Meu nome é Moacir Batista, tenho 58 anos, sou de Arapoti, no Paraná, e vivo nessa estrada há mais de 35 anos. Desde os meus 23, quando peguei o primeiro caminhão emprestado do meu tio Ademar, soube que tinha encontrado meu lugar no mundo, não atrás de uma mesa, nem dentro de uma fábrica, mas cortando o Brasil de norte a sul, conhecendo cada buraco, cada curva, cada posto de gasolina com café ruim e coração bom. A estrada é como uma velha amiga para mim, às vezes generosa, outras vezes cruel. Já me deu momentos de paz absoluta com
aquele pôr do sol alaranjado pintando o céu de Goiás. E também já me trouxe pânico, como na vez que o freio falhou na serra do espigão, mas sempre, sempre me ensinou algo. Dizem que caminhoneiro é solitário, mas discordo. A gente faz amizade em todo canto. Tem o Zeca de Maringá, o Tonho de Uberlândia, o velho Januário, que só dirige à noite porque sofre de pele sensível. Figuras que compõem essa grande família da estrada. A gente se conhece nos postos, troca histórias, avisa sobre blitz batida, trecho com assalto, um cuidando do outro, cada um a sua
maneira. Minha Mercedes Branca, apelidada carinhosamente de Gertrudes, já carregou de tudo que você imaginar. Saca de arroz pro Nordeste durante a seca de 95, cimento pros prédios de Brasília, material escolar para vilarejos no Mato Grosso, onde nem asfalto tinha. Até mudança de uma família inteira que estava fugindo de agiotista, já carreguei com criança e tudo dormindo em cima dos móveis na carroceria. Casei com a Lourdes com 25 anos. Ela sempre soube que se casava com um homem que vivia mais fora do que dentro de casa. Mesmo assim, segurou a barra, criou nossos três filhos praticamente
sozinha, o Rodrigo, a Patrícia e o pequeno Mateus, que nem tão pequeno é mais, já tá com 28 anos, formado em engenharia. Quando perguntam como conseguimos, ela sempre responde: "É o preço de amar um homem que ama a estrada. Mulher sábia, minha Lourdes, a vida na boleia tem seus altos e baixos. tem a liberdade de ver o Brasil passar pela janela, de cantar alto com o rádio, sem ninguém para reclamar, de parar para comer aquela costela na brasa, em lajes, que só quem conhece sabe o quanto é boa. Mas tem o outro lado também, as
noites mal dormidas, a saudade que aperta o peito, as dores nas costas que nenhum remédio resolve, o medo constante de assalto. Todo caminhoneiro tem sua coleção de histórias. Algumas engraçadas dessas de contar em roda de amigos tomando uma cerveja. Outras assustadoras que a gente preferia esquecer. E algumas são tão importantes que mudam completamente o rumo da nossa vida, como a que vou contar agora. Foi numa segunda-feira de janeiro, daquelas que o calor castiga sem piedade. Eu tava na BR262, no trecho entre Uberaba e Arachá. Minas Gerais. O asfalto parecia que ia derreter debaixo dos pneus
da Gertrudes. O ar- condicionado estava quebrado há uma semana. Sempre é assim, né? Quebra justamente quando mais precisa. A carga era tranquila. Eletrodomésticos para uma rede de lojas em Juiz de Fora, geladeira, fogão, máquina de lavar, essas coisas. Tudo documentado, seguro pago, rastreador funcionando. Uma viagem de rotina dessas que a gente faz quase no automático, cantarolando com o rádio e pensando na vida. O plano era simples, seguir direto até Belo Horizonte, dormir no posto do Chico, que tem um chuveiro quente e uma janta boa, e no dia seguinte zarpar cedo para chegar em Juiz de
Fora antes do congestionamento da tarde. Nada de extraordinário, só mais um dia na vida do velho Moacir. Mas sabe como é, a vida gosta de pregar peça na gente justamente quando tá tudo planejadinho. Quando passei por um trecho mais afastado, daqueles com mata fechada dos dois lados e asfalto velho cheio de remendo, avistei uma figura na beira da estrada. Era uma mulher, não muito jovem, talvez uns 35 anos, cabelo castanho amarrado num rabo de cavalo, roupa simples, calça jeans, camiseta branca, tênis gasto. Carregava uma mochila média nas costas e acenava com o braço estendido pedindo
carona. Confesso que meu primeiro instinto foi passar direto. A estrada anda perigosa demais para ficar dando carona. Já ouvi cada história de armadilha, de assalto, de sequestro, mas o sol castigava forte. Não tinha sombra naquele trecho. E, pelo que eu sabia, o próximo posto ficava a uns 30 km. Calculei que ela já devia estar ali há um bom tempo pelo suor que ensopava sua camiseta. Foi aí que veio aquele sentimento. Sabe aquele negócio que a gente chama de coração apertado? Pois é. Pensei na minha Patrícia, minha filha do meio. E se fosse ela ali debaixo
daquele sol impiedoso, eu ia querer que algum motorista de bom coração parasse para ajudar. Reduzzi, pisei no freio e encostei a Gertrudes no acostamento, uns metros à frente da mulher. Vi pelo retrovisor ela vir correndo com um sorriso de alívio no rosto. Naquela hora me senti bem, fazendo uma boa ação, ajudando alguém necessitado. Mal sabia eu que aquela simples decisão, parar ou não parar, ia mudar completamente o rumo da minha vida e que o que aquela mulher me ofereceria em troca da carona quase destruiria tudo o que eu havia construído em quase quatro décadas de
estrada. Abaixei o vidro da janela e o ar quente de janeiro invadiu a cabine. "Tá indo para onde, moça?", perguntei enquanto observava melhor seu rosto. Olhos castanhos cansados, mais atentos. Pele morena, queimada de sol, um pequeno sinal acima do lábio superior. "Para perto de Caratinga, qualquer lugar já ajuda", ela respondeu com voz firme, sem aquele tom desesperado que muita gente tem quando pede carona. Tô indo para Juiz de Fora. Posso te deixar no trevo de Caratinga se servir. Ela abriu um sorriso aliviado. Serve demais. Obrigada mesmo. Destravei a porta do passageiro. Pode subir. Só me
desculpe a bagunça. A cabine é meu escritório, sala de jantar e quarto tudo junto. Ela jogou a mochila no chão da cabine e se acomodou no banco. De perto, notei que era mais jovem do que parecia à distância. talvez uns 30 anos, não mais que isso. Tinha mãos pequenas, mas com calos visíveis, mãos de quem trabalha duro. "Meu nome é Moacir", falei enquanto voltava para a estrada, checando os retrovisores por reflexo. "Renata", ela respondeu simplesmente, não ofereceu sobrenome. Liguei o rádio num volume baixo, um sertanejo antigo, daqueles que a criançada de hoje nem conhece, e
retomei a viagem. A Mercedes engoliu o asfalto com seu ronco familiar enquanto o mundo lá fora continuava assando sob o sol inclemente. Os primeiros quilômetros foram silenciosos. Renata parecia exausta. Tirou uma garrafinha d'água da mochila, bebeu alguns goles e depois fechou os olhos como quem tenta recuperar energias. Respeitei seu cansaço e mantive o silêncio focado na estrada. Era um trecho tranquilo da BR262. Poucas curvas, visibilidade boa, tráfego moderado. Dava para pensar na vida enquanto dirigia e eu pensava na carga. Eletrodomésticos são carga visada, valiosa e fácil de revender. Por isso mesmo, eu tinha evitado paradas
desnecessárias até dar esta carona. De repente, notei que ela tinha aberto os olhos e agora mexia num celular. A tela estava trincada, quase impossível de ler. Ela apertava os botões com insistência, mas o aparelho parecia não colaborar. "Droga", ela murmurou depois de várias tentativas frustradas. "Problema com o celular?", perguntei, quebrando o silêncio. "Pois é, caiu ontem e agora mal funciona. Precisava ligar para avisar que tô chegando." "Se quiser usar o meu,", ofereci, apontando para meu celular no suporte do painel. Ela balançou a cabeça. Não, obrigada. Não lembro o número de cabeça mesmo. Guardou o celular
quebrado no bolso da calça. Você sempre dá carona assim, seu Moacir. O seu me fez sentir mais velho do que sou. Dei uma risadinha. Hoje em dia, raramente, a estrada não é mais como antigamente. Como assim? Quando comecei há uns 35 anos, era comum dar carona. A gente ajudava estudante, trabalhador, gente precisando voltar para casa. Era quase uma obrigação moral. Agora, com tanta violência, a maioria dos motoristas nem para mais. E por que parou para mim? A pergunta era direta. Olhei de relance para ela antes de responder. Sinceramente, o sol tá uns 35º lá fora.
