Ah, meu bem, se eu te contar o que vivi, você vai entender porque essa dor aqui dentro nunca foi embora. Imagina uma criança de 12 anos, pele marcada de tanto se esconder embaixo da cama, coração que parecia uma espinha prestes a estourar de tanto segurar. Agora imagina essa criança sendo chamada de mocinha pelo próprio pai, mas não com carinho, não. Com aquele riso torto, aquele deboche que fere mais que surra. Vai lá, mocinha, bota o vestidinho que eu comprei", ele dizia. E atrás da porta já estavam os tios rindo, esperando para ver o show. Foi
nesse dia que eu descobri que meu pai não me odiava. Ele odiava quem eu era. E isso, meu bem, isso mata por dentro. Meu nome é Poliana, tenho 77 anos hoje e sou de Piedade, interior de São Paulo. Mas ninguém conhece a velha Poliana. Conhecem só a parte que sorri na padaria, que varre a calçada com a rádio ligada, que cuida das plantas como quem cuida do último fio de sanidade. Ninguém sabe da outra parte, a parte que carrega no corpo e na alma as lembranças daquele menino que nunca foi menino, que nasceu sentindo que
tinha nascido errado pro mundo, mas certo para si mesma. Só que o mundo, o mundo não perdoa quem nasce fora da linha. Minha mãe coitada, quando engravidou, jurava que vinha uma menina. Disse paraas vizinhas que sonhava com laço de fita, boneca de louça, nome doce como mel. Mas quando eu nasci, veio o homem. Veio um corpo que não era o que ela esperava. Só que o coração dela não quis saber de corpo. Ela me pegava no colo, botava lacinho, vestidinho, fazia trança no meu cabelinho ralo e me chamava de minha princesa, sempre escondido do meu
pai, claro. Ele quando via qualquer coisa diferente ficava daquele jeito, com os olhos vermelhos de raiva e o silêncio que fazia a casa tremer. O silêncio antes da tempestade. Minha mãe, ela era tudo para mim. Um tempo dóce entre os espinhos. Quando meu pai saía para trabalhar, era nosso momento. Ela me ensinava a andar com os joelhos juntinhos, me dava os colares que ela escondia no fundo da gaveta, fazia maquiagem com cotonete e dizia baixinho: "Você é a filha que eu pedi para Deus. Só nasceu disfarçada." E eu acreditava, porque ali com ela eu me
sentia inteira. Ela fazia as roupinhas com os retalhos que sobravam da costura para as vizinhas. Costurava como se tivesse bordando esperança. Me chamava de Lili, de bonequinha, me fazia dançar com ela na cozinha, mas era sempre as escondidas, sempre com medo, porque meu pai, meu pai tinha o olhar de quem esmagava com as palavras antes de bater. Quando ele chegava, eu tinha que arrancar tudo, botar o short largo, esconder o brilho do rosto. Uma vez ele chegou e me pegou ainda com um pouco de batom no canto da boca. Perguntou se eu tinha comido goiabada.
Eu tremi tanto que quase desmaiei. Garotão que é garotão não come doce cor de rosa. Ele riu. E foi aí que começou. Ele me chamava de garotão toda hora. Esse aqui vai ser macho igual o pai, dizia pros amigos, batendo nas minhas costas com aquela força que parecia castigo. Me dava bola de futebol. camiseta do time da cidade. Jurava que ia me levar para fazer coisa de homem quando eu crescesse. Eu sorria, mas por dentro eu gritava, porque eu não era aquilo, nunca fui. Eu não queria ser garotão. Eu queria ser igual a ela, igual
à mãe. Mas nunca pude dizer isso. Só sentia. E sentir já doía demais. Lembro de um dia específico. Eu devia ter uns 7 anos. estava na sala com um dos vestidinhos escondidos dançando ao som da vitrola baixinho. Era nossa música, minha e da mãe. E de repente a porta abriu. Não era ela, era ele, meu pai. O olhar dele congelou tudo, o corpo dele endureceu. Ele não gritou, só falou devagar com aquela voz que dava medo. Você tá brincando de que aí, hein? Virou menina agora? Eu não consegui responder, só chorei. E ele riu. Riu
como se eu fosse piada. E repetiu: "Meu garotão de vestido. Ah, que beleza! Depois desse dia, minha mãe ficou mais nervosa, mais aflita, escondia as coisas melhor, passava menos tempo comigo. Eu sentia que ela estava tentando me proteger, mas alguma coisa nela já não tava igual. começava a se perder nas conversas, esquecia o fogão ligado, chamava meu nome e depois perguntava quem eu era. E eu eu começava a perceber que ela estava sumindo, que aquela mulher que me protegia com os olhos já não lembrava nem do meu nome direito. Foi um dia desses, num fim
de tarde abafado, que tudo aconteceu. O pai chegou cansado, reclamando do serviço e viu a casa desarrumada. A mãe não tinha feito o jantar, estava sentada no chão com um prato vazio na mão, rindo sozinha. Ele começou a brigar, a gritar e ela ela se levantou como se tivesse despertado do nada. Pegou uma faca, uma das grandes, de cortar carne. Jogou, não sei se queria acertar, mas jogou. E depois jogou outra e outra. gritava palavras que não faziam sentido. Dizia que ele ia levar tudo embora, que ia pagar por roubar ela de mim. E eu,
escondido atrás da porta, vi meu mundo acabar. No dia seguinte, meu pai foi até a cidade, voltou com um homem de branco. A mãe não gritou, não brigou, só chorou, olhando para mim, como se quisesse pedir desculpa, mas sem saber porquê, levaram ela. Ela nunca mais voltou para casa e eu fiquei com ele. A mãe foi levada pro hospital e o pai olhou para mim com aquela cara de quem achava que agora a vida ia dar certo. Agora é só nós dois, moleque. Um homem e outro quase homem. E eu ali de bermuda rasgada, escondendo
a dor dentro da barriga, como quem guarda um passarinho doente dentro da gaveta. Só nós dois. Olha que sorte a minha, né? Ele começou a fazer questão de me transformar, não em filho, mas em projeto de macho. Me acordava antes do sol pensar em nascer. botava enchada na minha mão e me mandava pro pasto. Homem, aprende no braço. Eu só escutava e obedecia, porque se eu dissesse qualquer coisa, até mesmo um ai, virava sermão ou tapa e tapa de homem frustrado, meu bem, arde na alma. A casa ficou um deserto. Sem a mãe não tinha
mais cheiro de bolo, nem aquele carinho escondido, só barulho de copo sendo posto na mesa com raiva. E eu eu fazia o que podia para me esconder nos poucos cantos que restavam, mas nem sempre dava. Porque o pai, quando não estava ocupado me ensinando o que é ser homem, estava ocupado me lembrar do quanto eu era uma vergonha. Você vai virar um garanhão igual eu era na sua idade. Ele dizia isso, cuspindo pedaço de feijão, como se fosse elogio. Eu queria rir, mas não ria, porque rir ali era perigoso. Ele achava que homem não ria
à toa, homem não chora, homem não se encosta, homem não pinta unha. Homem na cabeça dele era esse bicho seco que bate cospe e acha que tá certo. E eu eu continuava sendo eu, do meu jeitinho escondida por dentro. À noite, quando ele dormia pesado, eu abria a caixinha onde a mãe tinha guardado um batonzinho rosa bem clarinho. Passava só um pouquinho, só para sentir que estava viva. Colocava o vestidinho azul, já meio apertado, mas ainda meu. Me olhava no espelho e pensava: "Esa sou eu, não o que ele quer." Mas claro, sorte pouca é
bobagem. Um dia ele chegou mais cedo da venda, tropeçando de tanto que bebeu. E eu tava no meu momento. Cabelo preso com elástico colorido, vestido torto, batom borrado. Me pegou em pé na frente do espelho, rindo sozinha, como quem se vê pela primeira vez. Ele não gritou? Não, dessa vez. Sabe o que ele fez? Sorriu. Ah, meu bem. Sorriu. Então você quer ser mulher, né? E foi embora. No dia seguinte, ele saiu cedo, voltou no fim da tarde com uma sacola de loja. Trouxe presente, disse. Achei que era armadilha e era. Dentro tinha duas saias,
