Meu nome é Vicente, tenho 58 anos e sou zelador do cemitério da boa esperança no interior de Minas Gerais. Não sei se é o nome que atrai ironia ou se é o tempo que mexe com a cabeça da gente. Mas eu sei o que vi e não tem explicação que sirva para apagar da minha memória o que aconteceu ali.
Era uma segunda-feira comum, fim de tarde. O sol já baixava por trás dos IPs secos e eu fazia minha última ronda antes de fechar o portão. andava com a chave na mão, olhando os túmulos, escutando o barulho do vento mexendo nos ciprestes.
Tudo silencioso, do jeito que costuma ser por ali. Foi quando ouvi uma risada. Primeiro pensei que fosse coisa da minha cabeça, uma lembrança talvez ou algum som vindo da rua, mas não era.
Era perto, uma risada de criança. Olhei em volta e não vi ninguém. Caminhei até o lado velho do cemitério, onde os túmulos são baixos, sem reboco, alguns rachados pelo tempo.
Foi lá que vi uma criança correndo de vestido claro, meio encardido. Devia ter uns seis ou 7 anos, cabelo escuro, preso num rabo de cavalo. Brincava sozinha, pulando de uma lápide para outra, como se estivesse jogando amarelinha.
Meu coração parou por um segundo. Não era normal. Criança naquele horário ali?
Nunca. Gritei: "Ei, menina, quem é você? Cadê seus pais?
" Ela parou, me olhou por uns dois segundos e correu para trás de um túmulo maior onde eu não conseguia ver. Corri atrás, mas quando cheguei lá não tinha ninguém. Olhei em volta, chamei de novo.
Nada. O silêncio tinha voltado como se nada tivesse acontecido. Voltei paraa portaria, ainda pensando naquilo.
Talvez fosse filha de algum visitante que se perdeu. Na manhã seguinte, fui perguntar paraa dona Yolanda, que enterrava flores pro marido todos os dias. Perguntei se ela tinha visto alguma criança por ali no fim da tarde anterior.
Deus me livre, seu Vicente. Aqui essa hora ela disse, já cruzando os braços. Não vi ninguém, não.
Só eu e o silêncio, como sempre. Fiz a mesma pergunta para outros visitantes nos dias seguintes. Todos disseram que não viram nada.
Um homem me disse até que se eu tivesse visto criança ali, devia rezar, porque nenhuma mãe em sã consciência ia deixar uma menina sozinha naquele lugar. Mas eu vi. Na semana seguinte, vi de novo.
Era o mesmo horário, o sol se escondendo, o vento soprando entre as árvores e lá estava ela. Pulando entre os túmulos. Parecia brincar com alguém invisível.
De vez em quando virava a cabeça e me olhava séria. Depois sorria e sumia atrás dos jazigos. Dessa vez peguei o celular e tentei filmar, mas quando apontei a câmera, a tela ficou preta, como se algo travasse o aparelho.
Quando baixei, a menina já não estava mais lá. Naquela noite não dormi. E uma pergunta começou a me perseguir.
De onde vem essa criança? No terceiro dia, fui até a administração, peguei o velho livro de registros de sepultamentos, fiquei ali foliando nomes e datas, como quem procura uma agulha no palheiro. Até que na página de 1947, um nome me gelou o sangue.
Elisa Ferreira de Andrade, 7 anos, falecida em circunstâncias não esclarecidas. Enterro realizado no setor 3, quadra D. O mesmo lugar onde a menina corria.
Não consegui mais respirar direito. A mão tremia. O coração parecia querer sair do peito, o rosto da criança, o cabelo, a roupa.
Era ela. Era aquela menina. Enterrada há mais de 70 anos.
Depois que vi o nome da menina no livro de registros, senti um peso nas costas que não saía mais. Passei a evitar a quadra D cemitério, mesmo sendo minha obrigação cuidar de tudo. Aquela parte era mais velha, onde os túmulos já quase se confundem com a terra e o mato cresce sem pedir licença.
Mas não teve jeito. Na quarta-feira, precisei ir até lá. Um jaigo antigo tinha afundado um pouco por causa da chuva e o administrador pediu para verificar se precisava reforço na estrutura.
Peguei minhas ferramentas e fui com o coração apertado. O vento parecia diferente naquele dia, um sopro mais frio, como se alguém estivesse assoprando bem na nuca. As árvores faziam um ruído estranho, como sussurros abafados.
E então ouvi de novo. Vicente, parecia um chamado, uma voz fina, quase um sussurro, mas muito clara. Parei, olhei em volta e de novo, Vicente.