Não consegui te deixar naquele calor. Ela sorriu de leve. Bom, seja pelo motivo que for, agradeço. Já tinha esperado umas duas horas ali. A conversa fluiu mais naturalmente depois disso. Falei da minha família em Arapoti, dos meus três filhos, da Lourdes, minha esposa de 33 anos. Mostrei fotos no porta-luvas, Rodrigo com a esposa e meu netinho de 2 anos. Patrícia na formatura de fisioterapia, Mateus na frente de um prédio que ele ajudou a projetar. E você, Renata, tem família? Ela hesitou antes de responder. Tenho uma filha de 8 anos, mora com minha mãe em Caratinga.
Tô voltando para buscar ela agora. E onde você estava? Outro momento de hesitação, trabalhando em Uberlândia, fábrica de confecção, mas não deu certo. Agora vou tentar a sorte mais perto de casa. Havia algo no jeito dela que não soava completamente verdadeiro. Aquela história estava vagada demais. cheia de lacunas. Mas quem sou eu para julgar? Cada um tem seus segredos, suas lutas. E eu só precisava levar ela até o trevo de Caratinga, não virar seu confidente. Paramos num posto para abastecer e usar o banheiro. Ofereci para ela que aceitou timidamente. Enquanto comíamos sanduíches sentados numa mesinha
da lanchonete, percebi como ela observava tudo ao redor com atenção, os olhos sempre alertas, como quem procura ou teme algo. "Faz tempo que é caminhoneiro?", Ela perguntou, mudando de assunto. Praticamente minha vida toda adulta. Comecei com 23 anos no caminhão do meu tio. Hoje tenho meu próprio, graças a Deus, e gosta dessa vida. Dei uma mordida no sanduíche pensativo. Tem dias que sim, tem dias que não. É difícil ficar longe da família. Perdi aniversários, formaturas, momentos importantes, mas é o que sei fazer. E tem sua beleza também. Que tipo de beleza? A liberdade, o nascer
do sol em lugares diferentes, as pessoas que a gente conhece. Cada viagem é uma história. Ela olhou pela janela para os caminhões estacionados no pátio. Deve dar uma boa grana também, né? Ri com ironia, menos do que as pessoas imaginam. Tem muito gasto. Diesel, manutenção, pedágio, prazo apertado, que obriga a gente a correr mais que devia. Não é fácil, mas dá para viver com dignidade. Voltamos para a estrada. O calor tinha diminuído um pouco, mas ainda fazia a cabine do caminhão parecer uma estufa. Abri todas as janelas para criar uma corrente de ar enquanto lamentava
pela milésima vez o ar condicionado quebrado. O silêncio voltou a reinar por mais alguns quilômetros. Renata olhava fixamente para a estrada, como se estivesse calculando a distância até seu destino. De vez em quando tentava ligar o celular quebrado sem sucesso. Tínhamos acabado de passar por bom despacho, quando percebi uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, PRF, parada no acostamento. Instintivamente reduzi a velocidade e conferi o velocímetro. estava dentro do limite. Ao passarmos pela viatura, notei que Renata se encolheu ligeiramente no banco, virando o rosto para o lado oposto. Foi algo sutil, mas perceptível. Tudo bem? Perguntei
quando já estávamos a uma boa distância do carro policial. Tudo ela respondeu rápido demais. Só um pouco de dor de cabeça com esse calor. Ofereci analgésico que sempre carrego na bolsa de primeiros socorros. Ela recusou, dizendo que logo passaria. O clima dentro da cabine mudou depois daquele episódio. Uma tensão quase palpável se instalou. Renata parecia mais inquieta, olhando frequentemente para o espelho lateral, como se verificasse se estávamos sendo seguidos. Tentei manter a conversa casual, falando sobre o tempo, sobre a safra de café em Minas, sobre as condições da estrada. Ela respondia com monossílabus, claramente distraída,
com algo que ocupava sua mente. Foi só depois de uns 40 minutos rodando assim, quando já estávamos próximos a Ipatinga, que ela pareceu relaxar novamente. Guardou de vez o celular quebrado e se ajeitou no banco, como quem toma uma decisão importante. "O senhor já pensou em mudar de vida, seu Moacir?", Ela perguntou de repente, com uma voz diferente da que usara até então, mais firme, mais direta. A pergunta me pegou de surpresa. Como assim, moça? Tipo, ganhar uma grana grande de uma vez, sem violência, só usando o caminhão. Aquelas palavras caíram como pedra no estômago.