uma blusinha com babado e uma calcinha de renda. Já que você quer ser mocinha, vai vestir. Agora eu congelei aqui mesmo na frente de todo mundo. Quando abri a porta do quarto, estavam lá os três irmãos dele, meus tios, homens que fediam a cerveja e riam feito porco no cio. Me olharam de cima a baixo, como se eu fosse uma piada pronta. Um deles até disse: "Ô prima, ficou uma graça, hein?" e gargalhou como se tivesse inventado o humor. Eu queria morrer, mas não morri, e isso hoje é o que mais me surpreende. Depois disso,
o pai virou um showman. Me levava vestido para todo canto da casa, não porque queria me aceitar, mas porque queria que eu sofresse. Me dava flor de presente no café da manhã, me chamava de poli, só para zombar. Me mandava rebolar quando varria a varanda. Era um espetáculo de horrores onde só ele ria. Mas à noite, a noite era outra coisa. Ele vinha com raiva, raiva dele, raiva da vida, raiva da mãe que tinha surtado e, claro, raiva de mim, porque no fundo ele via em mim tudo que ele não conseguia entender. E homem burro,
meu bem, quando não entende, destrói. Ele dizia que a culpa era minha, que a mãe tinha ficado louca porque eu era assim, que se eu tivesse sido um filho de verdade, ela ainda estaria ali, sã fazendo cuscus. e passando ferro na roupa dele. Ele gritava isso com o dedo na minha cara, com o bafo de cachaça me queimando os olhos. E eu eu só escutava a primeira vez que ele bateu com força de verdade, eu tinha 13 para aprender a não envergonhar essa casa. Ele disse isso, cuspindo cada sílaba e depois, depois vinham as outras
coisas, as que eu não posso falar aqui, as que todo mundo sabe, mas ninguém diz, as que dóem onde não se vê. A cada noite eu ficava menor por dentro. Fingir que dormia não bastava. Fingir que doía menos não resolvia. E a única coisa que me restava era esperar o dia em que isso tudo acabasse. E não era acabar bonito, não. Era acabar de vez, mas não acabou. Ele continuou e eu continuei. O mundo lá fora nem sabia que eu existia. Só sabiam que o filho do seu Amaro agora estava meio esquisito. A vizinha uma
vez comentou com minha tia: "Dizem que o menino gosta de usar batom." E minha tia respondeu: "É só fase. Daqui a pouco ele pega no tranco. Pegar no tranco?" Mal sabia ela que eu já tinha virado sucata por dentro. Mas o pai, ah, o pai foi longe demais e o coração dele uma noite cansou. Sabe o que mais me revolta? é que tinha dia que ele rezava antes de dormir. Ajoelhava ao lado da cama, fazia o sinal da cruz, pedia perdão por ter xingado alguém na feira e 5 minutos depois vinha pro meu quarto e
fazia o que fazia. Aí você me pergunta: "Mas ele não tinha medo de Deus?" Não, minha filha. Quem tem medo de Deus não olha pro próprio filho com o olhar que ele olhava para mim. A rotina era assim. De manhã eu no curral, de tarde arrancando mato, de noite, bom, de noite ele dizia que ia me ensinar a respeitar, como se eu fosse burra, como se eu tivesse pedido aula. E o respeito dele vinha com mão pesada, com palavras sujas, com aquele tom de nojo e desejo misturado que me dava ânsia. "Você me dá nojo",
ele dizia, mas não deixava de vir. Eu me perguntava todo dia se era castigo, se eu tinha feito algo em outra vida, se eu era mesmo aquilo tudo que ele falava. Aberração, vergonha, maldição disfarçada de gente. Ah, ele tinha um vocabulário criativo. Devia escrever livro de autoajuda pros demônios. E o pior, minha filha, é que ele tinha prazer em fingir que estava me ajudando. Um dia me sentou na mesa da cozinha, me deu um prato de arroz e disse: "Você tem que me agradecer. Podia ter te botado para fora, mas tô aqui cuidando de você,
te dando teto, comida, ensino. Ensino, ensino de que, criatura? Você acha que alguém aprende amor onde só tem medo? Aprende carinho, onde só tem tapa, empurrão, ameaça. Aprende identidade quando o espelho devolve um reflexo que você tem que esconder? Ele ria de mim. Chamava os vizinhos para contar piada. Dizia que eu tava florindo cedo. Um deles até perguntou se eu já menstruava. Sabe o que é isso? É ter a própria existência tratada como espetáculo de circo. E a plateia, claro, adorava, mas o palco da vergonha era só um dos lados. Porque à noite, ah, à
noite era outro show. Ele apagava as luzes da casa toda, andava descalço para não fazer barulho e entrava. Às vezes eu fingia que dormia, outras chorava antes para não chorar depois. E o que ele fazia? Não precisa dizer. Você sabe, você sente. Ele falava baixo. Fica quietinha. É para você aprender a ser mulher. como se ser mulher fosse isso, como se eu tivesse nascido para isso, como se ele fosse meu professor. Eu queria sumir, mas sumir mesmo, evaporar, porque sair dali não tinha como. Não tinha parente que prestasse, não tinha vizinha corajosa, não tinha ônibus
para fugir, nem coragem de abrir a boca, tinha só medo. E medo, minha filha? Medo é o melhor carcereiro que já existiu. Cheguei a cortar o cabelo bem curtinho para ver se ele perdia o interesse, mas aí ele começou a chamar de rapazinho bonito. Depois, quando tentei andar igual menino, com o corpo duro, ele falou que eu estava parecendo um de beira de estrada. O vocabulário dele era assim, ofensivo até quando achava que estava elogiando. Aos poucos, eu fui sumindo por dentro. O corpo tava ali capinando, servindo o almoço, ouvindo bronca por cortar o quiabo
errado. Mas a cabeça estava em outro planeta, um planeta onde mãe ainda me chamava de bonequinha, onde o pai não existia, onde eu podia ser eu sem medo de apanhar ou de virar piada. Teve um dia que ele chegou do bar fedendo mais do que o normal. O olhar dele estava diferente, mais escuro, mais sujo, e disse: "Hoje você vai me agradecer". Eu gelei literalmente, as mãos tremiam, o coração batia no pescoço. Eu sabia que vinha coisa ruim, mas o que ele fez naquela noite foi além, além do que qualquer palavra pode tentar descrever. Só
posso dizer que depois daquilo eu não era mais uma criança, eu era só caco. Passei dois dias sem falar, nem comer. Ele achou que era pirraça. Tá de frescura agora, mulher aguenta tudo. A frase saiu da boca dele como quem comenta o tempo. E eu só pensava: "Então é isso que é ser mulher? Um lixo que os outros usam? Um brinquedo sem voz, um corpo que ninguém respeita?" Comecei a pedir para morrer baixinho para não dar ideia para ele, porque se desce capaz de fazer com gosto. Às vezes eu pensava, se eu correr até o
matagau e me perder, talvez ninguém me ache mais. Mas ele sempre dizia: "Pode tentar fugir, te acho até no inferno". E eu acreditava, porque quando alguém rouba sua fé na humanidade, até o diabo parece mais confiável. Um dia minha barriga começou a doer. Dor fina, como pontada de faca por dentro. Eu achei que era verme, mas não era. Era o corpo dizendo: "Não aguento mais". E eu, burra, ainda pensava em pedir socorro. Socorro para quem, criatura? para aquele pai que te culpa até pela loucura da mãe. A mãe, coitada, internada num hospital sem janela, com
gente babando do lado, tomando remédio que apaga até pensamento, e eu ali tentando sobreviver ao mesmo homem que fez ela enlouquecer. Coincidência? Claro que não. Maldição, talvez. Mas justiça, justiça nunca entrou naquela casa. Acordei com silêncio e isso para mim era o pior sinal. Quando a casa estava quieta demais, era porque ele não tava. E se ele não tava, é porque tava por aí, fazendo o que homem mal resolvido faz, enchendo a cara, se metendo com gente da laia dele, falando mal de mim no bar da esquina, como se eu fosse piada de mesa de
