Anacronismo, sincronia, diacronia e porque a história não se repete

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Leitura ObrigaHISTÓRIA
Salve, espectadores! No vídeo de hoje resolvi atender uma solicitação de tema feita tempo atrás e, a...
Video Transcript:
Salve, espectadores do canal! Hoje nós vamos discutir os conceitos de anacronismo, sincronia e diacronia. Antes de começar o vídeo, eu gostaria de comentar que aqui embaixo na descrição desse vídeo você vai encontrar links com textos ou vídeos de temas que eu estou citando nesse vídeo como exemplo.
Então, se você quiser se aprofundar mais nesse assuntos, eu recomendo os links que estão aqui embaixo; No decorrer do vídeo eu pretendo citar quando o ponto que eu estou citando tem um link para um vídeo para complementar o que estou dizendo. Então vamos começar com conceito de anacronismo. Quem não é da área de História talvez já tenha ouvido esse conceito, mas não necessariamente sabe o que significa.
Anacronismo é uma palavra que tem origem no grego que significa "fora do tempo", ou "contra o tempo", quando uma coisa, uma pessoa, uma análise científica ou um conceito está sendo colocado fora de seu tempo, contextualmente deslocado do ponto de vista temporal. O anacronismo pode ser usado de uma maneira mais "inocente" para fazer humor como essas imagens que eu tô colocando aqui no vídeo, por exemplo, mas eles também podem ser cometidos por ignorância. E aí eu não falo "ignorância" com um caráter pejorativo, de "burrice", mas de desconhecimento mesmo.
É muito comum, inclusive em outras áreas de Ciências Humanas, que certas análises ignorem a questão do tempo e acabem cometendo anacronismo. Para o historiador isso acaba sendo um pecado maior, mas mesmo para quem é de outra área, é importante ter em mente que você não pode ser anacrônico. Um excelente exemplo de anacronismo é a aplicação de conceitos fora de seu tempo quando você está fazendo análise na área de ciências humanas.
E muito significativo é o erro que é extremamente cometido com frequência de se usar um conceito como nação fora de seu contexto, levando em consideração que as nações, os estados nacionais como nós conhecemos, surgiram no fim do século XVIII. Por exemplo: o que nós conhecemos com o Brasil, o seu território hoje, não necessariamente era o mesmo Brasil do período colonial, tampouco era um Estado nacional brasileiro. Ou então, se você pega uma documentação oriunda do Estado da Baviera, na Alemanha, antes da Alemanha se unificar e se tornar o que hoje nós conhecemos por Alemanha, analisar esta documentação e chegar à conclusão que "os alemães eram assim" você está sendo anacrônico.
Naquele momento não existiam alemães, e os habitantes da Baviera não representam todos os habitantes dos demais estados que vieram a formar a Alemanha. Outro erro muito comum é aplicar os conceitos de esquerda e direita a momentos na história em que eles não se aplicavam. Ou pegar uma definição específica do que é direita e esquerda e aplicar num momento onde essa definição não se aplicava, ninguém usava; ou, se tinha alguém que propunha essa definição naquela época, não tinha a menor relevância política.
Um exemplo bem comum é a de pessoas que define direita e esquerda por mais ou menos Estado interferindo na economia. Uma definição que praticamente ninguém leva a sério porque ela ignora vários elementos sociais, culturais e ideológicos que são muito importantes para definir direita e esquerda, jogando tudo no lixo e focando única e exclusivamente na economia. É uma definição que bebe muito da Escola Austríaca de economia que claramente não foi formulada por historiadores, porque se fosse ela provavelmente nem existiria, não na forma como se propaga por aí.
Aí essa definição, que é relativamente recente, é muitas vezes aplicada com textos totalmente fora de mão, como o caso da Alemanha nazista. Eu não vou fazer um vídeo exclusivo sobre isso, caso alguém esteja interessado em ouvir, e não vou me aprofundar nisso nesse vídeo. Mas aqui na descrição do vídeo tem um link para o texto que escrevi para o blog do Leitura ObrigaHISTÓRIA explicando essa questão do "nazismo de esquerda" como se espalha pela internet, e de por que isso não faz sentido.
O problema é: uma coisa é você pegar o conceito e aplicar ele fora de contexto por uma questão de ignorância, de não saber o que você está fazendo. Outra coisa é insistir nisso, sabendo que está errado, por motivos políticos e ideológicos. Esse é o maior perigo do anacronismo.