Imediatamente todos os alertas na minha cabeça começaram a soar. 35 anos de estrada me ensinaram a reconhecer quando algo não cheira bem e aquela conversa definitivamente tinha um cheiro estranho. Mantive a expressão neutra, fingindo não entender completamente. Ganhar dinheiro com o caminhão é o que eu faço todo dia, moça. Carrego, entrego, recebo o frete. Ela deu um sorriso de lado, como quem percebe a evasiva. Não é disso que estou falando e o senhor sabe. Fiquei em silêncio. O rádio tocava baixinho uma música da Roberta Miranda falando sobre solidão e estrada. Lá fora, o sol começava
a perder força, anunciando o fim da tarde. Renata quebrou o silêncio. Tem um carregamento. O senhor deixa perder e ganha 100.000. R$ 100.000? 100.000. O número ficou ecoando na minha cabeça enquanto eu olhava fixamente para ministrada. Mantive as mãos no volante, tentando não demonstrar como aquelas palavras tinham me afetado. "Não tô entendendo o que você tá falando, moça", respondi, fingindo confusão, embora meu coração já tivesse acelerado. Ela se virou no banco para me encarar melhor. O olhar agora era diferente, calculista, frio, profissional. Vamos deixar de rodeio, seu Moacir. O senhor tá levando eletrodomésticos pra Rede
Megalar em Juiz de Fora. Geladeiras, fogões, máquinas de lavar, tudo novo em folha dentro das caixas, mercadoria fácil de vender. Um calafrio subiu pela minha espinha. Como ela sabia exatamente o que eu estava transportando? Como você? Não importa como sei. Ela cortou. O que importa é que tenho compradores, gente séria, profissional, sem violência, sem arma, sem sangue. O senhor só precisa colaborar. Engoli em seco. A ideia de que aquela mulher aparentemente inofensiva pudesse ser parte de uma quadrilha especializada em roubo de cargas me deixou em alerta total. Olhei rapidamente pelo retrovisor, meio esperando ver algum
carro suspeito nos seguindo, nada além do tráfego normal. "E como seria essa colaboração?", perguntei, tentando ganhar tempo e entender melhor a situação. Ela sorriu como se tivesse conseguido abrir uma brecha. Simples. O senhor segue até o qu, onde tem um acesso de terra. Entra nele e vai encontrar um galpão. Lá, meus colegas descarregam tudo em uma hora, no máximo. O senhor recebe 50.000 na hora em dinheiro vivo. Depois segue viagem até uma pedreira abandonada perto de rio Pomba, onde simulamos um incêndio no caminhão. Nada grave, só o suficiente para justificar a perda da carga. O
senhor diz que foi assaltado, faz o BO e recebe os outros 50.000 depois que o seguro pagara a transportadora. A frieza com que ela explicava o plano me deixou estupefato. Era evidente que não era a primeira vez que faziam isso. Provavelmente tinham contatos dentro da transportadora, que passavam informações sobre as cargas e os motoristas. "E se eu disser não?", perguntei, mantendo o tom calmo, embora por dentro estivesse em pânico. O sorriso dela desapareceu. Aí eu desço no próximo posto, agradeço a carona e procuramos outro motorista mais colaborativo, sem ressentimentos. Havia algo nas entrelinhas que me
deixou desconfortável, como se a opção de simplesmente recusar e seguir meu caminho não fosse tão simples assim. Quem garantia que depois de me recusar eles não me seguiriam e tomariam a carga à força? Vou ser sincero com você, Renata, se é que esse é seu nome de verdade. Eu tenho 58 anos, tenho família, tenho neto, nunca me envolvi com nada ilegal. Por que eu começaria agora? Ela deu um suspiro, como quem já esperava essa reação inicial. Justamente por isso, seu Moassir. O senhor já deve estar quase se aposentando, não é? E quanto vai ganhar de
aposentadoria? Do 3.000 por mês mal dá para as contas básicas hoje em dia. Ela fez uma pausa calculada antes de continuar. Com 100.000, o senhor garante uma reserva. Pode fazer aquela reforma na casa que a dona Lourdes tanto quer. Pode ajudar seu filho Rodrigo a comprar a casa própria. Pode pagar um curso de especialização paraa Patrícia. Meu sangue gelou. Ela sabia os nomes da minha família. Isso não era coincidência nem sorte. Eles tinham me estudado, me escolhido a dedo. "Como sabe sobre minha família?", perguntei agora sem esconder a preocupação. Ela deu de ombros. Pesquisa básica.
Na era da internet, todo mundo deixa rastros. Seu Facebook é praticamente público, sabia? Dá para ver tudo. Fotos, comentários, datas importantes. As pessoas não têm noção do quanto expõe suas vidas. Fiquei em silêncio, processando aquela informação. Patrícia vivia insistindo para eu configurar melhor a privacidade das minhas redes sociais, mas eu sempre achava complicado demais e deixava para depois. Agora entendia o porquê da insistência dela. "Não estamos ameaçando sua família", Renata acrescentou como se lesse meus pensamentos. Só estou mostrando que sabemos que o senhor é um homem de família, um trabalhador. Justamente o perfil que procuramos.
Gente que precisa do dinheiro, mas que tem muito a perder se algo der errado. Gente que vai seguir o plano arrisca. O sol começava a se pôr no horizonte, tingindo o céu de laranja e vermelho. Normalmente eu acharia aquela visão bonita, mas naquele momento só conseguia pensar nas implicações daquela proposta. E se a polícia descobrir? Perguntei mais para ganhar tempo do que por realmente considerar a oferta. Não vai descobrir o plano é a prova de falhas. Já fizemos isso outras vezes. Ninguém foi pego. Os motoristas que colaboraram estão aí trabalhando normalmente, só que com a
vida um pouco mais folgada. Tentei imaginar quem seriam esses motoristas. talvez conhecesse alguns, talvez já tivesse dividido um café, uma história, uma risada com eles em algum posto de estrada. A ideia de que havia colegas participando desse esquema me deixou ainda mais desconfortável. Parece fácil demais", comentei. "E, o sistema é falho. As seguradoras pagam sem questionar muito porque sai mais barato que investigar a fundo. As transportadoras aumentam o valor do frete para absorver as perdas com roubo. No fim, quem paga é o consumidor final. O sistema todo está montado para que isso funcione, seu Moacir.
Nós só estamos aproveitando as brechas. Havia uma lógica perversa no que ela dizia, uma espécie de justificativa que tentava normalizar o crime, como se fosse apenas uma redistribuição de riqueza dentro de um sistema injusto. Era o tipo de argumento que poderia convencer alguém desesperado ou moralmente flexível. Olhei o relógio no painel. Eram quase 6 da tarde. Em duas horas eu deveria parar no posto do Chico para dormir, conforme meu planejamento original. Acontece que agora eu não sabia mais se poderia seguir esse plano. Não sabia se estaria sendo seguido, observado. "Quanto tempo tenho para decidir?", perguntei.
Ela consultou o próprio relógio de pulso. Até o trevo de Ipatinga. Depois disso, precisamos começar os preparativos. Se a resposta for sim, menos de 20 minutos. Então, 20 minutos para tomar uma decisão que poderia mudar completamente minha vida para melhor ou para muito, muito pior. Posso, posso pensar um pouco? Claro, ela disse, recostando-se no banco com uma tranquilidade impressionante. Fique à vontade. Só lembre-se, 100.000. dinheiro limpo, sem violência, sem complicação. Nessa hora, a cabeça deu um nó. Um turbilhão de pensamentos e emoções contraditórias começou a girar na minha mente. Por um lado, a tentação era
real e poderosa, R$ 100.000. Um dinheiro que eu jamais conseguiria juntar em anos de estrada, economizando trocados aqui e ali. Com esse valor, eu poderia realmente fazer uma diferença na vida da minha família. poderia ajudar a Lourdes a fazer aquela cirurgia no joelho que o SUS vivia adiando. Poderia dar entrada num apartamento para o Rodrigo, que vivia apertado com a família num aluguel caro. Poderia comprar um carro melhor para a Patrícia, que sofria com aquela lata velha que vive quebrando no meio do caminho. Poderia até guardar uma parte para a faculdade do meu netinho no
futuro, mas por outro lado, havia tudo o que eu construí ao longo da vida. Minha reputação de homem honesto, o respeito dos colegas de profissão, o orgulho nos olhos dos meus filhos quando falavam do pai caminhoneiro, que nunca jamais compactuou com o errado, mesmo nas horas mais difíceis. Lembrei de uma vez há muitos anos, quando peguei o Mateus, ainda menino, pegando algumas moedas do meu porta níquel sem pedir. Não era muito dinheiro, mas a lição que dei a ele foi dura. Filho, caráter não tem preço. Quando a gente vende a honestidade uma vez, nunca mais