bilhar. Ele saiu cedo naquele dia, pegou o chapéu, bateu a porta e só disse: "Volto quando quiser, se quiser". E eu respirei como quem ganha umas horas de trégoa, mas nem trégua vinha sem custo, porque quanto mais tempo ele passava longe, mais voltava com o demônio nos olhos. Fiquei o dia inteiro com o estômago embrulhado. Não comi, não sentei, só andava de um lado pro outro, feito bicho preso em gaiola. Quando a tarde começou a morrer, eu já sabia. A qualquer minuto ele ia aparecer, fedendo a pinga, com as palavras atravessadas na garganta e o
ódio acumulado. Então me tranquei no quarto, tranquei mesmo, rezei sem fé, segurei o travesseiro como se fosse um escudo e fiquei ali quieta, tentando desaparecer. O sol já tinha sumido quando ouvi o portão bater com força. O barulho dos passos, a chave jogada no chão, a risada falsa, tudo o sinal de que a guerra tinha voltado. Ele gritava meu nome, o nome que ele insistia em usar, aquele nome que doía. Pedro. Ó Pedro, cadê tu, moleque? Fingi que não ouvi, que tinha dormido, que não existia, mas ele insistia. Abre essa porta, seu Tá se escondendo
de quem te botou no mundo? Fiquei em silêncio, o coração batendo na garganta, as mãos suadas, segurando a tranca. Até que, Bang! Ele arrombou. A porta voou para dentro com tudo, me acertou na perna, eu caí para trás e ele ele entrou feito bicho. O cheiro de bebida dele veio antes, forte, ácido, um cheiro que misturava a cachaça com raiva. O olhar dele era um furacão e nas mãos ele segurava o cinto, não aquele cinto de fivela comum, aquele, o de couro grosso, o mesmo que ele pendurava na parede da cozinha, como quem pendura uma
ameaça. Tirou da calça com a calma de quem sabia o efeito que aquilo causava. Segurou bem firme com as duas mãos e disse: "Hoje tu vai me mostrar que aprendeu a ser mulherzinha direito". Eu balancei a cabeça, disse que não, murmurei que não queria e ele estalou o cinto no chão, um estalo que doeu mais que tapa, mais que grito. Veste o vestido, o azul, aquele que tua mãe costurou. Veste. Agora eu tremia. O corpo inteiro parecia feito de areia molhada. disse que não de novo. Aí ele bateu de novo com o cinto no chão
e dessa vez mais perto, tão perto que senti o ar cortar na minha bochecha. Ajoelhei devagar, tirei a camisa suada, a calça. Fiquei ali como vinha ao mundo, como nas noites em que ele vinha sem pedir. Peguei o vestido com a mão trêmula, vesti. O azul já estava desbotado, cheirava as guardado, mas para mim era como vestir a memória da minha mãe, a parte que ainda me dava um pouco de identidade. E ele? Ele ria. Rodopia aí, quero ver se tá bonitinha. Eu obedeci. Como sempre, dei uma volta, me sentia suja, ridícula, mas o medo,
o medo já mandava mais que qualquer orgulho. Isso. Agora sorri igual mocinha. Isso assim mesmo, igualzinha a tua mãe, até o jeitinho safado de andar. Foi aí que ele me empurrou com uma força que nem parecia dele. Voei para trás. Cai em cima da cama. E o que aconteceu ali, meu bem? Bom, você já sabe, não dá para escrever com todas as letras, mas o cheiro da cachaça, a respiração pesada, o peso em cima do meu corpo, o grito que não saiu da minha boca, a dor que rasgou sem pedir licença, e o vestido azul.
Ah, o vestido ficou sujo, marcado. Ele terminou, se ajeitou na cama e deitou como se nada tivesse acontecido, como se tivesse só tomado um banho. E eu fiquei ali com o corpo do lugar que não devia doer, com o sangue manchando o colchão, com o travesseiro molhado de lágrima e com o silêncio gritando dentro da minha cabeça. Eu queria sumir, me apagar da história. ser outra pessoa, mas tudo que eu podia fazer era ficar ali vazia. A única coisa que eu ainda sentia era o vestido grudado no corpo, feito segundo a pele, segunda pele de
vergonha. E ali naquele quarto, naquela noite, nasceu a Poliana, que não ia mais pedir desculpa por existir. Mas isso, meu bem, isso ainda ia demorar, porque o inferno ainda tinha mais capítulos para me mostrar. Acordei com o lençol encharcado. A primeira sensação foi que tinha feito xixi na cama, mas não era suor do tipo que escorre do couro cabeludo até o calcanhar, sem dar trégua. A camiseta colada no peito, os cabelos grudentos, o travesseiro tão molhado que dava para torcer. Tentei me mexer, mas o corpo não respondia. A cabeça pesava tanto que parecia que o
mundo inteiro tinha desabado em cima de mim. A dor vinha de todos os lados, das pernas, da barriga, da parte que ninguém fala. E não era só dor física, era como se tudo estivesse avisando que alguma coisa dentro de mim tinha quebrado e não tinha conserto. Tentei virar de lado e o corpo gemeu sozinho. Nem voz eu tinha mais e se tivesse, também não tinha para quem chamar. Fiquei ali um tempo, sei lá quanto, horas, um dia inteiro. O tempo perde a conta quando o corpo vira prisão. Naquele meio delírio lembrei da minha mãe. Não
da última vez que vi ela gritando, jogando faca e sendo levada como se fosse um bicho selvagem. Lembrei dela de antes, das vezes que eu ficava doente e ela preparava um chá fedido que curava qualquer coisa. Das vezes que ela passava a mão na minha testa e dizia: "Se piorar, tem aqueles remédios da caixinha. A caixinha! Meu Deus! A caixinha! Com o esforço de quem carrega tonel nas costas, me arrastei até o canto do quarto. Cada movimento era uma pancada interna. Senti algo rasgar por dentro. O suor escorria pelos olhos como se fosse lágrima. Quando
cheguei na cômoda, quase desmaiei. Abri com a mão trêmula e lá estava ela, a velha latinha azul da manteiga com as bordas enferrujadas. Meu relicário de salvação. Dentro tudo ainda estava como ela deixou. Um vidro pequeno com comprimidos meio vencidos, um potinho com uma pasta branca, uns pacotinhos de papel pardo com letras tortas. para febre, para dor, só em caso urgente. Peguei tudo, joguei dois comprimidos goela abaixo, sem nem olhar qual era. Se me matasse, era lucro. Se curasse, milagre. Voltei pra cama. O colchão estava molhado, fedendo, mas era o único canto que ainda lembrava
algum abrigo. Me enrosquei ali e esperei os remédios fazerem efeito. Esperei Deus fazer alguma coisa. Esperei tudo e nada. Não sei quanto tempo depois foi, mas ouvi a voz dele, a mesma, firme, grossa, azeda. Pedro, gelei. Pedro, seu moleque preguiçoso, vai deixar eu fazer tudo sozinho. Agora é passos pesados subindo as escadas. Eu queria sumir, mergulhar no chão, me transformar em qualquer coisa menos o que eu era. A porta abriu com força. Ele entrou com o cheiro de quem já tinha tomado três doses de cachaça antes do café da manhã. Parou na beira da cama,
me olhou de cima. Que merda é essa? Eu não respondi, não conseguia. Só gemi. Tá se fazendo de doente agora. É, tá com frescura? Treme mais que vara verde. Levanta, vamos, tem coisa para fazer na roça. Mas quando chegou mais perto, ele sentiu. O cheiro do meu suor era de febre, daquela que arde de dentro para fora, que frita a cabeça. Ele me olhou de novo, fez um som de desprezo com a boca. Vai ficar aí então, mas amanhã eu quero ver tu andando. Bateu a porta e desceu sem copo d'água, sem uma toalha, sem
um melhora logo. Fiquei ali morrendo devagar. A febre não dava trégua, as roupas grudadas no corpo como segunda pele. E a barriga, meu Deus, a barriga inchada, dura, dolorida. Comecei a sentir aquela urgência que a gente conhece bem, mas não tinha como. Sentava no vaso e nada, só suor, só dor, só vontade de gritar. A cada tentativa parecia que iam arrancar meu intestino com garra. Comecei a chorar baixinho para não dar o gosto para ele de ouvir, mas chorava porque era o único alívio que ainda me restava. Lembrei da caixinha. Me arrastei de novo. Peguei