A voz vinha de trás de um túmulo grande, de pedra escura. Caminhei devagar, com a mão suada, apertando o cabo da pá. Cheguei a pensar que podia ser alguém pregando peça, mas ali ninguém brincava, ninguém entrava sem ser visto.
"Quem tá aí? ", perguntei, tentando manter a firmeza. Silêncio.
Dei a volta no túmulo. Nada. nem pegadas, nem vento, nem bicho, nada.
Mas então, no chão de terra batida, entre folhas secas e pequenas pedras, vi algo que me fez perder o fôlego, meu nome, escrito com terra, letras tortas, como se fossem desenhadas por dedos pequenos, Vicente, bem diante da lápide de número 312, uma das mais antigas. Me aproximei com cuidado. Toquei as letras.
Estavam úmidas. Tinha sido feito há pouco tempo. Não dava para negar.
Voltei correndo paraa portaria, suando frio, com os olhos arregalados. Tranquei a porta, encostei a pá na parede e fiquei ali sentado na cadeira de madeira, tentando entender. "Foi criança, pensei.
Alguma criança entrou, me viu outro dia, brincou de escrever meu nome. Pode ser isso. Mas quem escreveria o nome de um zelador e por quê?
À noite em casa, sonhei com ela. Estava em pé diante do portão do cemitério me chamando. O vestido sujo, os olhos escuros e uma expressão vazia, sem alegria nenhuma.
Só me olhava sem piscar, como se estivesse esperando por alguma coisa, como se soubesse algo que eu não sabia. Acordei suando com o barulho de passos correndo no telhado. Na manhã seguinte, encontrei marcas de pés pequenos na calçada da entrada do cemitério.
Pegadas curtas, finas, como de uma criança descalça. Começavam no portão e iam até o centro da quadra D. Depois desapareciam.
Fui falar com seu Gerváio, o coveiro antigo que trabalhou ali por mais de 30 anos e agora só aparecia de vez em quando para bater papo. "Você já ouviu falar da menina Elisa? ", perguntei.
Ele abaixou o olhar na mesma hora, ficou em silêncio, depois respondeu: "Já. Na época que eu entrei, os mais velhos já contavam dela. Diziam que ela morreu de uma febre forte, mas a mãe dela falava que a menina conversava com alguém invisível antes de adoecer, que ela ficava no quintal falando sozinha.
Depois sumiu um dia inteiro. Encontraram só no fim da tarde, caída, gelada, com os olhos abertos. E enterraram aqui, foi?
Mas o caixão sumiu um mês depois. tiveram que refazer o túmulo. Ninguém sabe o que houve e a mãe dela se matou um ano depois.
Fiquei paralisado, a mesma quadra, o mesmo nome, a mesma presença e agora meu nome escrito na terra. No dia seguinte decidi abrir o túmulo 312. E foi ali que eu me arrependi.
Mas isso eu te conto no próximo episódio. A decisão de abrir o túmulo 312 não foi fácil. Não se mexe em morto à toa, ainda mais em cemitério velho, onde tudo tem cheiro de promessa quebrada e segredo enterrado.
Mas aquilo já não era só uma curiosidade, era um chamado, uma presença que me cercava por todos os lados. Falei com o administrador. Inventei uma desculpa.
Disse que a estrutura da sepultura estava afundando, que podia causar acidente. Ele confiava em mim. Autorizou sem fazer mais perguntas.
Na sexta-feira, às 10 da manhã, com o sol a pino e o suor escorrendo antes mesmo de tocar na pá, comecei a escavar. O túmulo era de alvenaria simples, antigo, com as laterais rachadas. A terra ali era mais dura, como se estivesse protegida por alguma coisa invisível.
Conforme cavava, comecei a sentir um cheiro esquisito. Não era o comum dos cemitérios. Era algo doce e podre ao mesmo tempo, como flor passada misturada com carne estragada.
Depois de duas horas, bati com a pá em madeira. O caixão antigo de madeira escura com marcas de cupim e o nome Elisa F. Andrade, gravado numa plaquinha enferrujada.
Chamei dois ajudantes. Não falei o motivo, só pedi ajuda para levantar a tampa. Quando abrimos, o silêncio ficou pesado.
Os três ficamos olhando sem entender. O caixão estava vazio. Nada, nenhum osso, nenhum pedaço de pano, nenhum sinal de decomposição, apenas terra solta, misturada com poeira, como se nunca tivesse sido usado.
Um dos ajudantes, o Jorge, olhou para mim pálido. Isso tá errado, seu Vicente. Isso aqui, isso aqui é coisa de defunto que não descansou.
Mandei fechar tudo, reforcei a base, assentei a pedra de novo e fui embora. Naquela noite, a menina apareceu de novo, não cemitério, dentro da minha casa. estava no canto da sala, parada, olhando para mim, descalça, o vestido sujo e os olhos sem vida, mas fixos.