consegue comprar de volta. E agora ali estava eu, considerando vender a minha por 100.000. O cartão de crédito estourado veio à mente, as prestações atrasadas do caminhão, o empréstimo que fiz para ajudar no tratamento da minha mãe antes dela falecer, as contas que se acumulavam todo mês, sempre maiores que o dinheiro disponível. Seria tão fácil dizer sim, tão tentadoramente fácil. Você não seria o primeiro nem o último, Renata comentou como se lesse meus pensamentos. É assim que o mundo funciona hoje. Todo mundo busca atalhos. Meu pai dizia que Atalho costuma ter espinho no caminho. Respondi
quase automaticamente. Ela riu. Seu pai era de outra época. As regras mudaram. Ficamos em silêncio por mais alguns quilômetros. Eu dirigia mecanicamente, como se meu corpo estivesse no automático enquanto minha mente travava uma batalha feroz. Pelo retrovisor, vi meu próprio rosto suado, tenso, envergonhado. Envergonhado não pelo que tinha feito, mas pelo que estava considerando fazer. Naquele momento, não reconheci o homem que me olhava de volta. A placa indicando o trevo de Ipatinga apareceu à distância. Meu tempo estava acabando. Precisava decidir. O trevo está chegando, Renata comentou casualmente, como quem fala sobre o tempo. Preciso da
sua resposta, seu Moassir. Reduzi a velocidade, sentindo o peso daquela decisão em cada fibra do meu corpo. Meus dedos apertaram o volante com tanta força que os nós ficaram brancos. Na minha cabeça, números dançavam como num baile macabro. R$ 100.000. A prestação do caminhão R3800 todo dia 15. O plano DESAL DA Lourdes R3800 todo dia 15. O plano de saúde da Lourdes R$3800 todo dia 15. O plano de Dda Lourdes R$980. A mensalidade da faculdade do Mateus que ainda ajudo a pagar. R$200. contas, boletos, necessidades. Uma vida inteira de aperto transformada em algarismos que nunca
fecham no fim do mês. Estou esperando, seu Moacir, ela insistiu agora com um tom ligeiramente impaciente. Um filme começou a passar na minha mente. Eu via a Lourdes com aquele sorriso franco que me conquistou há mais de três décadas, dizendo: "Moassir, a gente não tem muito, mas tem o que importa. Tenho honestidade. Via o Rodrigo Pequeno sentado no meu colo na cabine do primeiro caminhão, dizendo que queria ser igual ao pai quando crescesse. Via a Patrícia na formatura, agradecendo aos pais por terem ensinado valores que nenhuma universidade ensina. Via o Mateus me apresentando aos colegas
de engenharia. Esse é meu pai, o homem mais íntegro que conheço. Meu pai também apareceu nesse filme mental. Joaquim Batista, carpinteiro, homem simples que nunca teve muito, mas que me ensinou que um homem sem palavra é um homem sem valor. Moacassir, você pode perder tudo na vida, dinheiro, casa, até saúde. Mas se mantiver seu caráter intacto, nunca terá perdido o principal. Seu Moacir, a voz de Renata me trouxe de volta à realidade. Estamos quase no trevo. Preciso saber. Por um momento, me permitiar como seria dizer sim. Visualizei a cena. Entrar naquele desvio de terra, ver
homens descarregando meu caminhão, receber um pacote grosso de dinheiro, seguir para simular o roubo, voltar para casa com uma história falsa nos lábios e dinheiro sujo no bolso. Como eu olharia nos olhos da Lourdes depois? Como continuaria pregando honestidade para meus filhos e meu neto? como me encararia no espelho todas as manhãs, sabendo que traí tudo o que sempre defendi. E se desse errado? E se a polícia descobrisse? Eu, com 58 anos, terminando meus dias numa cela de prisão, envergonhando minha família, destruindo o legado que construí. Seu Moassir, não temos mais tempo. É sim ou
não? Olhei pelo retrovisor mais uma vez. Meu rosto envelhecido pelos anos de estrada me encarou de volta. Vi rugas de preocupação, marcas de sol, sinais do tempo, mas também vi os olhos, os mesmos olhos do jovem de 23 anos, que prometeu a si mesmo nunca desviar do caminho certo, por mais difícil que fosse. Naquele momento, algo se acendeu dentro de mim, uma clareza que eu não sentia há muito tempo, como se todas as dúvidas tivessem sido varridas por uma ventania inesperada. Sem falar nada, sinalizei e comecei a reduzir a velocidade. Renata sorriu, interpretando minha ação
como um sinal de concordância. Puxei o caminhão para o acostamento, cada vez mais devagar, até parar completamente. Desliguei o motor e me virei para ela. Desce agora. O sorriso dela congelou, transformando-se gradualmente em surpresa e depois em irritação. Como é que é? Você me ouviu? Desce do meu caminhão agora, seu Moacir. Acho que o senhor não entendeu a oportunidade que entendi perfeitamente. Cortei com uma firmeza que nem eu sabia que ainda tinha. Entendi que você quer que eu jogue fora 58 anos de vida honesta por R$ 100.000. Entendi que você pesquisou sobre minha família, invadiu
minha privacidade e agora tenta me transformar num criminoso. Ela começou a argumentar, mas ergui a mão, interrompendo-a. Não, acabou a conversa. Você tem dois minutos para descer do meu caminhão ou eu ligo agora para a Polícia Rodoviária Federal e conto tudo o que você me propôs. E acredite, ainda lembro o número da viatura que vimos mais cedo. Seus olhos se estreitaram. avaliando se eu estava blefando. Devo ter parecido convincente, porque depois de um momento tenso, ela pegou a mochila do chão. "O senhor está cometendo um erro", ela disse com a mão na maçaneta da porta.
"Vai se arrepender quando o banco levar seu caminhão por falta de pagamento, quando sua esposa precisar de tratamento médico e o senhor não tiver como pagar". Aquelas palavras atingiram pontos sensíveis, mas mantive a expressão firme. Pode ser, mas dormirei tranquilo, sabendo que não traí quem sou. Agora sai. Ela abriu a porta e desceu, batendo-a com força desnecessária. Antes de se afastar, inclinou-se na janela e disse: "O próximo motorista vai aceitar e vai ficar com os 100.000 que poderiam ser seus." Então, que Deus tem a pena dele", respondi ligando o motor, "Porque ele vai vender a
alma por muito pouco". Vi pelo retrovisor ela ficar parada no acostamento, cada vez menor, à medida que eu me afastava. Não aparentava preocupação em estar sozinha numa estrada àquela hora, o que só confirmava minha suspeita de que havia outros envolvidos por perto, provavelmente seguindo nosso caminhão à distância. Quando ela sumiu completamente da minha vista, soltei o ar que nem percebi que estava prendendo. Minhas mãos tremiam no volante. A adrenalina começava a baixar, deixando um cansaço profundo no lugar. Fiz a coisa certa", disse em voz alta para as paredes da cabine. "Fiz a coisa certa, mas
não vou mentir. Uma parte de mim sentia uma pontada de remorço, não por ter recusado a proposta criminosa, mas por pensar na minha família e nas dificuldades que continuariam enfrentando. O joelho da Lourdes, o aluguel do Rodrigo, o carro velho da Patrícia, problemas reais que aquele dinheiro poderia resolver. Para afastar esses pensamentos, liguei o rádio num volume mais alto que o habitual. Tocando em frente do Almir Satter, encheu a cabine. A letra sobre seguir adiante, aprendendo com as dores e alegrias da vida, parecia feita sob medida para aquele momento. Não parei no posto do Chico,
como havia planejado inicialmente. Depois daquele encontro, não me sentia seguro ficando tão perto do local onde deixei Renata. Segui mais longe até encontrar um posto maior, com mais movimento e seguranças. Só então me permiti parar para descansar. Estai num canto bem iluminado, perto de outros caminhões. Antes de deitar, verifiquei três vezes se todas as portas estavam trancadas. Coloquei minha velha espingarda cartucheira, herança do meu pai, que sempre carrego em viagens longas, mais próxima da cama improvisada. Mesmo com todo o cansaço daquele dia intenso, o sono demorou a vir. Fiquei olhando para o teto da cabine,
repassando cada momento, cada palavra trocada com Renata, questionando se havia interpretado algum sinal erroneamente, se poderia ter feito algo diferente. Quando finalmente adormeci, tive sonhos agitados. Sonhei com meu pai, me olhando com aprovação, com meus filhos, crescendo e se tornando pessoas dignas, com a Lourdes me recebendo de braços abertos, como sempre fazia quando eu voltava de viagem. Acordei antes do amanhecer, com o corpo dolorido e a mente ainda processando os eventos do dia anterior. Fiz minha higiene matinal no banheiro do posto, tomei um café reforçado para recuperar as energias e voltei para a estrada. Os