uma das pomadas, nem sabia para que era, mas era aquilo ou continuar apodrecendo. Apliquei com dedos tremendo, fechei os olhos e rezei. Se tiver alguém ouvindo, faz isso passar. Se não for para me curar, então me leva, mas me tira dessa. Voltei pra cama. mais mole do que antes, o corpo um trapo, a mente um caco. Deitei de lado, olhei pro teto e pedi para morrer. Não como quem faz drama, mas como quem já entendeu que viver daquele jeito era só mais uma forma de morrer. Lenta, silenciosa, sem enterro. Senti saudade da minha mãe, não
só dela como pessoa, mas do colo, da voz, da segurança que ela me dava, mesmo que escondida. Com ela eu era filha, com ele eu era só um erro. Ali, naquela cama molhada de febre e desespero, jurei que nunca ia perdoar aquele homem. Nunca. E se algum dia eu escapasse? Ah, se eu escapasse, eu ia cuspir na cova dele, mas isso ainda era sonho. Por enquanto, tudo que eu tinha era um corpo doente, uma alma em frangalhos e um pai no andar de baixo esperando eu sarar para continuar o que ele começou. Depois de três
dias com febre alta, suor escorrendo até pelo pensamento e uma dieta equilibrada de lágrima com medo, acordei com menos calor. Quer dizer, o calor do corpo, porque o do inferno particular seguia firme. Me mexi devagar, como quem testa o próprio esqueleto, esperando que alguma parte gritasse de volta. Mas o grito foi menor, só um sussurro. Parecia que pela primeira vez em dias o remédio da minha mãe resolveu me deixar viver mais um pouco. Coisa engraçada. Quando o corpo para de doer tanto, a cabeça volta a doer em dobro. Volta o pensamento, a memória, o gosto
amargo da noite passada, da anterior, da outra, da vida inteira. Me sentei na beirada da cama, com os pés no chão gelado e a alma sambando entre levantar ou me fingir de morta. Mas nem fingir direito dava mais certo. Eu já era quase um fantasma naquela casa. Desci as escadas devagar, achando que talvez ele não tivesse notado minha ausência nos últimos dias. Engano meu. Ele estava sentado na cozinha coçando o bumbigo com a camisa aberta e o prato de feijão do lado. Olhou para mim como quem vê uma barata andar com as próprias pernas depois
de três dias virada de costas. Olha só. A princesinha ressuscitou, sorriu com aquele canto de boca que mais parecia ferida. A doença venceu, hein? Nem febre quis te carregar. Eu não respondi, nenhum pio, porque ali cada palavra podia ser usada contra mim. E não num tribunal, mas num porão emocional, onde ele era juiz, carrasco e plateia. Fui até o canto da pia, peguei um copo d'água. O estômago ainda aparecia em greve, mas pelo menos eu já não me tremia feito vara seca. "Vai trabalhar hoje ou vai desmaiar no meio do milharal?", ele falou, sem nem
olhar na minha cara. Respirei fundo, não por medo, mas para não explodir na hora. Mas não adiantou. "Você acha bonito isso tudo, né?", Soltei. A voz saiu meio trêmula, mas foi. Ele parou, me encarou com aquela cara de riso torto, tipo, olha quem resolveu abrir a boca. Bonito o quê? Te sustentar? Te criar mesmo sendo esse erro ambulante que tu virou? Foi ali que o sangue subiu. A cabeça ficou quente de novo, mas dessa vez não era febre. Eu te odeio? Eu falei simples, reto. Você acha que é pai? Você é um monstro e eu
vou embora. Vou sair daqui. O prato que ele tava lavando caiu na pia. Não que ele lavasse nada, mas fazia pose de ajuda em casa quando queria fingir que era gente. Vai embora para onde, moleque? Hein? Vai viver do quê? Fazer o que da vida? Você acha que o mundo lá fora é desfile de moda para bicho esquisito igual você? Fiquei calado. Só olhava, mas ele continuou. Você acha que alguém lá fora vai te aceitar, Pedro? Vai mesmo? Você acha que as pessoas vão te olhar com carinho, com respeito? Você não é mulher, nunca vai
ser, não é homem também? É o que então? Aberração, confusão, pedaço de gente que nasceu errado? Doía e ele sabia, sabia direitinho onde apertar. Lá fora não vão te dar comida, roupa e cama. vão te dar pedrada, cuspe e desprezo. Você não é especial, não. Aqui ainda é o melhor lugar para você. Aqui você é meu. Aqui você tem teto. Lá fora, lá fora vão te fazer desejar voltar para cá engatinhando. A vontade era de gritar, de xingar, de quebrar tudo, mas só consegui dizer: "Se isso aqui é o melhor, eu prefiro morrer." Ele riu.
Um riso seco, cruel. Você acha que é o quê? Uma princesa triste num castelo de horror. Você é só um erro de fábrica, Pedro, e eu tô tentando consertar desde que você nasceu. Não me chama de Pedro. É o nome que tua mãe escolheu. A minha mãe não teria deixado você fazer o que faz. A tua mãe enlouqueceu por tua causa. Te defendia demais e olha no que deu. Tá internada comendo gelatina em bandeja de plástico. Eu ainda tô aqui cuidando de você. Isso é mais do que você merece. O silêncio que veio depois foi
o pior, porque aí eu percebi, ele acreditava em cada palavra, achava mesmo que tava certo, que tava me salvando. Fui saindo. Ele falou por último, como sempre, vai trabalhar e se tentar sair dessa casa, eu te encontro. Te trago de volta pelos cabelos, se for preciso. O mundo não quer você, mas eu eu te mantenho aqui porque ninguém mais quer carregar esse lixo. Naquele dia fui pro campo sem enchada, sem boné, sem nada, só com o corpo e o peso do que ouvi. Cavei com a mão, rasguei a pele, porque era isso ou rasgar por
dentro. E eu já tava cheia de ferida interna. O mundo pode até não querer gente como eu, mas ele também não merecia me ter inteira. Um dia ele ia ter que me engolir do jeito que eu era. E o velho, um dia ele ia engasgar, tava quente naquele dia, um calor que grudava na pele e fazia até o vento parecer cansado. Eu estava em cima da cama, suada, o corpo doendo da lida e daquilo que já era rotina depois do anoitecer. Tentava cochilar, nem que fosse por meia hora, porque naquela casa até dormir virava esforço.
A casa tava num silêncio estranho naquele fim de tarde. Sabe aquele tipo de silêncio que a gente já sente o cheiro da tragédia antes dela bater a porta? Pois é, eu sentia que alguma coisa ruim vinha vindo, mesmo sem ouvir nada. O corpo da gente aprende a prever. E veio veio no passo arrastado dele com o rangido da porta da frente abrindo e a voz grossa dele chamando. Pedro, vem cá, já doía no nome. Me escondi no quarto, mas nem deu tempo de pensar muito. Ele subiu com aquele amigo nojento dele, um homem que já
me olhava desde sempre, com um tipo de sorriso que dava ânsia. E quando eu vi os dois juntos ali no corredor, eu soube. Não ia ser só mais uma noite ruim, ia ser a pior. Hoje tem visita, ele disse, empurrando a porta do meu quarto. O amigo dele entrou rindo como se estivesse entrando num boteco. Vamos brincar um pouco. Na mão dele, uma sacola de plástico com as roupas que ele tinha comprado para mim. Vestidinho florido, calcinha rendada, uma blusinha apertada que ele achava engraçada. "Veste agora", ele mandou. Neguei com o corpo todo. Fiz que
não com a cabeça. Tentei recuar, ir pro canto. Eu disse para vestir. Ele repetiu agora com os olhos cheios de raiva. "Você quer ser mulher?" "Não quer?" "Então começa por aqui." Corri. Foi instinto. Nem pensei. Tentei sair correndo pelo corredor, fugir por onde desce, pular a janela, me jogar no mato, qualquer coisa era melhor que aquilo. Mas o amigo dele foi mais rápido, me agarrou pelos cabelos, puxou com tanta força que até o pescoço doeu. Segura ele o velho disse. Deixa que eu cuido do resto e ele cuidou. Cuidou como só um monstro sabe cuidar.
