Se alguém me dissesse que o maior prêmio da minha vida junto com o maior susto da minha existência, eu não acreditaria. Podem até dizer que tô exagerando, que tô sendo dramática, mas quem viveu o que eu vivi sabe que tem coisa que nem novela teria coragem de mostrar. Meu nome é Zulade, tenho 69 anos e por muito tempo fui tratada como uma presença incômoda, como se eu estivesse ocupando um espaço que já não era mais meu por direito.
Cansei de ouvir frases como: "Ô mãe, você tem que entender que agora é minha vez de viver. Ô vó, a senhora não quer ir pro asilo para fazer amizades? Ô mãe, a gente cuida da senhora, mas tem que respeitar nossa liberdade, né?
Essas frases ditas com a boca cheia de razão e egoísmo vieram dos meus próprios filhos e netos. Fui esposa por quase 40 anos e viúva nos últimos sete. Meu marido, Benício, foi um bom homem, trabalhador, calado, do tipo que amava mais com atos do que com palavras.
Quando ele partiu, me vi sozinha numa casa grande demais, com um quintal que antes era cheio de risadas, agora tomado por silêncio e folhas secas. Achei que meus filhos iam me ajudar, mas para eles acabei me tornando uma espécie de peso que eles tinham que carregar, ou pior, um fardo, aquele tipo de parente que todo mundo tolera, mas ninguém quer por perto de verdade. Meu filho mais velho, Elias, sempre teve a língua fiada e o coração duro.
Casado com uma mulher que me chamava de aveia, mesmo na frente dos meus netos. Minha filha do meio, Teresa, mora em outra cidade e só liga quando precisa de receita de bolo ou se tem alguma gripe na casa dela. E o mais novo, Ronilson, vive de bico em bico, com dívidas, promessas e arrependimentos nunca cumpridos.
Passei meus últimos aniversários sozinha, comendo bolo de padaria e acendendo velhinha de número comprado no mercadinho do bairro. Os vizinhos começaram a me notar mais do que meus próprios filhos e mesmo assim nunca deixei de amar cada um deles. Um dia, voltando da feira, passei na lotérica para pagar umas contas e por impulso, comprei um bilhete da loteria.
Vai que, né? Falei brincando com a moça do caixa. Deixei o bilhete na porta da geladeira, preso com um íã de vaquinha.
Se passaram uns dias e nem lembrei de conferir o resultado. Até que um dia estava varrendo tranquilamente à frente da minha casa, quando uma vizinha passou caminhando e começamos a jogar conversa fora. Até que ela me falou: "Dona Zuleide, a senhora viu que o prêmio saiu aqui na cidade?
" "Vi. " "Não. " "Que prêmio?
", eu perguntei. "Um prêmio da loteria. É uma quantia bem considerável.
Quem ganhou nunca mais vai precisar trabalhar na vida. É dinheiro para mais de uma geração. Só que ninguém apareceu ainda.
Disseram que o bilhete foi jogado na lotérica aqui perto. Na hora meu coração acelerou, mas não quis demonstrar. Falei para ela que estava cozinhando feijão e tinha que voltar para dentro de casa só para disfarçar, né?
Então fui até a geladeira, olhei o bilhete, procurei pelos números na internet. E quando achei, quase deixei o papel da mão cair. Era eu, eram meus números.
Sentei, respirei, fiquei olhando pro nada por uns 20 minutos. Não conseguia acreditar. Depois de uma vida inteira sendo esquecida, apagada, ignorada, o destino decidiu me recompensar com uma fortuna em dinheiro.
Pensei em tudo, nas contas da farmácia, no sofá rasgado, na geladeira que fazia barulho à noite, na dor do joelho que eu ignorava há meses por medo de ir ao médico e gastar. E pela primeira vez em muito tempo, senti que eu podia recomeçar, mas cometi o erro de pegar o telefone e contar para Elias. Mãe, a senhora tá brincando?
Ele disse com uma empolgação enorme. Tô falando sério, mas não quero que ninguém saiba ainda. Claro, claro.
Ele respondeu. Mas já senti ele diferente. No mesmo dia, ele me levou para jantar num restaurante.
O primeiro jantar fora em anos. No dia seguinte chegou com flores. No outro trouxe um amigo advogado para me ajudar a lidar como dinheiro.
Mãe, tem muita gente ruim por aí. É melhor colocar essa grana no meu nome também, só por segurança. Ele me falou.
E foi ali que o medo começou a crescer dentro de mim. Nos dias seguintes, Elias passou a me tratar como se eu fosse uma boneca de porcelana prestes a quebrar, mas não por carinho. Era aquela gentileza desconfortável, interesseira, que tem gosto de coisa falsa.
Mãe, toma esse chá aqui que ajuda com pressão alta. Não precisa sair mais sozinha. Deixa que eu resolvo pra senhora.
Falei com um conhecido meu que é contador. Ele pode cuidar de tudo sem a senhora ter dor de cabeça. Eu apenas sorria.
Concordava com a cabeça, mas meu coração já estava apertado. Algo me dizia que o Elias que eu conhecia tinha sumido. E no lugar dele apareceu um homem que só viafrões.
Fui até o banco. Segui todas as orientações do advogado da loteria. Mantive sigilo, deixei o valor num fundo seguro e não autorizei ninguém a ter acesso.
Fiz isso em segredo, com muito medo, porque eu via nos olhos do meu filho algo que não via há muito tempo, cobiça. E o pior, desprezo, disfarçado de preocupação. Foi quando as coisas começaram a piorar.