quilômetros foram passando enquanto o sol nascia, tingindo o céu de tons rosados e alaranjados. Aquela visão que normalmente me trazia paz agora vinha acompanhada de uma sensação de alerta constante. A cada curva, a cada entroncamento, eu esperava ver um carro suspeito, homens armados, alguma retaliação pelo meu não. Mas nada aconteceu. A manhã transcorreu tranquila, com o tráfego aumentando gradualmente à medida que nos aproximávamos das cidades maiores. Liguei para a empresa, como fazia todas as manhãs, para informar minha posição e horário estimado de chegada. A voz familiar do despachante me trouxe algum conforto, uma âncora de
normalidade num mar de incertezas. Tudo em ordem, Moassir. Algum problema na estrada? Ele perguntou, seguindo o protocolo de sempre. Hesitei por um momento. Deveria contar sobre Renata, sobre a proposta criminosa, sobre a possibilidade de haver uma quadrilha visando cargas da empresa? Moacir, tá me ouvindo? Tô sim, respondi saindo do devaneio. Tudo em ordem, só o ar condicionado que continua dando problema. Chego em Juiz de Fora no meio da tarde, conforme o planejado. Não sei exatamente porque não contei. Talvez por receio de não ser acreditado. Talvez por medo de parecer paranoico, ou talvez, no fundo, por
um sentimento confuso de que ao denunciar estaria traindo um código não escrito da estrada, mesmo quando esse código era distorcido por pessoas como Renata. A verdade é que me sentia sozinho com aquele segredo, sozinho com a tentação que enfrentei e venci, mas que deixou marcas invisíveis como uma febre que baixa, mas nos deixa debilitados. E foi nesse estado de espírito contraditório, orgulhoso por ter feito a escolha certa, mas preocupado com as possíveis consequências, que continuei minha jornada, sem saber que o dia me reservava ainda outra surpresa. O restante da viagem parecia transcorrer normalmente. Almocei num
restaurante de beira de estrada que costumava frequentar. Troquei algumas palavras com outros caminhoneiros e segui em direção a Juiz de Fora. A cada quilômetro que passava, a tensão do encontro com Renata parecia diminuir um pouco, como se a distância física pudesse apagar também aquela experiência perturbadora. Por volta das 2as da tarde, avistei a placa indicando que Juiz de Fora estava a apenas 40 km. Quase lá, pensei, sentindo um alívio antecipado. Em poucas horas estaria entregando a carga, cumprindo minha obrigação, como sempre fiz. Foi então que o inesperado aconteceu. Numa curva suave, avistei uma viatura da
Polícia Rodoviária Federal, sinalizando para que eu encostasse. O coração acelerou instantaneamente. Minha primeira reação foi olhar o velocímetro. estava dentro do limite. Verifiquei mentalmente se havia alguma infração que pudesse ter cometido. Nada me veio a mente. Sinalizei, reduzi a velocidade e encostei no acostamento amplo e bem pavimentado. A viatura parou logo atrás. Dois policiais desceram e se aproximaram do meu caminhão. Um deles, mais alto e de bigode grisalho, veio até minha janela. O outro, mais jovem circulou o veículo observando os pneus, a carga, os lacres. "Boa tarde, documento do veículo e sua habilitação, por favor",
pediu o policial mais velho, com voz neutra e profissional. Entreguei os documentos, tentando manter a calma. Estava tudo em ordem. Não havia motivo para preocupação. Ainda assim, não conseguia parar de pensar em Renata e sua proposta. Seria possível que ela tivesse feito alguma denúncia falsa contra mim como retaliação? Saindo de onde e indo para onde? Perguntou o policial enquanto examinava meus documentos. Saí de Uberlândia ontem, carregado com eletrodomésticos para a rede Megalar em Juiz de Fora. Respondi com a voz mais firme que consegui. Qual empresa? Transportes Horizonte de Curitiba. O policial assentiu devolvendo meus documentos.
Tudo em ordem com os papéis. Agora vamos precisar verificar a carga. Meu estômago deu um nó, embora não houvesse motivo para isso. A carga estava intacta, os lacres no lugar. Era uma fiscalização de rotina, nada mais. Claro, sem problema. Respondi descendo do caminhão. O policial mais jovem já havia puxado a escada portátil para subir na carroceria. Durante os próximos 20 minutos, eles verificaram tudo, conferindo as notas fiscais com a carga, checando os lacres de segurança, inspeccionando o compartimento de carga em busca de fundos falsos ou esconderijos. Fiquei ali parado no acostamento, observando o trabalho deles
e sentindo o sol da tarde castigar minha pele. Outros caminhões passavam, alguns motoristas reduzindo para ver o que estava acontecendo. Um reflexo natural da estrada, onde todos se preocupam com os colegas. Finalmente, os dois policiais pareceram satisfeitos com a inspeção. "Tudo certo, pode fechar", disse o mais velho para o colega, que começou a lacrar novamente a carroceria. Suspirei de alívio. Era só uma fiscalização normal, afinal. Nenhuma armação, nenhuma vingança de Renata. O policial mais velho se aproximou de mim com uma expressão que não consegui decifrar. Senr. Moacir, a carga está em perfeitas condições. Todos os
lacres intactos, tudo conforme as notas fiscais. Sim, como deve ser. Respondi com um leve sorriso. O senhor parece nervoso algum motivo especial? A pergunta me pegou desprevenido. Pensei em inventar alguma desculpa, mas algo me disse que a verdade, ou pelo menos parte dela, seria melhor. Tive um contratempo na estrada ontem. Dei carona para uma mulher que acabou se revelando problemática. Fiquei um pouco abalado com a situação. O policial me estudou por alguns segundos antes de dizer: "Foi por isso que o senhor estava tão tenso quando o abordamos?" Apenas a senti com a cabeça. Foi então
que ele disse algo que mudou tudo. Foi um teste. A moça era nossa agente. Como é que é? Minha voz saiu mais alta do que pretendia, quase um grito de espanto. A empresa para a qual o senhor trabalha vem sofrendo com desvios de carga há alguns meses. Eles contrataram uma empresa de segurança para fazer testes com os motoristas. A mulher que lhe ofereceu dinheiro trabalha para essa empresa. Minha mente tentava processar aquela informação absurda. Renata era uma agente contratada. Toda aquela proposta criminosa era apenas um teste para avaliar minha integridade. Isso, isso é legal? Consegui
perguntar ainda atordoado. O policial mais velho deu um leve sorriso. Não exatamente da forma como foi feito, não. Mas está se tornando uma prática comum. As transportadoras estão desesperadas com o aumento de roubo por cooperação, como chamamos quando o motorista está envolvido. E sim, fomos informados sobre a operação, por isso, estamos aqui para confirmar que a carga está intacta. Fiquei ali parado no acostamento, olhando para o policial, tentando absorver o que acabara de ouvir. Uma onda de emoções contraditórias me invadiu. Alívio por não haver realmente uma quadrilha me perseguindo, indignação por ter sido enganado e
testado sem meu consentimento, e um estranho sentimento de orgulho por ter passado no teste. "O senhor está bem?", perguntou o policial, notando meu silêncio prolongado. Honestamente, não sei respondi. Me sinto usado. O policial mais jovem, que tinha terminado de verificar a carga, se aproximou. Se serve de consolo, senr Moacir. O senhor foi um dos poucos que passou no teste. A maioria aceita a proposta. Aquela informação caiu como uma pedra no meu estômago. A maioria aceita. colegas de profissão, homens e mulheres com quem talvez já tivesse dividido histórias em algum posto de estrada, escolhendo o caminho
errado quando confrontados com a tentação. "Quantos já testaram?", perguntei. "Nesta operação específica, cerca de 20 motoristas", respondeu o mais velho. "Apenas três recusaram. O senhor é o terceiro. Três em 20. Apenas 15% resistiram. O número me entristeceu profundamente, não apenas pela estatística em si, mas pelo que ela revelava sobre o estado da nossa profissão, sobre as dificuldades que levavam bons profissionais a fazer escolhas ruins. "Posso seguir viagem agora?", perguntei, querendo encerrar aquela conversa que me deixava cada vez mais desconfortável. "Sim, claro. Seus documentos estão em ordem. A carga está intacta. Tenha uma boa viagem, senr.