Ali naquela hora, naquele chão sujo do meu próprio quarto, ele fez o de sempre. Só que pior, porque agora tinha plateia, tinha testemunha, tinha riso de fundo, tinha aplauso. Não dá para escrever aqui o que ele fez, mas você sente, você sabe aquelas coisas que ardem mesmo depois que o corpo já não reage mais, que ficam grudadas na pele como marca de ferro quente. Quando acabou, eu tava mole, vazia, mas não acabou. O amigo largou meu cabelo. Eu despenquei no chão, mas ele ele ainda queria mais. Me bateu, não com tapa de raiva, com soco
de posse, com grito de Eu sou o homem dessa casa, com discurso de macho doente. Você vai obedecer, sim, senhor. Mulher que é mulher faz o que o homem manda. Mesmo que seja aí a pior coisa do mundo, tem que abaixar a cabeça e aceitar. Cada palavra era uma pancada. Você quer ser mulher? Então aprende, aprende que mulher não tem querer, tem que calar e aceitar. Eu tentava respirar, mas o peito doía. A boca não conseguia formar palavra nenhuma, nem grito saía. Você só vai aprender no castigo? Ele dizia enquanto chutava minha perna. Vai aprender
que é minha, que aqui eu mando, que fora daqui ninguém vai querer olhar pra tua cara. Lá fora você vai ser lixo. Aqui você ainda é minha. Depois disso, largou o cinto no chão, cuspiu do lado da minha cabeça e saiu com o outro, rindo, como se tivessem acabado de vencer uma aposta. A porta bateu e ficou só no chão, molhado de dor, silencioso de pavor. Cada parte do meu corpo gritava e a cabeça, a cabeça só pensava uma coisa: ou eu saio daqui ou eu morro aqui, porque aquilo ali já não era casa, era
cova aberta. E se eu não me arrastasse para fora, ia virar só mais um pedaço de nada esquecido entre a cozinha e o pasto. Nem sabia para onde ir, nem sabia quem era lá fora. Mas dentro daquele inferno eu já não era ninguém. E até o nada prefere a liberdade do que seguir vivo, onde só se morre todo dia. Acho que naquele dia até os anjos fizeram silêncio. O velho saiu para trabalhar, igual sempre, sem dizer bom dia, sem olhar para mim, sem imaginar que eu já estava olhando pra porta com outros olhos. Olhos de
quem contou todas as rotas de fuga daquele lugar, mais vezes do que rezou. Esperei ele dobrar a esquina, o passo arrastado indo sumindo no barulho da rua. Fui até o quarto, coração explodindo no peito. Abri o fundo do armário, lá onde minha mãe escondia as poucas coisas dela e as minhas roupas que ele nunca encontrou porque ela guardava bem escondido, enrolado em pano velho no meio das colchas. Peguei o vestido azul claro, que era meu favorito, dois outros com cheiro de naftalina. Uma calcinha que ainda me servia e uma camiseta dele, velha, mas que virava
qualquer coisa. Enfiei tudo num pano e amarrei. Fui até a cozinha, peguei o resto de farinha do pote, metade de uma rapadura guardada num saquinho, um pedaço de pão embolorado, que cortei o mofo fora e a última banana da fruteira. Aquilo tinha que me sustentar até Deus resolver me mostrar um caminho. Na caixinha da minha mãe, peguei três comprimidos pequenos, azuis, redondos, que ela dizia que eram de apagar pesadelo. Amassei com a colher, fiz virar pó e guardei dentro de um pedaço de papel dobrado. A garrafa de bebida do meu pai tava lá, mesmo canto
de sempre. Abri, joguei o pó dentro, sacudi com calma. Rezei sem fé, só no instinto. Apaga ele, Deus, só hoje. Só essa vez. Fechei tudo, escondi minha trouxinha debaixo da cama e fiquei esperando. As horas passaram devagar, arrastando os minutos, como quem arrasta a corrente. Eu suava mesmo parado. O medo dava nó nas tripas, mas o plano era simples. Ele chegava, bebia, apagava e eu fugia. E se não apagasse? Ah, meu bem. Se não apagasse, aí o mundo ia conhecer o grito que eu guardei desde criança. Ouvi o portão bater já no começo da noite.
A bota dele fazendo eco na calçada, a chave girando, a respiração pesada. Ele entrou cuspindo raiva como sempre. Essa casa tá fedendo, Pedro. Nem para limpar presta mais. Fiquei quieta, fingindo que costurava. Ele pegou a garrafa, nem me olhou. Bebeu direto no bico como um porco com sede. Hoje eu tô com a cabeça quente. Se me irritar, tu já sabe. Eu sabia. E rezei para que os comprimidos fizessem efeito rápido. Subiu pro quarto, jogou a bota longe, deitou na cama resmungando e então o silêncio. Um silêncio que doeu de tão abençoado. Esperei 30 minutos, 40.
Fui até o quarto dele devagar, a porta meio aberta, a luz apagada, o ronco fundo, um ronco de quem não acorda nem com trovão. Voltei pro meu quarto, peguei minha trouxinha, não chorei nem de medo, nem de alívio, só respirei profundo pela primeira vez. Destranquei a porta da frente com a delicadeza de quem segura uma bomba. Empurrei devagar, o portão rangeu. Maldito! Esperei nenhum barulho. E então saí sem sapato, sem rumo, só com o corpo doído e a alma em pedaços. Corri pelo mato, atrás da cerca, pela parte do terreno que ele dizia para eu
nunca ir. O céu estava sem lua, só umas estrelas fracas. Cada passo machucava o pé. Mas eu ia, tinha que ir, porque ali, ali eu já tava morta. A vegetação me cortava, o mato arranhava as pernas, os espinhos puxavam meu vestido e eu ria, ria por dentro, porque até os matos me machucando doíam menos que ficar naquela casa. Corri até os pulmões pedirem trégua. A noite foi caindo de vez. A estrada virou barro, a estrada virou nada. Virei bicho, só instinto. Só fuga. Achei um riacho pequeno, sujo, mais água. Lavei as mãos, lavei o rosto,
lavei o medo. Bebi um gole, mesmo com gosto estranho. Era o que tinha. Encontrei um tronco caído e ali me encostei. As costas doíam, as pernas tremiam. Abracei a trouxinha como quem abraça uma criança. Fechei os olhos, torcendo para apagar por algumas horas. O que me acordou não foi pesadelo, foi o esturro seco de onça, forte, perto. O coração quase me deixou. Fiquei imóvel, tentando respirar sem som. Cada segundo durava uma eternidade. O mato parou. O bicho silenciou, mas eu sabia. Ele estava ali sentindo meu cheiro, me farejando. Me levantei devagar, fui andando com passos
curtos, cuidado dobrado. O medo da cobra era real. mas não maior que o medo de ser achada pelo velho. Andei até achar uma pedra grande, quente ainda do sol que tinha ido embora. Me encostei ali, sentei com o coração pulando no pescoço, fiquei olhando pro escuro, esperando a noite passar. Ali encolhida, com frio, fome, medo e dor. Eu tava mais viva do que nunca, porque pela primeira vez eu era dona dos meus próprios passos. Mesmo que o caminho fosse cheio de bicho, acordei com a cara grudada na pedra. A primeira coisa que senti foi dor
no pescoço. A segunda, o cheiro da minha própria roupa misturada com mato molhado. Nada romântico, nada de Acordei no meio da natureza com passarinhos cantando. Se tinha bicho cantando, devia ser urubu. Demorei uns minutos para entender onde eu tava. O corpo ainda em alerta, esperando o barulho da porta abrindo ou o grito do velho mandando levantar, mas nada, só mato, barulho de água correndo e uns insetos desafinados berrando no ouvido. Levantei devagar, as pernas pesadas, os pés cheios de arranhão, o cabelo já parecia ninho de passarinho, mas de alguma forma ainda estava em pé e
pasme viva. Comi metade da banana que trouxe. A outra metade já estava preta. Engoli sem pensar muito. Não era tempo de frescura. Bebi da água do riacho de novo, rezando para não acordar com o bicho se mexendo na barriga. Depois peguei minha trouxinha e fui andando sem rumo. Só sabia que não podia parar. Se o velho descobrisse que eu fugi, ia virar o mundo até me achar. E se me achasse? Bom, aí não ia sobrar nem história para contar. Andei a manhã toda. Entrei em lugar que nem mosquito queria. Passei por uns casebres velhos, mas
não batia em porta nenhuma. Não confiava em ninguém. Ainda não. O rosto de homem com risada fácil me dava enjoo. Tive que me esconder duas vezes atrás de moita, porque ouvi voz de gente vindo. Eu era só um vulto andando com uma trouxa no ombro e um passado sangrando pelos calcanhares. A fome começou a apertar por volta do meio-dia. A rapadura que levei já estava parecendo pedra. Roí como quem roía a esperança e segui. O sol estalava na cabeça, o corpo inteiro doía, mas eu andava, porque andar era melhor do que lembrar. Na metade da
tarde, achei uma estrada de terra, aquela que parece que nunca vai levar para lugar nenhum. Sentei num tronco para descansar. Vi um caminhão passando ao longe, levando boi, e pensei: "Pelo menos eles têm destino." Eu nem isso. Peguei o batom da sacola, um rosa claro, quase branco. Passei devagar. Não era vaidade, era sobrevivência. Era um lembrete de que eu ainda era eu. Mesmo coberta de barro, com cheiro de suor e alma em frangalhos, ainda era poliana. Rodei mais um pouco, tentando achar alguma construção, alguma coisa, mas o que encontrei foi uma velha cerca caída e
um pedaço de capim que serviu de cama improvisada quando a noite começou a chegar. O frio veio logo depois. A blusinha que levei não dava conta. Abracei os joelhos, fechei os olhos e pensei que talvez com sorte aquela fosse a última noite na Terra. A mente viajava, pensava na mãe, no sorriso que ela tinha antes de tudo desandar. Pensava se ela ainda estava viva ou se já tinha se libertado da loucura. A fome começou a apertar por volta do meio-dia. A rapadura que levei já estava parecendo pedra. Roí como quem roía a esperança e segui.