Elias começou a me visitar com mais frequência. dizia que estava cuidando de mim, mas eu sentia que ele estava me vigiando. Um dia, sem eu pedir, ele tirou as chaves da minha porta da frente e trocou por outras, dizendo que era mais seguro.
Em outro momento, sumiu com meu celular, dizendo que ia arrumar ele para mim. Não precisa mais se preocupar com essas coisas, mãe. Eu cuido de tudo agora.
Pode descansar. Mas eu não queria descansar. Queria entender por ele agia como se eu fosse um obstáculo entre ele e o dinheiro.
Até que depois de um mês comecei a me sentir cansada, fraca, tonta. Meus olhos embaçavam do nada. Tive enjoos.
Perdi o apetite. "Deve ser a idade", disse Elias. Ele falava que eu já não tinha mais a mesma energia.
Tinha que aceitar. Só que eu conheço meu corpo e aquilo não era a idade nem cansaço. Foi quando lembrei dos chás, das cápsulas, das vitaminas que ele insistiu para eu começar a tomar.
Disse que eram naturais e que iriam me fazer viver por muito mais tempo. Peguei uma delas escondido, coloquei na bolsa e fui até a farmácia da dona Rosa, minha amiga de longa data. Pedi para ela dar uma olhada.
Ela estranhou o rótulo. Isso aqui não é suplemento nem vitamina, é remédio controlado. Se tomado sem orientação, pode causar confusão mental, fraqueza, até parada cardíaca.
Meu mundo girou e não era pela tontura, era pelo choque. Meu filho estava tentando me envenenar. Fiquei em choque por horas.
Me tranquei no quarto, chorei baixinho, sem saber em quem confiar. Liguei paraa Teresa, contei por alto. Ela disse que eu estava exagerando, que era loucura da minha cabeça.
Liguei para Ronilson, que só respondeu com um áudio de 7 segundos, dizendo: "Mãe, tô ocupado agora, depois a gente conversa". Eu estava sozinha, mas não estava vencida. No dia seguinte, fui à delegacia, acompanhada da minha vizinha, dona Marta.
Levei o comprimido, expliquei a situação, pedi ajuda. O policial que me atendeu olhou com desdém. Ah, senhora, às vezes é só uma confusão.
Isso é caso de família, a gente não se mete muito, não. Fui embora humilhada, mas algo em mim acendeu. Se ninguém me defenderia, eu mesma ia me defender.
Naquela noite, mal dormi. A cabeça latejava com uma pergunta que nenhuma mãe deveria precisar fazer. Será que meu filho seria mesmo capaz de me matar?
Não era novela, não era exagero. Era meu corpo gritando que algo estava errado. E minha intuição, que sempre foi certeira, agora me berrava.
Mas eu não podia agir no impulso. Se confrontasse Elias de cara, ele podia negar, apagar provas ou até acelerar o plano. Foi então que na manhã seguinte liguei para um médico antigo da família, o Dr Paulo Henrique, que tinha atendido meu falecido marido anos atrás.
Era homem de confiança, discreto, do tipo que olha nos olhos. disse que precisava de um checkup geral, que estava tendo enjoos, tontura, confusão e fraqueza. "Vem amanhã, dona Zuleide, e traga os remédios que anda tomando.
" Ele me falou no consultório, depois dos exames e de ouvir minhas queixas, ele ficou pensativo. "A senhora disse que começou a se sentir mal há quanto tempo mesmo? ", ele perguntou.
Respondi que fazia uns 15, 20 dias. Depois que meu filho começou a me trazer uns comprimidos e chás, ele franziu a testa, pediu para ver os remédios. Eu havia levado numa sacolinha plástica junto com um vidrinho que Elias me entregou, dizendo que era vitamina de memória.
Ele leu os rótulos, cheirou, abriu a cápsula e analisou o conteúdo. Dona Zuleide, isso aqui não é suplemento, é um sedativo forte com efeito acumulativo. tomado por dias seguidos, pode provocar confusão mental, lapsos de memória, quedas de pressão.
Dependendo da quantidade, pode até causar um ataque cardíaco. E ele ainda é controlado. Só pode ser comprado com receita.
Não tem nada de natural. Fiquei pálida, a boca seca, o coração disparado. O que isso quer dizer, doutor?
que alguém está tentando te intoxicar de forma sutil, muito provavelmente para alegar que a senhora está com sintomas de demência ou início de Alzheimer, ou pior, até lhe causar um ataque cardíaco fulminante. Já vi casos assim tristes. Geralmente envolve disputa por bens ou herança.
Naquele momento, minhas mãos começaram a tremer. Não era filme, não era imaginação. era meu filho tentando me apagar aos poucos.
O Dr Paulo foi firme e humano ao mesmo tempo. Vou te ajudar, dona Zuleide, mas precisa agir com calma e inteligência. Vou documentar tudo em laudo, registrar os efeitos e indicar um colega, meu advogado.
Ele já cuidou de casos parecidos e vai te orientar juridicamente. E se ele tentar fazer algo pior? Perguntei.
A senhora tem o direito de se proteger, não está sozinha. Agora é agir com estratégia. Voltei para casa com o coração apertado, mas determinada.
Nada de dramatizar, nada de confrontar ainda. Eu ia dar corda até ele mesmo se enforcar. No mesmo dia, Elias apareceu com uma marmita e aquele mesmo sorriso torto.
Trouxe sua comida, mãe. Tá comendo direito? Tô sim, filho.
Obrigada. Fiz questão de não tocar nos comprimidos. Fingi que tomei.
Guardei tudo no armário de limpeza e pela primeira vez comecei a observar ele com outros olhos, como se eu não fosse mãe, mas vítima. Nos dias seguintes, segui a risca o plano com o Dr Paulo e o advogado. Entreguei tudo que ele pediu.