Me acompanhando? Tentei acender a luz, nada. O interruptor não funcionava.
Peguei o celular, a tela piscava e travava. A casa parecia mergulhada num silêncio sufocante. E então ela falou: "Por que você mexeu?
" A voz não era de criança, era mais grave, arrastada, como se viesse de dentro de um poço fundo um eco distorcido que cortava o ar. Não consegui responder. Só caí de joelhos, com o corpo gelado, o coração disparado e a boca seca.
Ela deu um passo à frente, depois outro e mais um até ficar bem na minha frente. Então do nada sumiu como se nunca tivesse estado ali. A luz voltou, o celular voltou a funcionar, mas meu corpo ainda tremia.
Na manhã seguinte, minha porta estava aberta e no chão da cozinha havia pegadas pequenas de terra. iam da entrada até o meu quarto e paravam diante da minha cama. Passei o dia em silêncio, pensando em tudo.
A criança que ninguém via, o nome escrito na terra, o caixão vazio, a aparição na minha sala. A coisa toda não era uma brincadeira, não era assombração comum, era algo preso, algo que não foi enterrado direito. Mas por quê?
O que Elisa queria? Por que eu? Foi só no domingo que a resposta começou a se desenhar e veio da única pessoa viva que ainda podia saber a verdade, a irmã da mãe de Elisa, que segundo o livro de registros ainda morava no povoado, mas eu não estava preparado pro que ela me contou.
Domingo de manhã, o sol nem tinha saído direito quando peguei a ficha da Elisa no livro de registros e fui atrás do último nome citado, Ana Ferreira de Andrade, irmã da mãe dela. Endereço simples, no bairro do Alto, numa casinha antiga com varanda de cimento e portão de ferro rangendo. Bate palmas, demorou.
Quando a porta abriu, era uma mulher miúda, pele enrugada, cabelo todo branco, preso num coque e olhos claros que pareciam ter visto coisa demais. Usava um vestido florido, encardido pelo tempo. A senhora é dona Ana?
Ela olhou nos meus olhos. Parecia que já sabia. Sou sim.
E o senhor veio por causa da Elisa. Não respondi de imediato. Engoli seco.
Vim, sim. Tô cuidando do cemitério. Tenho visto coisas.
E o nome dela apareceu num túmulo, mas o caixão tá vazio. Ela respirou fundo como quem carrega o peso de um passado que nunca morreu. Então chegou a hora, murmurou.
Senta ali, moço. Vou lhe contar. Sentei na cadeira de palha do alpendre e dona Ana começou a falar.
A Elisa era uma menina diferente desde novinha. Ficava parada por horas, olhando pro nada. Não falava com outras crianças, mas ria sozinha, sabe?
Como se tivesse alguém do lado dela. A mãe achava que era só imaginação. Eu eu nunca achei.
Fez uma pausa e cruzou os braços. Teve um dia, ela sumiu. Foi no fim da tarde.
Quando encontraram, já era noite. Estava deitada no meio do mato, gelada, os olhos abertos, mas viva. Só que nunca mais falou.
só chorava e escrevia no chão com os dedos. Desenhava uns símbolos estranhos. Ficou assim três dias depois morreu.
E eu enterro? Perguntei. Ela franziu a testa.
Foi esquisito. O corpo começou a cheirar forte demais em menos de dois dias. Tiveram que enterrar as pressas.
Mas teve uma coisa que eu nunca contei para ninguém. Se inclinou pra frente, baixando a voz. Na última noite, antes dela morrer, houvi um barulho vindo do quarto.
Fui ver. A menina estava sentada na cama, os olhos totalmente pretos, sem brilho, sem branco, sem alma, e disse para mim: "Ele vai me levar, mas vou voltar, porque ele não me enterrou de verdade. Aquilo me gelou o sangue.
Quem era ele? ", perguntei. Ela engoliu seco.
Não sei, mas a mãe dela, antes de se enforcar, dizia que Elisa tinha sido marcada, que tinha sido entregue por engano, que o que levou ela queria outra pessoa. Outra pessoa? Alguém com o mesmo nome, uma troca, um erro.
Fiquei em silêncio. Dona Ana, a senhora sabe quem era o outro nome? Ela me olhou fundo e respondeu: "Vicente.
" O nome era Vicente. Era para ser você. Senti o mundo girar.
Levantei da cadeira como se levasse um choque. As peças começaram a se encaixar de forma doentia. Meu nome escrito na terra, os sussurros no escuro, as pegadas na minha casa.
Não era só assombração, era uma dívida antiga, um erro que envolvia meu nome. Voltei pro cemitério transtornado. Não dormi aquela noite.