O sol estalava na cabeça, o corpo inteiro doía, mas eu andava, porque andar era melhor do que lembrar. Na metade da tarde, achei uma estrada de terra, aquela que parece que nunca vai levar para lugar nenhum. Sentei num tronco para descansar. Vi um caminhão passando ao longe, levando boi, e pensei: "Pelo menos eles têm destino." Eu: "Nem isso." Peguei o batom da sacola, um rosa claro, quase branco. Passei devagar. Não era vaidade, era sobrevivência. Era um lembrete de que eu ainda era eu. Mesmo coberta de barro, com cheiro de suor e alma em frangalhos, ainda
era poliana. Rodei mais um pouco, tentando achar alguma construção, alguma coisa, mas o que encontrei foi uma velha cerca caída e um pedaço de capim que serviu de cama improvisada quando a noite começou a chegar. O frio veio logo depois. A blusinha que levei não dava conta. Abracei os joelhos, fechei os olhos e pensei que talvez com sorte aquela fosse a última noite na Terra. A mente viajava, pensava na mãe, no sorriso que ela tinha antes de tudo desandar. Pensava se ela ainda estava viva ou se já tinha se libertado da loucura. De repente, sem
se mexer, ele falou: "Tá com medo de quê?" Arregalei os olhos. Quase corri. Pode vir. Eu não mordo. Só carrego coisa. Levantei devagar. Tava suja, desgrenhada, com cara de bicho do mato. E mesmo assim ele não riu, nem me olhou com nojo. "Quem é você?", perguntou com a voz calma. "De onde vem?", pensei rápido. "Pedro", respondi com a garganta seca. Ele olhou de cima a baixo, sem julgamento, mais direto. "Tá fugido." Não era pergunta, era constatação. "Não quero saber porquê." Continuou. "Já vi gente assim. Não precisa explicar. Fiquei parada. Vou sair em 20 minutos. Cidade
da frente. Se quiser, sobe. Não precisa pagar. Meu estômago roncou alto, nem disfarcei. Eu eu não tenho como pagar nada, moço. Ele deu um meio sorriso. Não aquele de tarado, nem de deboche. Um sorriso cansado de quem já viu tudo e só quer andar em paz. Não quero teu dinheiro, só quero alguém para conversar no caminho. Fiquei parada mais um pouco, tentando decidir se confiava ou corria, mas não tinha mais força para correr. E pela primeira vez não senti medo, só cansaço. Eu vou, respondi. Ele acenou com a cabeça e voltou a tomar o café.
De ali, meu bem. Foi a primeira vez que alguém me ofereceu um lugar sem cobrar meu corpo ou minha dor, e eu nem sabia o nome dele. O caminhão balançava na estrada como se fosse barquinho de papel em enchurrada. Eu sentada ali no banco do lado, abraçada na minha trouxinha, sem saber onde enfiar os olhos. O mundo passava rápido do lado de fora, cheio de verde e poeira. Enquanto por dentro eu tava só silêncio. Um silêncio que não machucava, mas também não deixava respirar direito. Tipo aquele momento antes da tempestade, só que eu já tava
toda molhada. O motorista não falava muito, mas também não era seco. Era do tipo que respeitava o silêncio do outro. Às vezes soltava umas palavras sem invadir. "Meu nome é Osmar", ele disse depois de meia hora dirigindo. "Dirijo desde os 15. Já carreguei tudo. Banana, cimento, corpo de defunto, só não carrega uma vontade. Eu sorri de canto, não falei nada, mas anotei mentalmente. Ele era diferente. Falou sobre estrada, sobre um papagaio que tinha e morreu de susto. Sobre a filha que não via há anos e que talvez morasse em Araraquara. nunca perguntou sobre mim, nunca
quis saber porque eu tava com cara de quem tinha fugido do próprio enterro. E isso, isso foi o que mais me deu vontade de chorar, porque depois de tudo o que mais doía era ser tratado como gente, sem preço, sem pergunta, sem ameaça. A viagem durou algumas boas horas. Chegamos na cidade da frente, pequena, meio encardida, com cara de lugar onde todo mundo conhece todo mundo e ninguém esquece de nada. O caminhão parou em frente a uma casa simples com uma placa velha que dizia: "Pensão São Vicente". A fachada desbotada e a cortina da janela
rasgada já mostravam que luxo ali era só o nome de algum hóspede antigo. Osmar desceu, foi até a porta e bateu com os nós dos dedos firme. Demorou um pouco até que ela apareceu. Dona Zuleide baixinha, cabelo preso com um coque torto, avental florido e uma cara de quem já viu muito mais do que deveria. abriu a porta com um suspiro e olhou primeiro pro caminhoneiro, depois para mim, com aqueles olhos que atravessam a roupa e vem o passado inteiro da pessoa. "O que foi dessa vez, Osmar?", ela disse com a voz cansada. "Ele precisa
de ajuda." Ele respondeu. Ela cruzou os braços. "Isso aqui não é orfanato. Por favor, dona Zuleide, ajude mais um." Ela ficou parada uns segundos, respirou fundo, fez aquele barulho com a boca que a gente faz quando tá cansada de dizer sim pra vida que só responde com não. Tá, entra, menino, mas saiba que aqui quem come ajuda. Eu entrei com medo, com vergonha, com o cheiro do mundo grudado na pele. Osmar agradeceu. Se ainda vai acabar com essa mania de pegar todo mundo na rua, homem. Ela ralhou enquanto já voltava para dentro. Ele só sorriu.
Aquele sorriso quieto de canto de boca, como quem sabe que fez o certo e não precisa aplauso. E foi embora. Ela fechou a porta atrás de mim, virou-se devagar e me encarou. Toma um banho, tá fedido. Assenti. Ela apontou o banheiro com o queixo e sumiu na cozinha. A água era fria, mas parecia abraço. Lavei o corpo como quem tenta arrancar o passado. Demorei. Chorei quieto para não fazer barulho, para não atrapalhar. Depois do banho, encontrei uma toalha velha, mas limpa, e uma bermuda larga com uma camiseta que devia ter pertencido a algum neto que
nunca voltou. Sentei à mesa e ela me serviu arroz, feijão e um pedaço de carne com mais osso que tudo, mas feito com gosto. Comi como quem pede desculpa pela fome. De onde você vem? Ela perguntou, sem tirar os olhos da panela. De piedade, respondi só isso. Ela olhou de lado, entendeu o recado e não perguntou mais nada. Era uma mulher que carregava anos no olhar, anos e histórias, e, provavelmente reconhecia o tipo de silêncio que eu trazia. Quando terminei de comer, ela me mostrou um quartinho no fundo, cama de madeira, colchão fino, um ventilador
que só girava quando queria. Pode dormir aqui, mas amanhã me ajuda na faxina. Não criei nenhum folgado nessa casa. Tá bom. Eu disse baixinho. Deitei na cama dura como tábua. Fechei os olhos e pensei: "Talvez, talvez Deus ainda lembre de mim. Talvez tenha mandado Osmar por isso como um recado atrasado. E eu nem tive tempo de agradecer. O sol nem tinha lembrado de nascer e a dona Zuleide já estava batendo na porta com a vassoura. Não para me bater, claro, mas o susto foi o mesmo. Levanta, menino. Aqui não é hotel cinco estrelas, não!", gritou
como quem anuncia o fim do mundo. E eu levantei na hora. Corpo ainda moído da estrada, a alma desbotada, mas os dois pés no chão, porque com vassoura na mão, velha não precisa repetir duas vezes. O café era preto igual pecado e forte como tapa de mãe brava, torrada que mais parecia lasca de pau e margarina que mal cobria o pão, mas era comida. E comida que não vinha com ameaça junto já era milagre. Ela me mandou varrer o quintal, tirar pó das janelas, esfregar o chão do corredor que fede amofo e história velha. Fui.
