Discurso de Monica Figueiredo para a turma Marielle Franco

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Priscila de Souza
Discurso da Professora Doutora Monica Figueiredo, patronesse da turma Marielle Franco, da Faculdade ...
Video Transcript:
[Aplausos] [Gritos: "Maravilhosa! ", "Linda! ", "Gostosa!
" ] Aluna: Oi, flor! Monica: Oi, flor! [Risos] Ao contrário da Silvia eu não vou ficar olhando pra eles não, senão vai dar merda [Risos] Meu sonho de consumo é um dia entrar na sala e ver eles todos arrumadinhos assim [Risos] Nunca acontece!
Nunca acontece! Tá sempre todo mundo de Havaianas, aquela roupa nojenta! [Risos] Roupa de BRT!
[Risos] Mas pelo menos uma vez a cada semestre eu vejo tudo montado assim, né? [Risos] Tudo parecendo Pablo Vittar. .
. lindos! [Risos e aplausos] Lindos!
[Risos e aplausos] Bom, vamos lá. . .
Eu não vou olhar pra vocês agora. Aos meus colegas, aos pais, às mães, aos filhos e filhas. .
. A Thaís tá grávida! Cadê Thaís?
Não sei mais quem tá grávida, mas Thaís está notoriamente grávida! Então tá bom! Então, vamos começar de novo.
. . Aos pais, às mães, aos filhos e filhas aos parentes, às mulheres e aos homens amados e, principalmente, a estas preciosas criaturas que evitam o meu envelhecimento.
[Risos] Quero dizer que estou muito feliz por estar aqui. E foi talvez por isso que passei a semana a pensar no que aqui diria hoje e não lembrei de outra coisa que não fosse de meu pai. De saída quero que fique claro que apesar de ser eternamente apaixonada por ele não sou capaz de santificar nem os mortos.
E meu pai foi um homem inesquecível porque era mesmo um poço de defeitos. Entretanto, deixou em mim marcas profundas, para o bem e para o mal, e hoje penso que muito do que sou não haveria se não tivesse de resistir à presença dele. Meu pai só tinha a terceira série primária e nasceu numa ilha perdida, no meio do oceano Atlântico, entre a América do Norte e a Europa.
A ilha se chama São Miguel e faz parte do Arquipélago dos Açores, o que o transformou, por nascimento, em um português. Meu pai veio com a família para o Brasil fugido de uma ditadura e do alistamento militar. Ele seria mandado para uma guerra distante em África e meu avô sabia que, nas guerras, os pobres (não importa que cor tenham e que sexo pratiquem) sempre vão morrer.
Mas meu pai nunca quis deixar a sua ilha e no Brasil passou a vir a procurar uma felicidade que ficou muito longe Meu pai tinha a terceira série primária e falava esquisito. O sotaque açoriano é mesmo muito esquisito, acreditem! E hoje sou capaz de imaginar o quanto lhe doía cada vez que queria dizer alguma coisa e não conseguia se fazer entender.
Há, no entanto, uma cena de que não me esqueço. Ele, mais de uma vez, tinha perdido tudo num pequeno negócio e tentava, desesperadamente, recuperar o pouco de móveis e de utensílios que havia sobrado da falência. Era preciso negociar isso, convencer alguém.
. . Enfim, discutir.
Lembro que disse pela manhã à minha mãe, já enfurecida: "A pequena vai comigo". Confesso que não entendi por que mamãe não queria que eu fosse. E ainda hoje me espanta a alegria que durante toda a minha infância senti por estar sempre ao lado dele.
Mas o que interessa aqui dizer é que a cena que se passou foi uma entre tantas em nossas vidas. Lembro-me de estar diante de um guichê a falar com uma mulher o que meu pai dizia a mim e na sequência de muitos nãos ouvidos dizer a ela: "A senhora não pode fazer isto. Porque não é justo.