Moacir", respondeu o policial. Voltei para a cabine do caminhão com passos pesados. Antes de dar a partida, respirei fundo várias vezes, tentando organizar meus pensamentos. A ideia de que fui manipulado, testado como um rato de laboratório, ainda me incomodava profundamente, mas ao mesmo tempo havia um sentimento de reafirmação. Eu tinha feito a escolha certa, mesmo quando achei que ninguém estava olhando. Liguei o motor e retomei a estrada. Os últimos quilômetros até Juiz de Fora foram percorridos num estado de espírito contemplativo. Pensei na minha carreira, nas mudanças da profissão ao longo das décadas, nas pressões crescentes
que enfrentávamos. Cheguei ao depósito da Megalar no horário previsto. A descarga ocorreu sem problemas, com os conferentes verificando item por item, como de prache. Assinei os recibos, guardei minha via e me preparei para voltar para casa, agora com o caminhão vazio. Estava prestes a sair quando fui abordado por um homem de terno, por volta dos 50 anos, com um distintivo da Transportes Horizonte no peito. "Senhor Moacir Batista?", ele perguntou. Estendendo a mão. Sou Nivaldo Rocha, gerente regional de segurança da empresa. Apertei sua mão com certa hesitação. Após os eventos do dia, eu estava naturalmente desconfiado.
O senhor tem um minuto. Gostaria de conversar em particular. Assente e o segui até uma pequena sala de reuniões dentro do complexo do depósito. Ele me ofereceu um café que aceitei. Depois de tudo, eu precisava de cafeína. Senr. Moacir, estou ciente do teste pelo qual o senhor passou na estrada. Ele começou depois que nos sentamos. Quero primeiro me desculpar pela forma como foi conduzido. Essa não foi a abordagem que aprovamos inicialmente. Que bom saber, respondi com um leve tom de ironia que não consegui conter. Ele sorriu compreensivo. Sua irritação é completamente justificada. Mas quero que
saiba que o teste, apesar de seus métodos questionáveis, revelou algo importante para nós. O senhor é um profissional de extrema confiança e integridade. Estou apenas fazendo meu trabalho, como sempre fiz, respondi sem muita emoção. E é exatamente por isso que estou aqui. Ele continuou. Senr. Moacir, nossa empresa vem enfrentando sérios problemas com desvios de carga. No último ano, perdemos mais de 2 milhões em mercadorias, na maioria dos casos com a colaboração dos próprios motoristas. Ele fez uma pausa, como se esperasse algum comentário meu, mas mantive-me em silêncio. Precisamos de pessoas como o senhor em posições
estratégicas. Por isso, estou autorizado a lhe oferecer uma promoção. Gostaríamos que o senhor assumisse a função de supervisor de rota. Aquilo me pegou completamente de surpresa. Supervisor de rota. Eu Exatamente. O cargo envolve gerenciar uma equipe de motoristas, definir rotas, acompanhar entregas e, principalmente, ajudar na seleção e treinamento de novos profissionais. Precisamos de alguém que possa passar adiante valores de integridade e profissionalismo, alguém como o senhor. Fiquei sem palavras por alguns instantes. Supervisor de rota era uma posição que muitos motoristas experientes sonhavam em alcançar. Significava menos tempo na estrada, um salário fixo melhor, benefícios mais
abrangentes. E o que aconteceria com o meu caminhão? Perguntei pensando na Gertrudes, minha fiel companheira de tantos anos. A empresa forneceria um veículo novo para o senhor utilizar em suas funções, um modelo do ano, com toda a manutenção coberta por nós. Quanto ao seu caminhão atual, o senhor poderia mantê-lo claro ou vendê-lo. Seria uma decisão pessoal. Nivaldo então abriu uma pasta e colocou alguns papéis sobre a mesa. Aqui está a proposta formal. Salário fixo de roitos, 500 rises, mais bonificações por desempenho da equipe, plano de saúde estendido para toda a sua família, fundo de previdência
privada complementar. E este vale. Ele me entregou um envelope de R$ 10.000 como reconhecimento pela sua integridade demonstrada no teste. Abriu o envelope com mãos ligeiramente trêmulas. Dentro havia realmente um cheque nominal de R$ 10.000. Isso é inesperado, comentei ainda processando a reviravolta dos acontecimentos. Entendo que seja uma decisão importante. O senhor não precisa responder agora. Leve a proposta para casa, converse com sua família. Pense com calma. Temos interesse genuíno em profissionais com seu perfil. Guardei o envelope com o cheque no bolso da camisa, sentindo seu peso simbólico contra meu peito. R$ 10.000 não eram
os 100.000 oferecidos por Renata, mas era dinheiro honesto, dinheiro que eu poderia explicar para minha família, olhando-os nos olhos sem vergonha. Nivaldo me observava com interesse, provavelmente tentando avaliar minha reação à proposta. "Posso perguntar uma coisa?", falei após um momento de reflexão. "Claro, fique à vontade. Essa tal de Renata, ela realmente trabalha para vocês?", Ele hesitou por um instante. Para uma empresa terceirizada de segurança corporativa. Sim, estamos reavaliando nossa parceria com eles justamente pelos métodos, digamos controversos. Ela sabia detalhes da minha família, comentei ainda incomodado com isso. Nomes, situações pessoais. Nivaldo balançou a cabeça visivelmente
desconfortável. Isso não estava no escopo aprovado da operação. Vou verificar pessoalmente essa violação de privacidade. O senhor tem minha palavra. Assenti, embora não estivesse completamente convencido. A sensação de invasão permanecia. E sobre a proposta? Continuei. Por que eu? Deve haver motoristas mais jovens, com mais estudo, melhor preparados para uma função administrativa. "Senhor Moassir", ele começou, inclinando-se ligeiramente em minha direção. "O que buscamos não se aprende em escola. Integridade, experiência real estrada, respeito dos colegas. O senhor tem 35 anos de profissão sem uma única mancha em sua ficha. É respeitado entre os colegas. conhece cada curva
e cada posto desse país e, principalmente, demonstrou que seus valores não estão à venda. Suas palavras, embora evidentemente parte de um discurso corporativo bem elaborado, tocaram algo dentro de mim. Talvez porque, depois de tantos anos dirigindo sozinho por estradas intermináveis, ser reconhecido não era algo comum. Vou pensar com carinho", respondi finalmente. "Preciso conversar com minha família. Naturalmente, aqui está meu cartão. Pode me ligar a qualquer hora para discutirmos os detalhes ou esclarecer qualquer dúvida." Saí daquela sala com sentimentos contraditórios. Por um lado, havia a tentação de aceitar imediatamente uma proposta que resolveria muitos dos meus
problemas financeiros. Por outro, havia a preocupação com a mudança. Depois de tantos anos na estrada, será que eu me adaptaria a um trabalho mais burocrático? E havia também uma pitada de desconfiança sobre toda aquela situação, sobre os métodos da empresa, sobre como facilmente eles haviam invadido minha privacidade. Subi na cabine da minha Mercedes e dei a partida. O motor roncou com aquela familiaridade reconfortante. Gertrudes, como carinhosamente chamava meu caminhão, parecia me perguntar: "E agora, Moacir? Vamos continuar juntos nessa estrada?" Iniciei o retorno para casa, para Arapoti, onde Lourdes me esperava. A estrada se estendia à
minha frente como um convite para reflexão. Diferentemente da ida, agora meu caminhão estava vazio, mais leve, assim como minha consciência. Durante as longas horas de viagem, minha mente vagou por inúmeras possibilidades. Imaginei como seria a vida como supervisor de rota. passar mais tempo em casa, ver o netinho crescer, estar presente em momentos importantes da família, não precisar mais dormir em cabines apertadas ou postos de estrada barulhentos, ter um salário fixo, previsível, sem as oscilações do frete. Mas também pensei no que perderia. A liberdade da estrada, o horizonte sempre renovado, as paisagens que mudavam a cada