Esse tipo de defesa de anacronismo por questões políticas têm sido muito comum em alguns debates, como o que eu já citei sobre "nazismo de esquerda", mas também tem aparecido em outras discussões como, por exemplo, falar sobre negros escravizando brancos e porque isso invalidaria os argumentos que defendem cotas para negros em universidades. Isso é uma análise anacrônica da história, que não se sustenta, sendo usada para fins políticos e ideológicos. Aqui embaixo no vídeo eu vou deixar dois links sobre isso: um aqui do blog do Leitura ObrigaHISTÓRIA, escrito pelo historiador Rodrigo Prates de Andrade, discutindo sobre como "negros escravizaram brancos" na península ibérica - que, diga-se de passagem, é o argumento de um texto que rola pela internet brasileira - não se sustenta.
Inclusive comete erros conceituais como, por exemplo, dizer que nas fontes da época o termo "mouro" significava "negro", quando, na verdade, não é bem por aí. Leiam o texto aqui embaixo que vocês vão entender. O outro texto foi tirado do blog do Xadrez Verbal explicando porque você não pode comparar a escravidão atlântica dos negros africanos trazidos para o Brasil com a própria escravidão dentro da África e em outros contextos, como na Europa, diferenciando a escravidão de guerra da escravidão mercantilista que se tornou um grande negócio lucrativo e se sustenta por si só no auge da escravidão atlântica.
Como disse, esse vídeo não está aqui para se aprofundar nesses temas. Se você quer aprofundar, os links estão aqui embaixo. Mas, como eu falei antes, alguns anacronismos são cometidos com uma certa inocência.
Um exemplo disso é essa pintura da Batalha de Isso - que, diga-se de passagem, também é citada rapidamente no texto do Rodrigo Prates de Andrade que está linkado aqui embaixo - que mostra uma batalha vencida por Alexandre, o Grande, onde seu exército usa equipamentos e armamentos da Idade Média, porque o pintor não conhecia os equipamentos e vestuário da época de Alexandre, o Grande e de seu exército. É um anacronismo, mas não é um anacronismo proposital com fins políticos, por exemplo. Bom, agora eu vou falar pra vocês sobre os conceitos de sincronia e diaconia de forma rápida.
Eu deixei esses dois termos pro final porque, em partes, eles estão muito conectados com tudo o que eu falei até agora sobre anacronismo. O conceito de sincronia significa "ao mesmo tempo", algo sincrônico, enquanto a diacronia significa "através do tempo". Esses termos foram bem trabalhados por Ferdinand de Saussure na área da linguística, mas eles são muito aplicados na análise histórica também.
E um historiador que usou isso muito bem, na minha opinião, e que discutiu isso muito bem, foi Edward Thompson, Não apenas para Thompson, mas para muitos historiadores, a análise necessariamente precisa ser, sincrônica e diacrônica. E aí você me pergunta "o que é isso? " A análise sincrônica da história significa você pegar o seu objeto de estudo e analisá-lo dentro do seu tempo.
Ou seja: buscar quais elementos do seu tempo dialogam e se conectam com ele. Um exemplo, que, inclusive, já citei em outro vídeo, é o caso do Estado Islâmico. Uma análise sincrônica do Estado Islâmico vai levar em consideração o passado recente que levou ao surgimento desse grupo, levará você a pensar quem financia o Estado Islâmico, quem compra o petróleo deles, quem ajuda com lavagem de dinheiro, quem fornece armas, ou o que quer que seja - isso é uma análise sincrônica - além, como eu acabei de citar anteriormente, o seu passado recente que culminou no seu surgimento, como a Guerra do Iraque, e até mesmo outras intervenções recentes no Oriente Médio.
Já uma análise diacrônica - ou seja, através do tempo - vai buscar um contexto mais longo de surgimento de grupos extremistas desse tipo. Você pode pegar as primeiras sementes do surgimento do extremismo do Oriente Médio desde o fim do século XIX e começo do século XX com as intervenções europeias lá. Ou seja, você entende o contexto - análise sincrônica - e o processo - análise diacrônica; o que diz respeito ao objeto e todos os processos históricos que culminaram desse objeto e no seu contexto.
Um erro muito comum, que especialmente quem não é da História comete, é focar nos resultados, nas consequências, e esquecer o contexto e o processo, e o resultado disso é ver "análises" - se é que a gente pode chamar isso de análise - dizendo que todos os autoritarismos são a mesma coisa. Não, eles não são! O resultado - ou seja, o governo autoritário - é muito semelhante, mas os contextos e processos que levam até esses governos autoritários são totalmente distintos, e precisam ser entendidos em suas particularidades.