O laudo confirmava intoxicação leve. O histórico clínico não indicava nenhum distúrbio mental. Tudo foi sendo registrado formalmente, com testemunhas e documentos, até que o advogado sugeriu, vamos dar o próximo passo, registrar um boletim de ocorrência por suspeita de tentativa de golpe patrimonial e lesão à saúde de idosa.
Eu tremia por dentro, mas assinei e pela primeira vez na vida, senti que alguém me escutava. Mas enquanto a parte formal caminhava dentro de casa, o clima ficava mais pesado. Elias começou a ficar mais impaciente.
Batia a porta com força, me olhava de longe, como quem tá perdendo a paciência com o atraso de um plano. Uma noite cheguei a acordar e dar de cara com ele na porta do meu quarto, sendo que nem tinha convidado ele para ir até minha casa. Ele fingiu, disse que estava passando por ali perto e resolveu ver se eu tava bem, mas nos olhos dele não havia cuidado, havia pressa, era questão de tempo até o plano dele se revelar e quando revelasse eu estaria pronta.
Depois daquela madrugada em que abri os olhos e viu Elias parado na porta do meu quarto, o sono passou a ser uma batalha. Dormia com a luz do abajura acesa, com a cadeira encostada na porta e um copo d'água do lado da cama. Que claro, eu mesma enchia depois de conferir a torneira três vezes.
Eu, que por décadas fui a mulher que dormia de cabeça tranquila no travesseiro, agora acordava com qualquer barulho. O ranger de uma porta, o estalo do forro, o tilintar de talheres na cozinha. Tudo virava alerta, mas mesmo com o medo crescendo, minha vontade de sobreviver era maior.
Continuei em contato com o advogado. Cada vez que Elias aparecia com mais um remedinho ou proposta esquisita, eu anotava num caderno o nome da substância, a embalagem, a data. Passei a guardar tudo, até a marmita que ele me trouxe um dia com gosto estranho.
Congelei e levei pro laboratório indicado pelo Dr Paulo. Resultado, contaminada com uma substância sedativa de uso veterinário. Ele estava tentando me dopar até o ponto de não responder mais por mim.
Segundo o advogado, o próximo passo dele seria me declarar incapaz e então pegar o dinheiro, a fortuna da loteria que ele não moveu um dedo para ganhar. A gota d'água foi num domingo. Ele apareceu com um senhor engravatado.
Mãe, esse aqui é o Dr Sávio, especialista em geriatria e documentação de interdição voluntária. Fiquei sentada, olhando pros dois, fingindo que não entendi. Interdição, Elias.
Só uma formalidade, mãe. É para ajudar. Com a idade, a senhora pode esquecer números, senhas, deixar tudo bagunçado.
E eu assumo a gestão só enquanto for necessário. E quem decidiu isso? Perguntei.
A senhora mesmo, lembra? A gente conversou sobre isso ontem. Ele respondeu.
Olhei nos olhos dele. Era isso. Ele já tava tentando me fazer parecer confusa.
Eu não lembro dessa conversa, Elias. Tá vendo, doutor? É disso que tô falando.
O homem fingia fazer anotações, mas mal me olhava nos olhos. Depois que foram embora, corri até o escritório do advogado. É agora ou nunca, dona Zuleade?
Ele disse: "Se a senhora quiser impedir essa interdição fraudulenta, vamos entrar com uma medida de proteção judicial preventiva. Com os exames médicos, os indícios de intoxicação e os documentos que temos, podemos pedir um afastamento cautelar dele. " Concordei na hora.
E nessa mesma semana, Elias foi notificado oficialmente de que estava sendo investigado por tentativa de golpe contra a pessoa idosa. A reação dele foi imediata. Na noite seguinte, ele bateu na minha porta como um furacão.
Mãe, o que é isso? Você tá me acusando de quê? Tô me protegendo, Elias.
De você? Você tá louca? Eu sou seu filho.
Eu que cuido da senhora. E foi você que tentou me dopar para me tirar do caminho. Ele ficou vermelho, gaguejou, tentou inverter o jogo.
A senhora tá sendo manipulada. Esse advogado deve estar de olho no seu dinheiro. O meu dinheiro agora tá protegido e a minha saúde também.
E você vai ter que responder por cada passo que deu. Falei firmemente para ele. Ele me olhou como se visse um fantasma.
como se nunca imaginasse que eu tivesse forças para reagir. Saiu furioso. Mas naquele dia eu vi que minha vida ainda teria muitas revir à volta.
No dia seguinte entrei com pedido para mudança de endereço com sigilo judicial. O juiz acatou e eu fui embora. Não deixei recado, não deixei pistas, apenas segui mala, minha coragem e minha liberdade.
Ninguém mais ia saber onde eu moro, nem meus outros filhos. E sinceramente, prefiro assim. Foi preciso um golpe para eu entender que o que eu chamava de família nunca me enxergou como gente.
Eu nunca pensei que fosse viver algo parecido com um recomeço aos 69 anos de idade e muito menos que esse recomeço seria sozinha por escolha própria. Depois que me mudei com apoio judicial, fui parar numa cidadezinha no interior de Minas Gerais, onde ninguém sabia meu nome minha história. adquiriu uma casinha simples, mas charmosa, com varanda, quintal e um pé de jabuticaba no fundo.
Nos primeiros dias, estranhei o silêncio. Não tinha barulho de televisão, nem de vizinho falando alto, mas também não tinha cobrança, não tinha chantagem emocional, não tinha ninguém querendo enfiar comprimido goela abaixo, era só eu e minha paz. E foi aí que percebi a solidão nem sempre é castigo, às vezes é refúgio.