Ele só não estudou, ele não sabe dizer do jeito que a senhora quer que ele diga. Mas ele é um homem honesto". Não sei até hoje o que moveu a tal mulher, se o absurdo de uma menina de oito anos no colo de um gigante que falava esquisito com os olhos humilhados ou, como meu pai sentenciou depois: "Estás a ver?
É por isto que tu tens de continuar a ler aqueles livros. É por conta dos livros que tu sabes falar direito. Falas como doutora.
E nunca ninguém há de te passar pra trás". [Aplausos] Aluno: Bebe água! Monica: É!
É! [Risos] Hoje eu sou doutora. E se me passaram pra trás foi porque assim o permiti.
Meus alunos saem daqui aptos a enfrentar todos os guichês, a evitar todas as falências e a impedir todas as formas de humilhação. Se resta dúvida a alguém para que serve um curso de Letras neste país, um país cujo poder se especializou na distorção do discurso, na manipulação da palavra e na ofuscação da verdade, explico didaticamente que serve para salvar da ignorância, para dar cidadania, para ensinar como se diz ao estelionato constituído "Eu não sou idiota! Sei o que você quer dizer e não sou manipulável".
Mas, como se isso não bastasse, ainda somos capazes também de formar professores, que, teimosamente, tentam manter em pé um sistema educacional que não interessa porque faz pensar. Não tenho partido político. Não tenho religião.
E os heróis, pra mim, se existem, estão nos livros. Recomendo, a quem goste deles, que os procure na literatura. Os da vida real carecem de verossimilhança e de autocrítica.
É deste lugar, portanto, que peço a todos que cuidem do país que estamos deixando para estes jovens que saem hoje daqui e que merecem um futuro. Mas, se não é possível mudar Brasília a curto prazo, a Brasília que fomos nós que construímos, talvez seja possível mudar o seu quintal com o lixo acumulado, tratar melhor a quem você atende em seu trabalho, ceder lugar no ônibus, diminuir o volume de seu rádio em sua casa, dizer "Bom dia! ", não desejar a morte do outro como solução.
. . Enfim, parecer um ser humano.
Porque creio firmemente que nem eu nem meus alunos somos herdeiros condenados a esta barbárie como destino. Duvide, por favor, das coisas fora de lugar. Se uma frigideira estiver no seu banheiro sobre o vaso sanitário, isto está fora do lugar!
Então, um líder religioso no congresso, um militar na política, [Aplausos, gritos e assobios] Então, um líder religioso no congresso, um militar na política, um político transvertido de super-herói, um policial como juiz executor, um juiz como majestade soberana são frigideiras que devem urgentemente voltar para a cozinha com o risco de você, em breve, não reconhecer mais o lugar onde mora. Estou aqui, neste lugar de homenagem, a exatos trinta anos depois da minha formatura. Sou da turma que se formou em 1987.
Devo tudo o que sou ao meu esforço (trabalhei muito para fazer por merecer) e a esta universidade, o que significa dizer que só a humanidade e os seus livros são capazes de mudar o mundo porque mudaram o meu. Às vésperas de minha aposentadoria, gostaria de agradecer a lembrança de meu nome para esta homenagem. Vocês não sabem como este carinho faz bem.
Mas gostaria, em especial, de agradecer aos alunos que não votaram em mim. Quer dizer. .
. [Risos] Explico-me: pelo menos aqui dentro ainda vivemos em democracia. E para estar aqui hoje eu e os meus colegas fomos escolhidos por votação.
Obviamente há uns que não votaram e mim, [Risos] e é para eles que vai o meu especial "obrigada" porque, com eles, fica a certeza de que a UFRJ, entre trancos e barrancos, também ensinou que democracia é assim mesmo, às vezes se perde, às vezes se ganha. Mas nunca, absolutamente nunca, a ignorância violenta há de ganhar do assombro que é descobrir que os caminhos são muitos e as pessoas variadas. E que por isso é preciso ter, antes de tudo, tolerância e compaixão.
Que o bem haja no caminho de cada um de vocês.
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