A surpreendente eleição de Javier Milei para presidente da Argentina popularizou uma expressão que antes ficava mais restrita ao círculo da teoria econômica: o anarcocapitalismo Em poucas palavras, o anarcocapitalismo é um ramo do liberalismo econômico que prega a abolição total do Estado dentro do sistema capitalista Na campanha, Milei se definiu como anarcocapitalista e prometeu vender a petroleira estatal argentina YPF, ou IPF, como chamam por lá, e adotar um sistema de vouchers para pagar escolas privadas. A educação não seria obrigatória e nem gratuita Mas um chefe de Estado que prega o fim do Estado não é uma contradição? Eu sou Julia Braun, repórter da BBC News Brasil e eu detalho nesse vídeo o que é o anarcocapitalismo, como o conceito surgiu e as possibilidades - e os limites - de Javier Milei implantar esse sistema na Argentina No livro As Engrenagens da Liberdade, o economista David Friedman – que é filho de um dos maiores nomes do liberalismo econômico, Milton Friedman - analisa um caso histórico que é visto como um exemplo de anarcocapitalismo O caso se passa na Islândia medieval, entre os anos 930 e 1264, existiu uma sociedade liderada por chefes poderosos chamados “gôdi”, que lideravam diferentes grupos sem se submeter a um poder central Os “godi” tinham sua autoridade baseada na propriedade privada.
Quem quisesse liderar uma comunidade precisava comprar um conjunto de direitos chamado de godordô. Até igrejas poderiam ser propriedades desses chefes Desavenças entre os “godi” eram solucionadas dentro de um sistema legal, com tribunais e juízes, mas sem uma autoridade central para executar sentenças. Nem sempre os conflitos acabavam resolvidos por essa via Próximo do ano 1200 o número de chefes começou a diminuir, com o poder concentrado em poucos clãs que detinham porções maiores de território Alguns deles se tornaram vassalos do rei da Noruega, e as disputas entre os “godi” se intensificaram.
Em 1264, a Islândia se tornou parte do reino da Noruega Mesmo sendo entusiasta do anarcocapitalismo, o próprio David Friedman admitiu que, no sistema islandês, os grandes poderes para os mais ricos se tornaram um problema. Ele escreveu em um artigo: “Os ricos (ou poderosos) poderiam cometer crimes impunemente, uma vez que ninguém seria capaz de impor a Justiça contra eles. Onde o poder está suficientemente concentrado, isto pode ser verdade; este foi um dos problemas que levou ao eventual colapso do sistema jurídico islandês no século 13” Mas a teoria e o termo anarcocapitalista, no entanto, são bem mais recentes.
O precursor da ideologia que mistura o pensamento anarquista com o capitalista foi o belga Gustave de Molinari, no século 19 Ele era crítico dos monopólios estatais e entusiasta dos direitos de propriedade e da ideia da iniciativa privada tomando conta da segurança Mas foi a escola austríaca de economia, de nomes como Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek, que consolidou no século 20 a ideia de que o Estado era um impedimento para o desenvolvimento econômico O jurista e cientista político Enrique Natalino disse ao meu colega Edison Veiga que o anarcocapitalismo de hoje nasceu com a junção das ideias políticas do anarquismo clássico do século 19 e da corrente que a escola austríaca tornou famosa “Uma escola que se opõe à intervenção do Estado na economia e que defende o livre mercado como ideias centrais. O anarcocapitalismo tem duas vertentes, tem uma vertente econômica que é influenciada pela Escola Austríaca e tem uma vertente política também que se vale da influência do anarquismo clássico do século 19. O anarquismo se opunha à ideia de Estado, pregava destruição do Estado.