Tive muito tempo para pensar nos anos que perdi tentando agradar quem nunca me escutou, nos aniversários passados sozinha, na forma como aceitei ser tratada por medo de ser esquecida. Mas hoje eu entendi que pior do que ser esquecida é ser lembrada só quando convém. E por isso decidi viver no meu tempo, do meu jeito.
Não comprei mansão, não viajei para Paris, não virei rica espalhafatosa, apenas me dei o direito de ser dona da minha própria vida. Com o dinheiro da loteria bem aplicado, passei a viver com conforto, mas sem ostentação. Troquei de dentadura, comprei roupas novas, fiz um tratamento pros joelhos e todos os meses separei uma parte do valor para algo que se tornou meu maior prazer.
Ajudar gente boa em silêncio. Nada de criar ONG, nada de aparecer no jornal. Eu ajudava como dava quando sentia no coração.
Um exemplo, a moça do mercado que cuidava do pai com Alzheimer e vivia dizendo que sonhava em fazer faculdade de enfermagem. Um dia deixei um envelope na mochila dela com o primeiro semestre pago e uma cartinha escrita à mão: "Para você cuidar dos outros, como ninguém nunca cuidou de mim". Outra vez me contaram a história de uma mulher que foi expulsa de casa pelo marido bêbado com dois filhos pequenos no colo.
Fiquei de coração partido, mas no dia seguinte fui até a dona da pousada da cidade e paguei três meses de estadia para essa moça. E ainda deixei sacola com mantimentos. Nem precisei dizer meu nome, só pedi.
Se ela perguntar quem ajudou, diga que foi uma senhora que um dia teve medo de não ter para onde ir. Essas pequenas ações foram me curando mais do que qualquer terapia. Porque para quem passou a vida inteira pedindo para ser vista, dar visibilidade a outros se tornou meu jeito de resistir.
Claro que a dor da traição nunca some por completo. Às vezes ainda sonhava com o Elias, com aquele sorriso torto, com o dia em que me chamou de velha confusa, como se estivesse dizendo inútil. Mas acordo, respiro e lembro que não sou mais aquela mulher calada que engolia sapo com chá e agradecia por migalha de afeto.
Hoje eu sou liberdade. Outro dia, na fila da padaria, uma senhora puxou conversa. A senhora mora sozinha?
Ela perguntou. Respondi que sim, mas que sozinha. Nunca tinha sido tão bem acompanhada.
Ela riu. E eu também, porque agora cada passo que dou é no meu ritmo, sem medo, sem chantagem, sem ninguém me mandando tomar comprimido para dormir melhor. E o dinheiro continua lá, guardado, seguro, mas não me define.
O que me define é que, pela primeira vez na vida, sou quem manda em mim. Com o tempo, fui criando uma nova rotina, que, embora simples, me preenchia de um jeito que eu nunca tinha sentido, nem quando era jovem. Acordava cedo, regava as plantas, preparava meu café do jeito que gostava, sem ninguém dizendo que eu exagerava no açúcar, e depois sentava na varanda para ver o movimento da rua.
Era ali entre um gole de café e outro que eu observava as pessoas passando com pressa, os vizinhos discutindo bobagens, os cachorros correndo atrás de moto e sentia algo que há anos não sentia. Leveza. De vez em quando recebia visitas a senhora da banca de jornal, que adorava conversar sobre novelas antigas, o rapaz da farmácia, que me chamava de tia e me contava das dificuldades da mãe dele, que estava em tratamento contra o câncer, a dona Maristela, que morava ali do lado e vendia trufas caseiras para pagar a faculdade da filha.
Aos poucos, sem fazer barulho, eu fui virando ponto de apoio para quem me cercava. Não como antes, onde eu era, o peso da família, mas agora, como alguém que acolhia sem julgar. Claro, também continuei ajudando como podia.
Paguei uma cirurgia de emergência pra esposa do padeiro. Comprei material escolar completo para quatro irmãos que moravam numa casa que tinha até goteiras. Paguei exames e remédios para um senhor que sempre era gentil quando passava por mim na rua, tudo sem dizer meu nome.
Enquanto isso, nunca mais tive notícias do Elias, nem do Ronilson. Teresa chegou a tentar ligar uma vez, mas eu deixei o celular desligado. Não por raiva, mas porque tem gente que a gente precisa deixar ir para conseguir se encontrar.
Com o passar dos meses, minha vida foi se ajeitando no compasso do que eu chamava de paz merecida. Não era uma alegria exagerada dessas que a gente vê em filmes com final feliz. Era uma felicidade quieta que vinha no cheiro do café, na sombra do pé de jabuticaba e no bom dia sincero na padaria.
Aos poucos, as pessoas do bairro passaram a me chamar apenas de a senhora da casa do portão azul. Eu era só mais uma vizinha discreta, gentil, que às vezes fazia bolinho de chuva para dividir com as crianças e que nunca perguntava demais sobre a vida dos outros. E isso para mim era um paraíso.
Mas a vida, mesmo quando boa, gosta de pregar peças. Foi num sábado de manhã que conheci o Renato, um senhor de fala mansa, uns 5 anos mais velho que eu, viúvo, que morava duas ruas acima. e que vivia brigando com o moço do açouge.
De segunda. Nos esbarramos na feira. Ele me ajudou a pegar uma cebola que caiu da sacola.
Trocamos um obrigada, um imagina e fomos conversando até o fim da barraca. "A senhora é nova por aqui? ", ele perguntou.
"Sim, tô me adaptando. " Respondi. Isso é bom.