Não reclamei. Cada passada de pano era uma penitência, cada vassourada uma oração muda. Não era castigo, era rotina. E depois do que eu passei, rotina era luxo. A pensão era pequena, mas cheia de detalhe. Tinha umas 10 portas de quartos, maioria trancada, uns hóspedes calados, uns fantasmas que talvez fossem só ex-vivos, cansados demais para falar. Tinha uma senhora que ficava o dia todo sentada na cadeira de balanço da varanda, encarando por nada. Um homem que andava de cueca e chinelo, com um rádio colado na orelha e que só falava sozinho. Tudo gente que, como eu,
parecia estar no intervalo da vida. No segundo dia, Suleide me entregou um pano de prato rasgado e disse: "Vai enxugar a louça, se quebrar alguma coisa, paga". Nem perguntei com que dinheiro, só balancei a cabeça. Ela não falava muito, mas olhava, com aqueles olhos pequenos escondidos atrás de óculos, com armação torta, mas que pareciam ler pensamento. Às vezes me oferecia mais arroz sem perguntar. Outras, mandava eu repetir. Dava bronca por deixar água cair no chão, mas me cobria com um cobertor fininho nas noites frias, sem falar nada. Teve uma tarde em que eu estava limpando
o chão do corredor e ouvi um suspiro. Era ela parada na porta da cozinha me olhando. Você tem nome? Polihana. Eu respondi sem medo. Ela não piscou, só disse: "Pois muito bem, então põe isso no copo da pia. Não quero mais ver Pedro escrito com caneta. Aquele foi o primeiro sim que recebi na vida sem precisar implorar. Nos dias seguintes fui ganhando espaço. Pequeno, mas meu. Ajudava com a roupa, lavava lençol, varria o pátio, lavava os pratos. Quando dava tempo, eu ficava sentada nos fundos da casa, olhando o céu e tentando lembrar como era não
ter medo do barulho da porta. Suleide não perguntava sobre o passado e eu também não contava. Era um trato mudo. Eu ajudava, ela me deixava ficar simples assim. Uma noite, ela deixou um pedaço de torta em cima da mesa. Do nada, nem era meu dia de ajudar na cozinha. Eu olhei para ela com aquele olhar que pergunta sem abrir a boca. Fez por merecer, mas se reclamar não dou mais. Eu comi com gosto. Cada mordida era quase um abraço. Ela falava com acidez, tratava todo mundo igual faxineiro de presídio, mas tinha um jeito que dava
para ver. O coração dela era igual aos azulejos da pensão, velho, rachado, mas ainda segurando tudo em pé. Um dia perguntei se ela conhecia o Osmar de antes. Ela deu uma risada curta. Aquele lá já apareceu aqui com cada tralha, viciadinho, menino órfão, até uma moça que achava que era pássaro e queria dormir no telhado. Eu só pego porque Deus me deu o azar de ter esse coração mole, mas um dia ele vai ver, vai me deixar com o psicopata na sala. E eu sou o quê? Perguntei com meio sorriso. Ela olhou fundo, depois soltou.
Você é alguém tentando sobreviver e só por isso já merece mais respeito que muito figurão engravatado que passa por aqui. Não falei nada, só continuei descascando batata. Naquela noite fui deitar cedo. O colchão ainda era duro, o travesseiro mais fino que jornal, mas o silêncio da casa era o mais confortável que eu já tinha sentido. Sem gritos, sem portas sendo chutadas, sem a sombra dele do outro lado da parede. Deitei de lado, abracei a trouxinha com minhas roupas e, antes de dormir pensei no Osmar, no sorriso torto, na voz calma, no só quero companhia. que
ele disse, sem pedir nada em troca. E ali, naquele cantinho emprestado, quase sem lençol e com a alma toda costurada, eu entendi. Talvez, só talvez, Deus tenha lembrado de mim. E eu eu nem tive tempo de agradecer. A rotina com dona Zuleide começou a virar escola. Escola daquela sem lousa, sem prova, sem formatura, mas onde a gente sai doutora em sobrevivência. Depois que ela viu que eu fazia as coisas direitinho, começou a me ensinar mais. Primeiro devagar, depois com gosto. Era como se ela estivesse só esperando a hora certa de dizer: "Agora você vai aprender
a ser gente". Me colocou sentada com um pano de prato esticado e uma caneta de tecido na mão. Desenha aí qualquer coisa, flor, bicho, tua tristeza. Depois a gente pinta. E eu pintei com medo no começo, mas depois com vontade. Pintar paninho virou terapia. Era como bordar lembrança boa em pano velho. Depois veio a costura. Primeiro botão, depois bainha. Um ponto aqui, outro ali. Quando percebi, eu estava costurando o vestido meu, ajustando a cintura, alinhando o caimento. Ela dizia: "Roupa é armadura. E mulher sem armadura é alvo fácil. Na cozinha virei braço direito dela. Aprendi
a fazer arroz sem virar papa, temperar feijão sem encher de sal, fritar pastel sem deixar a massa estourar. Cada receita era uma conversa. Cada prato que eu servia, uma fatia de dignidade recuperada. Porque cozinhar também é dizer eu presto. E o mais bonito foi que aos poucos eu parei de me esconder. Comecei a vestir os vestidos mesmo na pensão. Primeiro dentro do quarto, depois no quintal. Até que um dia apareci na sala com um vestido azul de bolinha e um batom clarinho. Ninguém riu, ninguém me xingou. A senhora da cadeira de balanço olhou, balançou devagar
e disse: "Ficou bonita." E a partir dali nunca mais voltei para dentro de mim. Passei a andar como eu queria, a sentar do meu jeito, a falar com a voz que nunca usei e quando perguntava o meu nome, eu dizia sem baixar os olhos: "Poliana, na rua era diferente, claro, sempre tem um idiota de plantão. O rapaz da quitanda uma vez me chamou de de saia, como se estivesse oferecendo promoção. Outro jogou uma latinha na minha direção e disse que eu era vergonha pro bairro. O padeiro fingia que não me via. A mulher da farmácia
ria por trás do balcão, mas eu voltava para casa e ela tava lá, dona Zuleide, com o pano no ombro, a mão na cintura e o coração preparado. Hoje foi ruim, né? Ela perguntava sem precisar ouvir a história, e eu, cansada de ser valente, me encolhia no colo dela. Chorava, chorava com tudo que tinha ficado guardado nos ossos, nas víceras, nas unhas. Ela fazia cafuné e dizia: "A vida vai tentar te dobrar, menina. Vai puxar teu cabelo, vai cuspir na tua cara, vai querer te esmagar, mas você não nasceu para ser esmagada. Você é dessas
que quando cai faz o chão tremer. Mas dói, dona Zuleide, de eu falava entre soluço. Dói mesmo. Algumas pessoas vêm pro mundo com uma cruz maior. A sua veio com espinho, arame farpado e concreto. Mas cada passo teu é milagre. E milagre não se explica. Se vive ali naquele colo que cheirava sabão e café, fui virando mulher, não de um dia pro outro, mas de tarde em tarde, de panela lavada em panela lavada, de flor pintada em flor pintada. Ela dizia que ensinar era parte do trato. Se eu morro amanhã, quero morrer sabendo que deixei
uma mulher forte no lugar de uma menina machucada. e conseguiu porque foi no silêncio da pensão, no rangido da cadeira de balanço, na fumaça do arroz, soltando do fundo da panela que eu entendi, eu podia ser, só ser e ser. Nunca foi tão bonito. Os anos passaram como passa ônibus de cidade pequena, fazendo barulho, parando em todo canto, mas indo pra frente mesmo assim. E eu fiquei ali na pensão da dona Zuleide, enquanto o mundo girava lá fora, como se não tivesse me notado. Muita gente veio e foi. Garotos com o rosto arranhado, menina grávida
com o olho roxo, homem de fala mansa e cicatriz no peito. Todos chegavam com uma história na mala e um medo no bolso. E a porta da dona Zuleide nunca trancava. Ela só dizia: "Mais um, põe uma coberta". e vê se não me rouba nada. A regra era simples: ajudou, fica. parou de ajudar, tchau. Mas a maioria ficava o tempo suficiente para lembrar o próprio nome. Depois partia paraa cidade vizinha, para outro estado, pro tal recomeço que todo mundo sonha e quase ninguém alcança. Mas mesmo os que iam embora sempre mandavam uma lembrança. Saco de
