, o Anjo diz a Maria: "O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. " Aqui nós vemos exatamente uma construção. Uma construção idêntica: apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra.
Ou seja, Jesus é a Tenda de Deus. Jesus é o lugar, é o topos, é o lugar onde se manifesta a glória, a Shekinah de Deus. Então, sai a voz do Pai: "Este é o meu Filho, O Escolhido; escutai o que Ele diz.
" Este é o meu Filho, uma declaração comum aos três Evangelhos sinóticos. "Este é o meu Filho" é uma declaração do Pai semelhante à do batismo. O batismo de Jesus marca o início do seu ministério; a transfiguração de Jesus marca, como que, não apenas o meio, mas o período imediato que o prepara para a sua morte na cruz.
Portanto, nós temos, em ambos os episódios, o Pai declarando-o como Filho, para dizer: "Este que vai morrer na cruz, esse que vai sofrer tanto, é o meu Filho. Não duvidem dele; Ele é o meu Filho, é a minha imagem, é a minha reprodução perfeita, é a exata expressão do meu ser", como diz São Paulo. Este é o meu Filho, O Escolhido.
Aqui, possivelmente, São Lucas está citando Isaías 42, o cântico do Servo Sofredor, quando o profeta, da parte de Deus, diz acerca do Servo Sofredor: "Este é o meu eleito, é o meu escolhido. " Essa palavra aparece esta única vez no Novo Testamento: "Eclmen, O Escolhido, o eleito; escutai o que Ele diz. " No capítulo 18 do Deuteronômio, Deus havia dito, através de Moisés: "Virão um profeta maior do que eu; escutai-o.
" Vocês devem escutar. Portanto, mais uma vez, nós estamos aqui diante de uma confirmação de que Jesus é o escarnado, ungido, mais ou menos como Davi foi o escolhido de Deus no Velho Testamento, ungido, mas, ao mesmo tempo, Ele é o profeta, aquele que carrega um encargo da Palavra, aquele que traz a mensagem de Deus para os nossos dias. Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho, a imagem, portanto, de Moisés e Elias desvanecendo aos poucos, e Jesus fica sozinho.
Por quê? Porque Ele é a Palavra mesma de Deus, porque Ele é o centro da Revelação, Ele é o cume, Ele é o ápice. Nós leremos, no capítulo 24 de São Lucas, na cena dos discípulos de Emaús, Ele mesmo dizendo, a partir da Lei, dos Profetas e dos Salmos, que o Cristo deveria sofrer e depois ressuscitar dos mortos.
Ou seja, a Escritura, no Velho Testamento dos judeus, está falando sobre Ele, sobre o Messias. Ele é o centro. Por isso, que, no final do relato, Ele se encontra sozinho.
Os discípulos ficaram calados e, naqueles dias, não contaram a ninguém nada do que tinham visto. Os discípulos ficaram calados. No Evangelho de São Marcos, o evangelista diz que Jesus mandou eles ficarem calados.
Em São Marcos, é muito forte o tema do segredo messiânico; aqui o texto diz que os próprios discípulos ficaram calados e contaram apenas depois, depois da Ressurreição do Senhor. Possivelmente, é o que está nos dizendo São Lucas, aquilo que aconteceu no alto do monte. Ora, algumas lições que nós podemos tirar desse relato, a mais importante delas: "Este é o meu Filho, O Escolhido; escutai-o.
" No processo do nosso Êxodo, enquanto São Paulo diz na primeira carta aos Coríntios, no capítulo 15: "Nós andamos nessa tenda, nessa morada, nesse corpo. " Enquanto nós estamos aqui, vivendo nesse mundo, nós temos que escutar unicamente ao Filho, ao Escolhido de Deus. Nós temos que olhar para Cristo e entender que Ele é o nosso ponto de conversão, que os nossos corações devem convergir numa atenção verdadeiramente total a Ele.
Ou seja, muitas vezes, nós ouvimos as coisas: as pessoas, as circunstâncias, enquanto o Pai está dizendo para nós continuamente: "Não sejam como o povo de Israel que não escutava Moisés, que duvidava da sua palavra, que o tempo todo questionava, que o jogava contra a parede, que o confrontava. Não sejam filhos dóceis, obedientes, escutem o que o meu Filho diz. Ele é o profeta; Ele é aquele que carrega a Palavra.
Escutem, imitem o Filho, sejam uma reprodução da vida do Filho, sejam um reflexo da vida do Filho que compartilhou com vocês a sua própria vida. Escutai-o, escutai com do coração. " Ainda que seja necessário passar por Jerusalém, a cidade que mata os profetas, ainda que Ele passe pela morte, ainda que Ele entre na sepultura, na região dos mortos, ainda assim acontecerá um Êxodo.
Ele vai sair da sepultura vivo. A verdadeira identidade que Ele possui não é a identidade do desfigurado na paixão, mas do transfigurado na glória. Isso é quem Ele é.
Olhem para quem Ele é. A cruz é apenas uma parte, um estágio do caminho, da via, do processo do Êxodo, mas o fim, o objetivo, o ponto de chegada é a glória, é a manifestação de quem Ele é. Portanto, não desvaneçam.
Se vocês ficarem apegados apenas à Lei e aos profetas, a Moisés e a Elias, céus e terra passarão; tudo passa. A Lei e os profetas foram até João Batista, mas Ele é a Palavra permanente. Ele é o centro da Revelação e, no processo do Êxodo da conversão de vocês, vocês precisam se unir verdadeiramente a Ele.
Céus e terra passarão, mas as minhas palavras, mas o meu Filho, não passarão. Queridos, isso significa que nós precisamos, a partir do dia da Quaresma deste ano, olhar para Cristo de uma maneira mais intensa, depender mais d’Ele na prática, mergulhar na oração, mergulhar. Na palavra "se", no domingo passado, a igreja nos apresentou Jesus sendo tentado por Satanás no deserto; hoje ela nos apresenta Jesus em oração.
Se a igreja nos mostrava Jesus jejuando, hoje ela apresenta Jesus rezando. A oração, como prática quaresmal, consiste em escutarmos o Filho amado. Você tem escutado a Cristo, ou você tem apenas falado com Ele?
Você tem deixado a palavra de Cristo te transformar, ou você ansiosamente tem apenas jogado sobre Ele os seus problemas? Escute: deixa o Filho te mudar, deixa o Filho te guiar, deixa o Filho intervir na tua existência. E então você também será transformado em Filho, cada dia mais.
É claro que somos filhos de Deus pelo batismo, mas no processo da caminhada quaresmal, que se concluirá com a renovação do nosso batismo, nós queremos mais uma vez renovar a consciência da nossa filiação. Se no primeiro domingo da Quaresma a filiação estava só na questão do ataque do diabo, no segundo domingo da Quaresma a filiação se mostra no esplendor da sua glória. Você não é a somatória de todas as cruzes e marcas do tempo.
Você é Filho de Deus e, como Filho de Deus, exatamente como diz São Paulo na segunda leitura, você também será transformado, você também será transfigurado. São João diz: "Filhinhos, não se manifestou aquilo que seremos; quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é. " Você e eu ainda caminhamos sob a degradação do tempo, mas dentro de nós há uma nova identidade, e ela vai aparecer um dia.
Ela vai aparecer. Enquanto ela não aparece, nós permanecemos unidos a Cristo, escutando cada palavra que sai da sua boca. Que a nossa identidade de filhos possa cada vez mais reaffirmar-se e que nós, como escolhidos de Deus em Cristo, possamos viver intensamente da sua palavra.