Adaptar é melhor que aceitar. Aquela frase ficou na minha cabeça. Começamos a nos ver mais.
Um aceno no portão, um café no fim da tarde, uma ida à missa, uma conversa sobre rádio AM e bolachas que não existem mais. Renato não perguntava muito sobre meu passado e eu também não perguntava sobre o dele. E foi justamente isso que tornou tudo mais leve.
A gente se encontrava no presente sem precisar explicar o que veio antes. Um dia ele apareceu com uma muda de alecrm. Pra senhora plantar no quintal.
Dizem que espanta tristeza. Já tenho um pé de coragem. Agora um de Alecrm vai combinar bem.
Ele riu e pela primeira vez tocou minha mão. Foi um toque leve, gentil, mas que acendeu algo que eu achava esquecido. Não, não me apaixonei como nas novelas, mas reencontrei algo mais raro.
Cumplicidade. Um silêncio que não pesa, uma companhia que não cobra, uma conversa que não invade. E isso para quem foi invadida por quase uma vida inteira é ouro.
Continuei com minha rotina de ajudar sem alard. Descobri que o filho do Renato passava por dificuldades e tinha duas crianças pequenas para criar. Num gesto silencioso, paguei um ano da Escolinha das Crianças.
Ele nunca soube que fui eu. Também comprei um forno novo paraa dona Eliana, que fazia pão de queijo para vender e sustentar a irmã doente. Nunca deixei bilhete, nunca assinei nada, só fazia.
E pronto, porque entendi que não é preciso barulho para mudar o mundo de alguém. Um dia Renato me olhou fundo nos olhos e disse: "Zuleide, a senhora é a mulher mais forte que eu já conheci e eu nem sei o que a senhora viveu, mas sinto que tudo o que faz vem de um lugar que sangrou muito. " Sorri, abaixei o olhar e respondi: "É que quando a gente quase morre na mão de quem devia proteger, a gente aprende a cuidar dos outros sem esperar nada de volta.
Ele apenas assentiu como quem entende, sem precisar perguntar. E naquele fim de tarde, sentada ao lado dele na varanda com o alecrm recém plantado do lado, pensei: "Talvez eu tenha sido abandonada. Talvez eu tenha sido enganada.
Talvez eu tenha perdido quase tudo, mas nunca mais eu vou perder a mim mesma. As estações foram mudando sem pressa. O pé de jabuticaba começou a florir com mais intensidade.
As crianças do bairro passaram a me chamar de tia e Renato já chegava em casa sem precisar bater palma. Tinha até um lugar só dele na mesa da cozinha, com a caneca de esmalte azul que ele dizia que era da sorte. Nos tornamos dois sobreviventes que se amparavam sem precisar explicar o passado.
Mas mesmo com o coração mais leve, eu sabia que certas feridas não desaparecem. Estava numa manhã tranquila, cortando banana para colocar no mingal quando o telefone tocou. Quase não usava mais aquele número.
Só a minha advogada, Dr. Cíntia ainda ligava por ele. Atendi com o pano de prato no ombro, achando que seria algo sobre a papelada da aposentadoria ou atualização da conta, mas a voz dela veio com um tom mais sério do que o habitual.
Dona Zuleide, bom dia. Tenho uma notícia que talvez a senhora precise saber, mesmo que eu saiba que vai mexer com a senhora. Pode falar, minha filha.
Já vivi tanto que não tremo mais por pouca coisa. É sobre o seu filho, o Elias. Meu coração deu aquela fisgada no peito, como se os músculos se preparassem para uma pancada velha conhecida.
O que tem ele? Ele foi preso ontem à noite. A investigação era sigilosa, mas agora está pública.
Ele foi pego num esquema de falsificação de receitas e venda ilegal de remédios controlados. Por um segundo, a cozinha pareceu girar. O cheiro do mingal desapareceu.
O barulho dos passarinhos sumiu. A senhora tá me dizendo que ele tava fazendo com outras pessoas o que tentou fazer comigo. Exatamente.
Só que agora não tinha como esconder. As provas são fortes. Tem depoimentos, gravações e o envolvimento dele é direto.
Fechei os olhos e pela primeira vez não chorei. Obrigada por me avisar, doutora. Eu precisava saber.
Qualquer coisa, estou à disposição. Ela disse. Desliguei o telefone com a mão trêmula, mas o peito firme.
Era como se a justiça tivesse dado sua resposta. Não por vingança, mas por confirmação de que eu não estava louca. Nos dias seguintes, mantive minha rotina, não com alívio, mas com a serenidade de quem enxerga as peças se encaixando sozinhas.
Renato notou o meu silêncio, mas não perguntou, nem precisei dizer. Ele só me fez um café mais forte e sentou ao meu lado. E ali, mesmo sem palavras, ele entendeu que alguma dor antiga tinha voltado.
Mas não para me dominar, só para me lembrar do que superei. Duas semanas depois, a Dr. Cíntia voltou a ligar.
Dona Zulade, me desculpe insistir, mas achei que a senhora precisava saber. O que foi agora? Seu filho pediu para te ver.
está detido numa penitenciária a 80 km daqui. Disse que quer pedir perdão. Fiquei muda.
Foi como se o tempo tivesse parado dentro do telefone. Ele tá bem? Perguntei.
Ela respondeu que estava em uma cela comum e que aparentemente vinha passando por um processo de forte desgaste emocional. Segundo o advogado dele, ele estava chorando bastante e repetindo que a única coisa que queria era me olhar nos olhos e se desculpar. Suspirei fundo e disse: "Eu vou pensar.