curva, os encontros inesperados com colegas antigos em postos distantes, as histórias compartilhadas nas madrugadas insis, os amanheceres multicoloridos vistos de lugares onde poucos têm o privilégio de estar. Quando finalmente estacionei em frente à minha casa em Arapoti, já passava da meia-noite. As luzes estavam apagadas, exceto pela da Varanda, que Lourdes sempre deixava acesa quando eu estava na estrada. Era nosso código particular, um farol que me guiava de volta ao lar. Entrei silenciosamente, tentando não acordar ninguém, mas como sempre acontecia, Lourdes já estava sentada na poltrona da sala com um crochê no colo, fingindo que não
tinha passado horas esperando. "Chegou, velho?", ela perguntou com aquele sorriso que nem 33 anos de casamento tinham conseguido desgastar. "Cheguei, Lurdinha", respondi, abaixando-me para beijar sua testa. "Desculpe a hora. Você sabe que eu só durmo direito quando você está debaixo desse teto. Ela guardou o crochê e me olhou de cima a baixo. Tem algo diferente em você. Aconteceu alguma coisa na viagem? Lourdes sempre teve esse dom inexplicável de ler meus pensamentos, de perceber mudanças sutis que eu nem sabia que estavam visíveis. Em vez de responder diretamente, tirei o envelope do bolso e entreguei a ela.
"O que é isso?", perguntou, abrindo com curiosidade. Quando viu o cheque, seus olhos se arregalaram. 10.000? De onde veio isso, Moassir? É uma longa história. Suspirei, sentando-me ao seu lado. E tem mais. Durante a próxima hora, narrei toda a triperiência. O encontro com Renata, a proposta criminosa, minha recusa, a revelação de que tudo era um teste e, finalmente, a oferta de promoção. Lourdes ouviu tudo com atenção, sem me interromper. Quando terminei, ela ficou em silêncio por alguns instantes, seus olhos marejados. "Por que está chorando, mulher?", perguntei preocupado. "De orgulho, seu bobo." Ela respondeu, segurando minha
mão entre as suas. Orgulho de ter escolhido um homem que não vende sua integridade nem por 100.000. Senti um nó na garganta, mas e se eu tivesse aceitado? A gente poderia ter resolvido tanta coisa com esse dinheiro. Seu joelho, o aluguel do Rodrigo. Ela apertou minha mão com mais força. E você acha que eu ia querer um joelho novo comprado com dinheiro sujo? Ou que o Rodrigo ia aceitar um apartamento pago com desonestidade do pai que ele tanto admira? Não, Moassir, você fez a única escolha possível para o homem que você é. Aquelas palavras foram
como um bálsamo. Durante toda a viagem de volta, uma parte de mim tinha se perguntado se havia sido tolo em recusar tanto dinheiro. Se minha família, conhecendo nossas dificuldades financeiras, não teria preferido que eu aceitasse. E sobre a proposta de supervisor? Perguntei. O que você acha? Lourde sorriu pensativa. Isso é com você, velho. Sei quanto você ama a estrada. Não quero que abandone algo que faz parte da sua alma só por dinheiro ou por mim. Mas e se eu quiser mais tempo em casa com você, com o netinho, então será uma decisão de amor, não
de obrigação. Ela se levantou, puxando-me pela mão. Vamos dormir amanhã. Pensamos nisso com a cabeça descansada. Naquela noite dormi um sono pesado e sem sonhos. O sono dos justos, como diria meu pai. Pela manhã, acordei com o cheiro de café fresco e o som da família reunida na cozinha. Era sábado e, por um acaso feliz, todos os meus filhos estavam em casa. Quando entrei na cozinha, fui recebido pelo riso cristalino do meu netinho, correndo para abraçar as pernas do vovô caminhoneiro, como ele gostava de me chamar. Percebi que Lourdes já tinha compartilhado as novidades, pois
todos me olhavam com uma expressão especial. "O homem do momento", brincou Rodrigo, passando-me uma caneca de café. "Mamãe contou que agora temos um supervisor na família. Ainda não decidi, respondi pegando meu netinho no colo. Pai!", falou Patrícia com aquela seriedade que herdou da mãe. "Você precisa aceitar. É uma oportunidade única". Mateus, sempre mais calado e observador, apenas sorriu e disse: "Qualquer decisão que tomar estaremos com você, mas saiba que seu exemplo já ensinou mais do que qualquer promoção pode recompensar". Foi naquele momento, cercado pela minha família, que tive clareza sobre minha decisão. A estrada tinha
sido minha companheira por 35 anos. tinha me dado aventuras, histórias, amigos e o sustento para criar aquela família maravilhosa. Mas talvez fosse hora de trilhar um novo caminho, de construir um novo tipo de legado. Na segunda-feira, liguei para Nivaldo e aceitei a proposta. Duas semanas depois, estava em Curitiba para meu treinamento inicial. Três meses depois já coordenava uma equipe de 12 motoristas na região sul, compartilhando não apenas conhecimentos técnicos, mas principalmente valores que aprendi nas estradas da vida. A Gertrudes, bem, não consegui me desfazer dela. Nas horas vagas, ainda nos aventuramos juntos por estradas secundárias,
sem pressa, sem carga, apenas pelo prazer de sentir o vento entrando pela janela e a liberdade que só a estrada pode oferecer. E quanto a Renata e sua proposta tentadora, acabaram se transformando numa história que conto aos novos motoristas durante os treinamentos. uma história sobre escolhas, valores e o verdadeiro significado de riqueza. Porque no fim das contas, como meu pai sempre disse, caráter não tem preço. E quando vendemos nossa integridade, nunca conseguimos comprá-la de volta. Um ano se passou desde aquela tarde fatídica na BR262. A vida tomou rumos que eu jamais poderia prever enquanto dirigia
meu caminhão pelas estradas de Minas Gerais. Hoje, sentado na varanda da minha casa, vejo o sol se pr com cores que lembram os entardeceres que tanto admirei através do Para-brisa da Gertrudes. A diferença é que agora posso apreciar esse espetáculo diariamente, sem a pressão de quilômetros a percorrer ou horários a cumprir. A adaptação à nova rotina não foi fácil. Nos primeiros meses, como supervisor de rota, senti falta do ronco do motor, das paradas improvisadas em postos desconhecidos, da solidão contemplativa das madrugadas na estrada. Meu corpo, acostumado ao movimento constante, estranhava ficar sentado em reuniões ou
diante de um computador. Mas aos poucos descobri outras satisfações. Ver um motorista novato aplicar corretamente um procedimento que ensinei, receber mensagens de agradecimento de famílias que agora têm seus pais e maridos mais presentes em casa, graças aos ajustes nas escalas que implementei. poder visitar um filho doente no hospital sem o peso da carga atrasada ou do frete perdido. A Transportes Horizonte cumpriu tudo o que prometeu. O salário chegava pontualmente. O plano de saúde resolveu o problema do joelho da Lourdes. Ela fez a cirurgia há 4 meses e já está caminhando sem dor. E o fundo
de previdência me dá a segurança que nunca tive como autônomo. Com um cheque de 10.000 Mas algumas economias que tínhamos guardado, conseguimos dar entrada num pequeno apartamento para o Rodrigo e família. Não é luxuoso, mas é deles. Ver meu filho receber as chaves do próprio imóvel com lágrimas nos olhos foi uma das maiores recompensas que já recebi na vida. Nas minhas funções como supervisor, faço questão de conhecer cada motorista pessoalmente. Converso sobre suas famílias, seus sonhos, suas dificuldades. Tento ser o tipo de chefe que eu gostaria de ter tido. Compreensivo, mas firme, exigente, mas justo.