Fiquei sentado no escritório, ouvindo os barulhos lá fora, como passos leves na grama, corridas curtas entre os túmulos. Ela estava ali me esperando. E então, às 3:33 da madrugada, ouvi a maçaneta da porta girar sozinha.
A chave ainda estava no trinco, mas ninguém a tocava. A porta se abriu devagar e no breu da entrada vi ela, Elisa, vestido sujo, os olhos escuros e um sorriso torto que parecia mais dor do que alegria. Ela esticou a mão para mim e disse só uma coisa: "Agora é a sua vez, Vicente.
" E foi assim que eu entendi o que me esperava. Mas o que aconteceu naquela última noite? Você vai descobrir no último episódio.
Aquela noite foi a última vez que eu dormi no cemitério. Depois que a menina apareceu na porta, com aquele sorriso torto e os olhos escuros feito noite sem lua, meu corpo travou. Tentei levantar, mas as pernas não obedeciam.
O ar ficou pesado. Era como respirar dentro de um caixão. Ela entrou devagar, sem som nos passos, como se não tocasse o chão.
Foi se aproximando, olhando direto para mim. E a cada passo que dava, a sala parecia encolher. A luz oscilava, o rádio desligou sozinho.
Até o relógio de parede parou. Agora é sua vez, Vicente. Ela repetiu.
Senti uma dor no peito, como se algo estivesse sendo puxado de dentro. Comecei a suar frio. Tentei falar, rezar, gritar.
Nada saía, só o silêncio. Aquele silêncio podre, o mesmo cheiro do caixão vazio. Aquilo não era só um espírito, era uma força viva, uma presença que nunca foi embora.
E então ela desapareceu, mas deixou algo para trás, uma marca no meu braço, três arranhões fundos que ardiam como brasa e que sangravam devagar feito o tempo. Passei os dias seguintes sem sair de casa. Tranquei portas e janelas, joguei sal nos cantos, fiz oração que ouvi de velho macumbeiro, acendi vela, pedi ajuda para padre e para pastor, mas nada mudava.
A menina aparecia toda a noite. Chapos askers vezes sentada na beira da cama, outras vezes no corredor, no espelho do banheiro ou só correndo pelos cômodos sem fazer barulho. O tempo passava diferente e o sono, o sono cheio de pesadelo.
Até que eu sonhei com o enterro dela. Vi tudo como se estivesse lá. Um caixão pequeno sendo carregado às pressas, chuva caindo fina, o padre rezando com medo e um grupo de gente olhando de longe.
Mas algo tava errado. No sonho, eu vi a mãe dela, dona Teresa, gritando: "O não é ela, esse corpo não é da minha filha. " E então, de dentro do caixão, os olhos abriram.
Acordei gritando e naquele instante entendi tudo. Elisa nunca foi enterrada, ou pelo menos não do jeito certo, o que estava no caixão. Talvez nunca fosse ela, talvez fosse o outro, a presença que levou ela por engano.
E agora, depois de tantos anos, veio cobrar. A dívida não era dela, era minha. Passei o dia inteiro no cemitério sozinho, andando entre os túmulos, escutando o vento.
Quando cheguei no túmulo 312, senti um arrepio que me travou. A pedra tinha rachado. O nome estava mais escuro, como se tivesse sido riscado com carvão fresco.
Me ajoelhei, encostei a mão no chão. Elisa, se ainda tem jeito, me mostra. E então, como num sussurro arrastado, ouvi uma voz vinda debaixo.
Volta onde começou, antes da troca. O único lugar antes da troca era o matagau, onde encontraram ela viva antes de morrer. Voltei lá à noite com uma lanterna e a coragem que já não era minha.
Andei no meio do mato sozinho e no ponto onde a encontraram, o ar mudou. Tudo ficou quieto. A lanterna falhou e um vulto apareceu na beira das árvores, baixo, de vestido sujo, com o rosto coberto.
Poré de sombra. Me leva no lugar certo, disse ela. Só isso.
Eu apenas disse sim. Desenterrei um novo túmulo ali mesmo, com as mãos, com o peito aberto de medo e o coração querendo parar. Cavei até o braço sangrar e quando o buraco ficou fundo, senti um alívio, como se alguém tivesse respirado pela primeira vez.
Voltei pro cemitério e desde aquela noite ela nunca mais apareceu. O túmulo 13:1 segue lá. Mas eu lacrei com cimento grosso e deixei uma flor branca em cima sem nome.
O nome dela agora tá enterrado onde devia estar. Mas às vezes, só às vezes quando o sol vai embora e as sombras crescem entre os túmulos, ainda dá para ouvir o riso de uma criança brincando de esconde esconde com a morte. Fim.