" Naquela noite, sentei na beira da cama, olhei pro teto e, pela primeira vez em muito tempo, voltei a me perguntar: "Será que existe perdão para quem tentou nos apagar? Será que vale a pena ouvir desculpas quando já se aprendeu a viver sem elas? Não encontrei a resposta naquela hora, mas sabia que ela viria e quando viesse seria minha e de mais ninguém.
Nos dias que seguiram a ligação da Dr. Cíntia, eu não pensava em outra coisa. O Elias preso, chorando, querendo me ver, pedindo perdão.
Era como se tudo aquilo que eu enterrei com tanto esforço estivesse querendo cavar seu próprio caminho de volta à tona. Sentei na varanda com o rádio ligado numa estação que só tocava modão antigo e fiquei ali de olho na paisagem, mas com a cabeça presa no passado. Lembrei do Elias menino, da vez que ele quebrou o vaso da sala e chorou com medo de apanhar, da primeira vez que saiu de casa para trabalhar, do orgulho que senti quando ele me chamou de minha rainha no dia do seu casamento.
Tudo isso antes da ganância fazer dele um estranho. Renato percebeu que eu andava calada demais. "A senhora tá com o coração apertado, né?
", ele me perguntou. A senti com a cabeça. Senti que precisava desabafar com alguém e senti que ele não iria me julgar.
Então, contei toda a história desde o início. Falei que o Elias tinha pedido perdão, que estava preso. Renato ficou em silêncio por alguns segundos, tentando processar e entender tudo, e depois respondeu com sabedoria que só o tempo ensina.
O perdão, Zuleide, às vezes não é para quem errou, é para quem foi vítima. Respirei fundo. Aquela frase me tocou.
Mas ainda assim ver Elias seria como abrir uma porta que levei anos para fechar. Três dias depois, entrei em contato com a advogada. Cíntia, marca uma visita, mas deixa claro.
Eu vou para ouvir, não para aliviar consciência de ninguém. Ela entendeu e agendou pro fim da semana. O caminho até a penitenciária foi silencioso.
Fui de carro com a Cíntia, ouvindo-se o barulho da estrada e o coração batendo mais rápido do que devia. Chegamos, fiz o cadastro. Passei pela revista e quando entrei na sala de visitas, vi ele ali sentado, envelhecido, magro, com as mãos trêmulas e os olhos fundos.
Por um segundo, ele parecia aquele menino que dormia com febre no meu colo. Mas só por um segundo ele levantou assim que me viu, tentou se aproximar, mas parei ele com um gesto simples da mão. Fica aí, Elias.
Ele assentiu com os olhos marejados. Mãe, eu não sei nem por onde começar. Então começa calado e me escuta.
Contei tudo. Desde o dia em que desconfiei dele, dos comprimidos. dos remédios falsos, das tentativas de me silenciar.
Você não só tentou me roubar, você tentou me apagar, tirou minha paz, minha saúde, minha fé nas pessoas. Ele chorava, mas não interrompia. Eu fui embora, me escondi, reconstruí minha vida sem precisar de você nem de ninguém.
E agora você tá aqui querendo o quê, Elias? Eu eu só queria pedir perdão, mãe. Eu não tô pedindo o dinheiro, nem visita, só uma chance de dizer que eu me arrependo.
Fiquei em silêncio por longos segundos. Elias, eu não vim aqui para te dar nada. Vim para te mostrar que você perdeu tudo, não o dinheiro, mas o direito de conviver comigo.
Ele chorava sem parar. Eu não desejo mal para você, mas o bem que eu carrego, eu reservo para quem nunca tentou me matar. Me levantei e antes de sair deixei uma única frase.
Quem sabe um dia você se perdoe, mas o meu perdão não tá à venda e nem em promoção. Naquele dia voltei para casa com uma paz que eu nem sabia que precisava. Não por vingança, mas porque, enfim, eu havia encerrado um ciclo.
A viagem de volta foi diferente da ida. Na ida levei dúvidas, lembranças e um coração pesado. Na volta trouxe só o silêncio, mas um silêncio bom daqueles que não gritam por dentro, daqueles que selam o fim de um capítulo que já durava mais do que devia.
Cíntia me deixou em casa no fim da tarde. A senhora quer que eu fique um pouco? Ela perguntou: "Não, minha filha, hoje eu quero ficar comigo mesma.
" Ela sorriu respeitosa e se despediu. Entrei, tirei os sapatos, fiz um chá de camomila e sentei na varanda como tantas outras vezes, mas dessa vez com a alma limpa. Elias ficou para trás, não só geograficamente, ficou para trás dentro de mim.
Entendi que não precisava mais provar nada a ninguém, que o perdão que eu precisava vinha da Zuleide de ontem para Zleade de hoje. A mulher que engoliu comprimido acreditando que era cuidado, a que foi chamada de confusa, de peso, de velha ultrapassada. Agora era uma senhora inteira, cheia de paz, cheia de propósito e, acima de tudo, cheia de si.
Renato chegou no portão com um pacotinho embrulhado num pano de prato. Trouxe biscoitinho de polvilho. A senhora gosta?
Gosto sim, principalmente quando vem com esse sorriso. Sentou-se ao meu lado sem perguntar nada, como sempre. Mas naquela noite senti que queria falar.
Eu fui visitar o Elias. Ele me olhou surpreso e e nada. Falei tudo o que precisava dizer.
Ele ouviu, chorou, mas o perdão ficou comigo. Renato assentiu e respondeu com a simplicidade de quem carrega sabedoria nas rugas. Às vezes a gente precisa olhar para trás só para entender o quanto andou.