arroz, sabão, um bilhetinho com Obrigado, Zuzu. Eu e ela viramos um sistema. Eu pintava, costurava, fazia comida, limpava os quartos. Ela mandava, ralhava, ensinava, fingia que não via quando eu guardava o melhor pedaço da torta para mim. A pensão era movimentada, mas um dia entrou um menino diferente. Devia ter uns 20, 20 e poucos. Olhos fundos, ombro baixo, cara de quem já tinha apanhado da vida e ainda levava tapa da memória. Chegou direto do ponto de ônibus, com uma mochila rasgada e a coragem pendurada num fio. Sentou no sofá e disse logo pra dona Zuleide:
"Tô fugindo. Meu pai tentou me matar porque eu gosto de homem. Ela não piscou, só fez aquele barulho com a boca. virou pro corredor e gritou: "Poliana, prepara o quarto três." O nome dele era Rafael e era doce, mesmo machucado, mesmo desconfiado. E doído, reconhece doído. Começamos a conversar aos poucos. Primeiro café, depois costura. Em menos de um mês, ele já sabia pintar pano de prato melhor do que eu. E olha que eu achava que ninguém me passava. À noite ele tinha pesadelo, se revirava na cama, gritava: "Não, pai, não!" Eu levantava, calçava o chinelo
e ia até o quarto dele. Sentava na beira da cama, segurava a mão dele até passar e passava devagar, mas passava. Foi numa dessas noites, com ele ainda suado de susto, que eu falei: "Contei tudo, não escondi nada. A mãe com os surtos, o pai com os horrores, a infância toda feita de dor em silêncio. Falei como quem desentope uma pia velha. Saiu tudo e saiu chorando. Eu nem sabia que ainda dava para chorar por aquilo, mas chorava. Ele não falou nada, só me abraçou forte, apertado. E naquele abraço eu soube. O mundo tinha ferrado
com nós dois igual. E mesmo assim a gente ainda sabia abraçar. Daquele dia em diante não nos desgrudamos. Não tinha nome nem rótulo. Mas era mais que amizade, mais que parceria, era colo, era casa. Ficamos juntos escondidos dos olhos do povo, mas não dos dadonas o leade. Ela via tudo, sabia de tudo, nunca perguntou, só olhava e dizia: "Se for amar, que seja para somar, porque atrapalhar eu já vi demais. Tudo que ela me ensinou, eu ensinei para ele. Costura, tempero, pintar com paciência. E juntos começamos a juntar dinheiro, pouco, mas honesto. Ele queria comprar
um apartamento. Eu queria dar para Zleide uma casa sem escada. Sonho alto, mas o povo tem que sonhar. Se não sonhar, vira móvel quebrado, parado num canto. Ajudávamos em tudo. Quando chegava mais um perdido, a gente arrumava o quarto, preparava o banho, fazia comida. A pensão era nosso campo de guerra e de cura. Um dia acordei com aquele vazio antigo. Saudade da mãe, mas daquela mãe de antes, aquela que penteava meu cabelo e me chamava de bonequinha escondida. vontade de ver se ela ainda lembrava, se ainda existia lá dentro. Contei pro Rafael. "Vamos", ele disse,
sem nem pensar. Fomos até o hospital, o mesmo onde ela foi internada anos atrás, afastada descascada, cheiro de água sanitária e saudade velha. Cheguei tremendo, esperando que ela nem me olhasse, mas quando entrei no quarto, ela virou, me olhou e disse: "Minha filha", a voz saiu fraca, mas saiu. Corri para ela, me joguei no colo, chorei. Ela também. Conversamos pouco, palavras picadas, lembranças misturadas. Não falei do pai, não tinha motivo. Ela já carregava tristeza demais. Por um tempinho ali, ela voltou. Era ela, a minha mãe, mas logo passou. Os olhos dela começaram a perder foco.
A mão soltou da minha, voltou pro devaneio, começou a falar de passarinho, de varanda, de café que nunca existiu e eu fiquei ali segurando-me o vazio. Mas pelo menos por um instante ela lembrou de mim e me chamou de filha. A visita da minha mãe foi mais curta do que eu imaginava, mas durou o tempo certo para selar uma parte do passado. Depois daquele abraço daquele minha filha sussurrado entre as rugas e a confusão, não precisava mais nada. Eu podia ter ido embora naquela hora e levado aquilo comigo pro resto da vida. Mas antes de
sairmos, a enfermeira apareceu com os olhos baixos, quase pisando em ovos. Você é a filha da dona Marlene, não é? Sol. Ela mordeu o canto da boca e soltou a frase com cuidado. O homem que vinha visitá-la, provavelmente o pai, faleceu faz algumas semanas. Silêncio. Ela continuou. A gente achou que ela não tinha mais ninguém. íamos começar a tratar como caso de abandono. Mas se você vai aparecer, vou sim, eu disse. Tudo que ela precisar a gente ajuda. E ali, naquele corredor gelado de hospital público, senti um peso saindo das costas, um peso velho preso
no osso, que eu carregava sem nem saber mais porquê. Era errado, talvez. Mas eu senti alívio. Não fiquei triste, nem fingi, porque não era só o pai que morreu. Morreu o medo. Morreu aquela voz gritando meu nome errado. Morreu o barulho da porta quebrando, o cinto no chão, a risada nojenta, o hálito de cachaça com raiva. Morreu tudo aquilo que mesmo longe, ainda me vigiava. Agora não tinha mais ninguém me procurando, ninguém mais para me prender naquele pedaço de vida podre. Eu podia finalmente viver. Voltamos paraa pensão com o coração calmo. Contamos tudo pra dona
Zuleide, que só balançou a cabeça devagar. Agora vocês estão mesmo livres, livre de corpo, de alma e de lembrança. Ela foi para mim mais do que mãe. Foi minha redenção, o abraço que eu nunca tive. A resposta que eu esperava da vida e ela viu a gente crescer. Trabalhei feito condenada por anos. Vendi pano pintado em feira, costurei roupa de noiva, ensinei moça nova a cortar tecido e mulher velha abordar nome de neto no pano de prato. Rafael virou ajudante de tudo. Fazia frete, limpava a caixa d'água, consertava rádio e ainda me levava café na
cama quando dava tempo. A gente juntou cada centavo. Quando o dinheiro permitiu, compramos uma casinha com quintal e varanda. Do jeitinho que dona Zade sempre sonhou. Foi no fundo dessa casa que casamos. Não era tempo de cartório para gente como nós. O mundo ainda cuspia em quem amava errado. Então casamos escondido, mas com tudo que importava: os íntimos da pensão, um vestido azul feito por mim mesma e a bênção da mulher que nos salvou. Dona Zuleide chorou, não aquela lágrima tímida. chorou, soluçando, apertando o lenço contra o peito, dizendo que nunca pensou que ia ser
madrinha de um amor assim. Depois do casamento, nos mudamos com ela para casa nova. Ela já estava mais cansada, os ossos reclamando, a respiração curta, mas a língua, a língua seguia fiada até o último dia dela dava bronca, mandava refazer bordado, criticava meu arroz, que nunca mais ficou igual o de antes. Quando ela ficou doente de verdade, cuidamos dela com tudo que tínhamos. Banho morno, coberta no joelho, sopa morna e novela das seis. Eu penteava o cabelo dela, passava hidratante nas mãos, contava as histórias antigas que ela amava fingir que não lembrava mais. Um dia,
sentada na cadeira de balanço, ela só não acordou, se foi como viveu, sem frescura, sem despedida, mas deixando marca em cada canto da casa. A pensão ficou vazia no começo, depois cheia de novo, porque eu entendi que o que ela fazia não era caridade, era missão. E eu segui, reabri as portas, arrumei os quartos, voltei a cozinhar pros perdidos que batiam ali com fome e vergonha. Gente nova vinha toda semana. Menino com um olho roxo, mulher com os pés machucados de andar sem rumo, travesti que tinha apanhado na rodoviária. Tudo al uma cansada procurando um
copo d'água e um lugar onde ninguém perguntasse: "Por que você é assim?" Rafael, mesmo trabalhando fora, sempre dava um jeito de estar ali. Buscava doações, arrumava encanamento, levava comida para quem não conseguia sair da cama. A gente virou o que um dia precisou e todo dia eu repeti a frase da dona Zuleide para quem chegava. Aqui não é orfanato, mas tem espaço para mais um. Porque às vezes, meu bem, tudo que alguém precisa é um pedaço de pão velho, um pano limpo e alguém que diga: "Fica pelo menos hoje". E assim seguimos, velhinhos de mãos
dadas, sem mais esconderío. Poliana e Rafael. dois sobreviventes e uma pensão que virou santuário de gente quebrada aprendendo dia após dia a colar seus próprios cacos. E se você gostou desse relato, não se esqueça de se inscrever no canal, deixar o seu like e de dizer para essa senhora velha de aqui que sofreu muito e hoje encontrou a felicidade. De onde é que você me ouviu? Deixe nos comentários.