Acima de tudo, tento mostrar que valorizo não apenas sua produtividade, mas seu caráter. E quanto a Renata, nunca mais a vi. Soube por Nivaldo que a empresa terceirizada de segurança foi dispensada após nosso caso vir à tona. Os métodos antiéticos deles acabaram gerando mais problemas que soluções. Como eles haviam obtido informações privadas sobre minha família, continua sendo um mistério. Embora suspeite que a exposição excessiva nas redes sociais, como Renata mesma apontou, tenha sido a porta de entrada. Curioso como as coisas são. A proposta criminosa que ela me fez na tentativa de me testar acabou realmente
mudando minha vida financeira, só que pelo caminho oposto ao que ela sugeriu. Foi minha recusa que me trouxe até aqui, que abriu as portas para essa nova fase. O caso teve ainda outro desdobramento importante. A partir da minha experiência e de outros motoristas que passaram por situações semelhantes, a empresa implementou um programa mais abrangente de apoio aos profissionais. Melhorias nos benefícios, acompanhamento psicológico, assistência financeira em momentos de necessidade. Pequenas mudanças que espero possam reduzir a tentação que levou muitos bons motoristas a fazerem escolhas ruins. A Gertrudes está estacionada na garagem, limpa e bem cuidada. Ainda
a levo para passear nos fins de semana, principalmente quando o netinho vem nos visitar. Ele adora subir na cabine, fingir que está dirigindo, pedir para buzinar. Às vezes fazemos pequenas viagens até cidades vizinhas sem compromisso, apenas pelo prazer de sentir a estrada. Nessas horas, com um menino ao meu lado fazendo mil perguntas sobre o caminhão, sobre as estradas, sobre as aventuras do vovô, sinto que estou passando adiante não apenas histórias, mas valores. Quem sabe um dia ele também não se tornará caminhoneiro. Se isso acontecer, espero que encontre estradas mais seguras e justas do que as
que percorri. Lourdes diz que estou mais calmo agora, mais presente. O Mateus brinca que finalmente consegue me contar algo sem ser interrompido pelo som do meu celular, avisando sobre entregas ou atrasos. A Patrícia observa que as rugas de preocupação na minha testa diminuíram, embora as marcas de expressão, essas testemunhas silenciosas de uma vida na estrada continuem lá contando histórias para quem sabe ler. Semana passada algo curioso aconteceu. Estava num posto de combustível abastecendo meu carro particular quando um jovem caminhoneiro me reconheceu. Ele tinha participado de um dos meus treinamentos iniciais e fazia questão de me
dizer como aquelas orientações tinham sido importantes para ele. "O senhor lembra daquela história da proposta ilegal?", ele perguntou. "Claro que lembro. Foi o que mudou minha vida", respondi. "Pois então", ele continuou. Aconteceu algo parecido comigo mês passado. Um cara ofereceu uma grana boa para eu perder uns eletrônicos que estava transportando. Senti um aperto no peito. E você? Lembrei do senhor. Ele sorriu. Pensei o que o seu moir faria e recusei na hora. Depois denunciei para a empresa. Descobrimos que era uma quadrilha que já tinha levado três cargas do mesmo jeito. Confesso que meus olhos marejaram.
Ali estava a prova de que nossas escolhas reverberam muito além do que imaginamos, que nossos exemplos silenciosos podem falar mais alto que muitos discursos. As estradas do Brasil continuam lá, serpenteando por paisagens deslumbrantes, conectando pessoas e histórias. Hoje as percorro menos com as rodas da Gertrudes e mais com as memórias que construí ao longo de 35 anos. São estradas internas, mapeadas não por GPS, mas pelas experiências que moldaram quem sou. Às vezes me pergunto o que teria acontecido se eu tivesse aceitado aquela proposta de Renata. Mesmo sendo um teste. Certamente não estaria onde estou. Talvez
tivesse ganhado 100.000. Talvez tivesse sido desmascarado e perdido tudo. Nunca saberemos. O que sei é que naquela curva da BR262, quando uma mulher de olhos castanhos pediu carona, eu não estava apenas decidindo sobre parar ou não o caminhão. Estava, sem saber, escolhendo o rumo do restante da minha vida. Toda a jornada é feita de escolhas. Cada curva esconde uma decisão. Cada encruzilhada um destino possível. Na grande estrada da vida, o que importa não é a velocidade com que percorremos o caminho, nem mesmo o destino final, mas as escolhas que fazemos a cada quilômetro. Hoje, olhando
para trás, para aquela estrada já percorrida, sinto a paz de quem seguiu na direção certa, mesmo quando o mapa parecia confuso, que olhando para a frente, para o caminho que ainda tenho pela frente, sinto a confiança de quem aprendeu que nas curvas mais fechadas e nas subidas mais íngres, o caráter é o melhor combustível que podemos ter. A Lourdes acaba de me chamar para o jantar. O cheiro de comida caseira invade a varanda. Hoje os meninos vêm jantar conosco, como fazem quase toda semana agora que estou sempre por perto. Daqui a pouco a casa estará
cheia de vozes, risadas, histórias compartilhadas. É tempo de deixar o passado guardado nas lembranças e viver o presente que construí. É tempo de entender que cada escolha, cada decisão, cada não dito no momento certo me trouxe até aqui, até este lugar onde, finalmente, após tantos quilômetros rodados, encontrei o verdadeiro significado de chegar em casa. Levanto-me da cadeira de balanço e lanço um último olhar para a Gertrudes, estacionada na garagem, reluzente sob a luz dourada do entardecer. Ela parece sorrir com seus faróis, como quem diz. Valeu a pena, parceiro. Cada quilômetro, cada escolha, cada estrada. Se
essa história tocou o teu coração, se inscreve no canal e comenta aqui embaixo o que você faria no meu lugar. A tua opinião vale muito para mim e ajuda a estrada a seguir firme.