Nos dias que seguiram, voltei à minha rotina. Bordei panos de prato com frases que me vinham na cabeça. Comecei a vender alguns na feira, não pelo dinheiro, mas para sentir o gostinho de ver alguém sorrir com algo que saiu das minhas mãos, seja inteira, mesmo que em pedaços.
Não fui feita para caber onde me apertam. Cuidar de si não é egoísmo, é sobrevivência. As frases viraram sucesso.
Muita gente começou a perguntar quem era a tal Z Santos que assinava os bordados. Mas eu mantinha o mistério, porque não era sobre fama, era sobre propósito. Compart dinheiro da loteria, investi discretamente em pequenos comércios locais.
Ajudei a moça do salão a ampliar o espaço. Paguei os cursos profissionalizantes de dois irmãos que queriam abrir uma oficina. Comprei os uniformes do time de futebol infantil da vila.
Tudo isso sem nunca aparecer. E quanto mais eu ajudava, mais eu me sentia inteira. Num domingo, fui convidada para um almoço coletivo na praça.
Era uma ação de agradecimento organizada pelos moradores por uma senhora misteriosa que, segundo eles, tinha mudado a vida de muita gente. Assisti tudo de longe. Sentei num banco com meu chapéu de palha e meu vestido florido, vi a felicidade espalhada ali, sem que ninguém soubesse que a fonte estava sentada ali no cantinho e sorri, porque é exatamente assim que eu escolhi viver, sendo raiz, mesmo sem precisar mostrar a flor.
Depois daquele almoço na praça, fiquei com o coração leve, como há décadas não sentia. Não era felicidade escancarada dessas de gargalhar alto. Era aquela alegria mansa que caminha de mãos dadas com a gratidão.
E era isso que eu tinha me tornado. Uma mulher grata. Não pelos erros, mas pelo caminho que escolhi depois deles.
Renato veio me visitar com uma sacola de mexericas e o mesmo jeito calmo de sempre. O pessoal do bairro agora vive querendo saber quem é a tal senhora misteriosa, hein? Eu imagina, sou só a senhora da casa do portão azul.
Ele riu e disse: "Uma senhora de quase 70 anos que tem mais força que muito político por aí. Força não, Renato, só cicatriz. E cicatriz bem cuidada virar armadura.
Os dias seguiam tranquilos. Meus bordados começaram a chegar em outras cidades. Gente simples mandava recado pelos feirantes.
Diz pra dona Z. Santos, que a frase dela me deu coragem para sair de casa. Parece que ela escreveu só para mim e isso para mim valia mais do que a fortuna que eu ganhei naquele bilhete esquecido na geladeira.
Porque ali eu vi que minha dor não foi em vão e que mesmo sem contar minha história, eu estava ajudando outras mulheres a escreverem as delas. Num final de tarde, recebi uma carta da penitenciária. Era do advogado do Elias.
Dizia que ele seguia preso cumprindo pena e que nos últimos meses passou a frequentar os encontros religiosos internos e participar de oficinas de escrita. Anexado à carta, um papel dobrado, um texto escrito à mão em letra tremida. Comecei a ler.
Se a senhora estiver lendo isso, saiba que continuo arrependido. Não de estar preso, mas de terme tornado um homem que mereceu isso. Eu sei que a senhora não me perdoou e não peço que perdoe, mas queria que soubesse que tô tentando mudar, não por reconhecimento, mas porque a vergonha que carrego é minha e preciso aprender a viver com ela.
Elias li com calma. Dobrei o papel e guardei na gaveta onde ficam osal panos que não usei. Não chorei, mas também não sorri, porque às vezes o que a gente sente não tem nome.
No dia seguinte fiz um bordado diferente, sem florzinha, sem laço, só uma frase grande em letras vermelhas. A mulher que sobreviveu foi o mais simples que já fiz, mas também o mais verdadeiro. Passei a andar com menos medo.
Voltei a frequentar o clube da terceira idade, a cantar nas festinhas da igreja, a caminhar com mais firmeza, porque cada passo agora era meu. Não emprestado, não monitorado, não concedido, era conquistado. E se me perguntassem hoje, dona Zuleide, a senhora se arrepende de ter contado pro Elias que ganhou na loteria?
Minha resposta seria simples. Me arrependo de ter acreditado que laço de sangue protege, mas não me arrependo de ter descoberto quem é quem antes de morrer. Os dias foram passando e cada vez mais a vida foi se tornando mais minha.
sem ruídos do passado, sem chantagens emocionais, sem olhares que julgavam minha existência como peso. Era impressionante como o silêncio da minha casa gritava liberdade. Mas apesar de todo esse equilíbrio conquistado, havia uma coisinha ali no fundo, como um nó que não desatava.
Uma lembrança insistente. Não era dor, era uma pendência da alma. A carta do Elias continuava na gaveta e toda vez que eu a abria para pegar linha ou retalho, ela tava lá dobradinha, como quem espera uma resposta, mesmo sabendo que talvez nunca venha.
Até que numa tarde nublada, chuvinha fina batendo no telhado, o cheiro do alecrm vindo do quintal, eu sentei à mesa com meu caderno e comecei a escrever sem roteiro, sem intenção. Só deixei sair. Escrevi tudo.
Minha dor, minha decepção, minha revolta, minha libertação. E quando terminei, no fim da página, escrevi uma frase curta: "E eu perdoo. " Fechei o caderno, respirei fundo e ali entendi que perdoar não é desculpar o imperdoável, é só se libertar de carregar o que o outro fez.
Não perdoei o Elias para aliviar a culpa dele. Perdoei para não deixar mais um erro dele pesar no meu coração. Para não dormir lembrando, para não acordar remoendo.
Para seguir leve. No dia seguinte fui até a papelaria. Comprei papel de carta novo dos que tem borda florida.