O anarcocapitalismo, ele, portanto, bebe nessa fonte, mas ele se diferencia do anarquismo clássico pela defesa do capitalismo, já que o anarquismo era por essência anticapitalista, era a favor de uma propriedade comunitária, uma propriedade não organizada em torno do sistema capitalista” A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Mayra Goulart diz que a organização da sociedade sob a ótica do anarcocapitalista é conduzida pelo livre interesse dentro do mercado “Acredito que o ponto central é uma postura crítica às instâncias de regulamentação, baseada na crença de que a disposição dos livres interesses no mercado através dos mecanismos de demanda e oferta são suficientes para distribuir e gerir a distribuição de qualquer tipo de recurso” “A função essencial da regulamentação do Estado, da proteção do Estado, é impedir que as desigualdades entre os atores gerem externalidades negativas para os mais fracos” “Os que defendem o contrário, de que os interesses no mercado são suficientes para gerir a distribuição, é porque acreditam que as desigualdades que venham a acontecer são de alguma maneira respaldadas pelo mérito” “Mesmo que incorra numa desigualdade ela é justa, porque desigualdade não é algo em si injusto desde que é respaldado pelo mérito. Então a gente incorre aqui num certo darwinismo social” O americano Murray Rothbard (Rothbird) é considerado o primeiro a usar o termo anarcocapitalista Javier Milei, aliás, homenageou o economista ao dar o nome de Murray a um de seus quatro cães Rothbard era um grande opositor do princípio de igualdade de direitos e oportunidades entre as pessoas e chamava o Estado de uma “organização de roubo sistematizado” Rothbard também classificava como “roubo” a cobrança de impostos. Segundo Camila Rocha, autora do livro Menos Marx, Mais Mises - O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil, esse é um dos temas centrais na ideologia anarcocapitalista Uma coisa importante se dizer, por exemplo, que na prática os anarcocapitalistas são completamente contrários à cobrança de impostos, por exemplo, já que eles são contra o Estado.
Então é uma das principais defesas que eles fazem, para além de várias outras, considerando que o anarcocapitalismo é uma corrente idealista no sentido de que até o presente momento não existe nenhum país anarcocapitalista E isso nos leva à pergunta: com a chegada de um seguidor do anarcocapitalismo à presidência de um país, os preceitos dessa linha de pensamento vão ser aplicados na prática? Javier Milei já disse que considera o Estado um inimigo. E uma de suas principais plataformas é a extinção do Banco Central, a autoridade que supervisiona o sistema financeiro.
Além disso haveria a adoção de vouchers para o pagamento de serviços privatizados de educação e saúde Mas o presidente eleito argentino também afirmou que é filosoficamente anarcocapitalista e, na vida real, um minarquista: ou seja, um adepto do Estado mínimo - o que seria um passo atrás na ideia de abolir todas as instituições para deixar que o mercado conduza a sociedade Na visão do pesquisador e cientista político Leonardo Bandarra, existiria uma grande dificuldade para alguém eleito como chefe do Executivo abrir mão da prerrogativa de autoridade máxima da nação Anarcocapitalista pode ser que ele seja pessoalmente, o que não significa que ele vai fazer um governo anarcocapitalista. Vamos voltar na definição. Anarcocapitalista é a ausência de autoridade, o governo é por definição, uma autoridade, o que implica que uma pessoa que vai nessa vertente provavelmente vai querer menos governo, diminuir as coisas de governo, como ele já anunciou que ele vai fazer, Eu acho que ele pode ser rotulado pessoalmente, mas agora, isso não quer dizer que o seu governo vai ser necessariamente isso, porque o governo anarquista seria uma contradição em termos Outra dificuldade que Milei enfrentará é a falta de maioria no Congresso argentino para conseguir a aprovação de suas propostas Ele sugeriu que uma saída seria submeter suas ideias a plebiscito.
O problema é que mesmo para convocar uma consulta popular é preciso aval dos parlamentares Um dos temas sobre os quais Milei cogitou fazer um plebiscito é a possível revogação da lei de 2020 que permite o aborto na Argentina E isso surge como uma contradição do presidente - que também se autodenomina libertário - já que o tema é mencionado frequentemente como um exemplo da intromissão do Estado em assuntos da esfera particular das pessoas Milei toma posse na presidência argentina no dia 10 de dezembro e é a partir daí que veremos como vai ser a experiência de um anarcocapitalista, ao menos filosoficamente, no poder É isso pessoal. O que você acha disso tudo? Deixa nos comentários o que você pensa e siga mais da nossa cobertura em bbcbrasil.
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