Se você não faz, isso você não está fazendo história. Você provavelmente só está atendendo a interesses políticos e ideológicos. Você dizer que dois governos de matrizes político-ideológicas e econômicas totalmente diferentes entre si são a mesma coisa porque ambos mataram muitas, pessoas você está errado.
O resultado é semelhante, mas o contexto o processo são diferentes. E por quê isso é importante? Porque nesse exemplo do governo autoritário que mata pessoas o que leva ao assassinato normalmente têm uma matriz político-ideológica, e se dois governos autoritários têm matrizes diferentes, você precisa entender os mecanismos internos de cada uma delas para entender quais são as justificativas de cada caso.
Isso ajuda bastante para que outros governos de matriz semelhante possam ser analisados melhor, analisando os exemplos históricos que o precedem. Mas não se engane a história não se repete. Não quer dizer que um determinado tipo de governo que foi de um jeito num momento da história será necessariamente igual em outro momento da história, apesar de suas semelhanças.
Pra citar um exemplo brasileiro, o momento político atual, onde se discute o afastamento de Dilma Rousseff e o governo interino de Michel Temer. É possível encontrar várias analogias com 1964. Qualquer historiador com um mínimo de conhecimento consegue encontrar essas analogias.
Mas são momentos diferentes, e se nós podemos comparar em alguns aspectos, em outros nós não podemos forçar uma analogia. Fazer isso é atender a fins políticos e ideológicos. O que não quer dizer que você não possa ser crítico.
Nada do que eu falei até agora inválida a crítica seja um regime, a uma análise conceitual; mas você precisa fazer isso com responsabilidade, com critério teórico-metodológico. Eu tenho visto nos últimos anos muitas pessoas com formação na área de História - pessoas verdadeiramente admiráveis, do ponto de vista académico - cometendo deslizes por conta de adesão ideológica; e aí eu não tô falando só de esquerda ou só de direita, eu falo de todos os lados, porque esse componente passional político entra em jogo e torna as coisas mais complexas, às vezes mais difíceis de enxergar, o que até certo ponto é compreensível. Porque, afinal, todos nós somos seres humanos, nós temos crenças do que é melhor para nosso país ou até mesmo a nível mundial: nós temos interesses específicos do que é bom para nós como sujeitos, o que é bom para nós como coletividade; mas, de qualquer modo, é importante que nós, que temos formação nas Ciências Humanas, que estejamos sempre de olhos abertos para que nós não comentamos os erros que, quem não é da área, comete e nós criticamos.
Nós precisamos ficar com o pé no chão, ter essa âncora firme, e aplicar esse conhecimento teórico- metodológico que nós aprendemos em nossas formações para a nossa vida cotidiana e nossas análises de sociedade. Portanto, se você é da área de História ou de outra área de Ciências Humanas - ou até mesmo um leigo que descobrir esse vídeo e tá descobrindo coisas novas - tenha sempre em mente que, ao analisar a sociedade em que você vive, ou a história de qualquer outra sociedade, você precisa tomar cuidado para não cometer anacronismos e analisar o contexto e o processo, de forma sincrônica e diacrônica. Então é isso!
Muito obrigado pela sua audiência. Visite nossas redes sociais para mais conteúdos ou para saber dos conteúdos do canal com antecedência. Visite aqui o nosso blog, o Leitura ObrigaHISTÓRIA, que tem outros tipos de conteúdo que não aparecem aqui no canal.
Não se esqueçam de visitar os links da descrição desse vídeo, que são muito importantes para complementar alguns dos assuntos que eu falei aqui, E se você discorda de alguma coisa, você pode comentar, fique à vontade. Mas não seja agressivo, não venha me xingar ou xingar a minha profissão - coisa que é bem comum - e argumente com parcimônia, com respeito, com argumentos de verdade. A gente pode empreender uma boa discussão.
Caso contrário, eu não vou ter pudor nenhum de banir as pessoas esse canal. Como eu já falei há muito tempo desde o primeiro vídeo, eu quero manter a qualidade dos debates aqui, e minha paciência. A minha gastrite agradece!
Até porque canais que falam de política para o circo pegar fogo existe em vários no YouTube, e lá eles adoram uma treta. Eu não. Muito obrigado por sua audiência mais uma vez, e até o próximo vídeo.
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