Sentei, peguei minha melhor caneta e escrevi: "Elias, recebi sua carta. Li com atenção. Senti que foi sincera.
Não te desculpo pelo que fez, mas te perdoo pelo que você se tornou e te desejo força para se reconstruir. Você não tem mais meu convívio, nem meu colo, mas hoje tem meu perdão. Porque carregar raiva pesa mais do que cicatriz.
Sua mãe. Zulei de dobrei o papel, coloquei no envelope e pedi à dout. Cíntia que entregasse, caso ela ainda mantivesse contato com o advogado do Elias.
Naquela noite, dormi como há muito tempo não dormia, sem peso, sem pressa, sem dor guardada. Porque às vezes a maior prova de força não é devolver o golpe, é se recusar a carregar o veneno que nos deram. Com o tempo, voltei a caminhar pelas ruas da cidade com ainda mais leveza.
Não era uma senhora qualquer, nem tampouco a milionária escondida. Era só Zuleide, a mulher que sobreviveu a tudo, até ao próprio sangue. Na feira começaram a me chamar de a que tem mãos de ouro.
Não era pelo dinheiro, claro, era pelos bordados, pelas palavras, pelo jeito de ouvir sem julgar. E isso para mim era riqueza. Continuei ajudando quando dava, sem lista, sem regras.
Uma cesta de alimentos paraa família do rapaz que perdeu o emprego, uma consulta odontológica pra mulher que vendia broa na calçada, uma bicicleta nova pro menino que ia todo dia a pé pra escola. Nada disso foi por caridade, foi por identificação, porque eu sei o que é ser ignorada e nunca mais vou deixar ninguém invisível na minha frente. Renato seguia firme do meu lado.
Ele não era namorado nem marido, era presença. E presença verdadeira vale mais do que qualquer aliança. Às vezes sentávamos lado a lado, sem trocar uma palavra por meia hora.
E mesmo assim saíamos daquela varanda com o coração mais leve. Era como se a gente se curasse em silêncio. Numa terça qualquer, recebi duas cartas que foram enviadas através de minha advogada.
Uma era da minha filha, Teresa. Palavras cuidadosas, um pedido de desculpas discreto e um recado que estava bem e que pensava muito em mim. E outra do Ronilson, mais curta, mais direta.
dizendo que sentia falta das minhas histórias e que, se eu quisesse, ele estava disposto a tentar um recomeço. A distância, respondi com simplicidade, sem fechar portas, mas também sem reabrir feridas. Hoje temos contato leve, mensagens esporádicas.
Um feliz aniversário, um como vai a saúde e às vezes uma lembrança do passado que vem com cheiro de infância. E tá bom assim. Porque o amor não precisa voltar a morar com a gente para existir.
Agora, quando olho pro espelho, vejo uma mulher diferente. Não mais aquela com medo de abrir a porta pro próprio filho. Não mais a que escondia dinheiro no armário de vassoura.
Nem a que chorava sozinha com um pedaço de bolo velho na mão. Hoje vejo uma mulher inteira com rugas. Sim, com saudades, claro, mas também com orgulho de ter vencido sem precisar pisar em ninguém.
E isso não tem loteria no mundo que pague. Cheguei até aqui sem precisar levantar a voz, sem bater na mesa, sem implorar que alguém me enxergasse. Minha luta foi no silêncio, na estratégia, na resistência que muita gente confunde com fraqueza.
Mas a verdade é que eu não me tornei forte, eu sempre fui. Só demoraram para notar. Ganhar na loteria foi sim um ponto de virada, mas não foi o dinheiro que me salvou.
O que me salvou foi a escolha de não virar igual a quem me machucou. Eu podia ter alimentado o ódio, podia ter sumido do mundo e deixado todo mundo morrer de dúvida. Podia ter lavado as mãos como muitos fizeram comigo, mas escolhi o oposto.
Fui fiel a mim mesma. Plantei gentileza mesmo quando só colhi desprezo. Devolvi empatia mesmo tendo sido ignorada.
Ofereci perdão mesmo para quem me deu veneno. Não por fraqueza, mas por liberdade. Hoje vivo sem segredos.
Todo mundo aqui me conhece. Azuleide dos bordados do portão azul, da frase curta e olhar profundo. Não sabem do prêmio, nem do passado.
E tá tudo bem, porque eu não sou o que vivi. Sou o que eu escolhi fazer com o que me fizeram. Algumas noites ainda sonho com meus filhos pequenos, com o Elias rindo, correndo atrás do irmão, tropeçando nas sandálias, me abraçando por trás da perna.
É uma memória boa, mas que aprendi a deixar onde ela pertence. No passado. A dor já não machuca mais.
Só me lembra do que superei. E a culpa? Essa eu devolvi para quem é de direito.
Se alguém ouvir essa história achando que é sobre sorte, engana-se. Essa história não é sobre um bilhete premiado, é sobre o que a gente faz quando a vida vira de cabeça para baixo. Sobre como se levantar quando até quem você gerou tenta te empurrar pro buraco.
E sobre como mesmo ferida você ainda pode escolher ser luz. Por isso, se você aí do outro lado se sente esquecida, ignorada, jogada de lado, entenda uma coisa, você ainda importa. Você ainda pode recomeçar e o seu valor não diminui porque os outros não conseguem enxergar.
Às vezes é preciso perder tudo, até os laços de sangue, para se reencontrar consigo mesma. E quando esse reencontro acontece, ah, a vida finalmente volta a caber dentro do peito. Cuidem-se bem, meu povo, e fé em Deus que tudo vai dar certo.
Até uma próxima oportunidade.