A representação dos indígenas na literatura brasileira (#29)

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Admirável Mundo Livro
Um panorama histórico de como os habitantes originais foram retratados nas letras do Brasil, do agor...
Video Transcript:
O primeiro, literalmente o primeiro texto escrito  em território brasileiro já menciona os povos indígenas. Portanto, é um fenômeno pensar o quanto  uma mesma comunidade pode ser ao mesmo tempo tão vista e mencionada e tão simultaneamente ignorada  ao longo de 500 anos. (Música de abertura) Sejam bem-vindos, leitores de todo o universo.
Eu  sou Carlos André Moreira, este é o seu Admirável Mundo Livro, e hoje nós vamos aproveitar que  é dia 19 de Abril para realizar uma pequena reflexão aqui sobre a relação turbulenta  das Letras brasileiras com os habitantes originais do nosso território, e o quanto o olhar  lançado às comunidades indígenas como personagens na literatura nacional e muitas vezes embaçado e  pouco profundo, refletindo uma imagem que não tem nada a ver com a realidade de fato das populações  indígenas. O índio é um personagem nas letras brasileiras desde literalmente o primeiro texto  de que se tem notícia escrito neste território, a carta de Pero Vaz de Caminha enviada em 1500  para dar notícia ao rei português Dom Manuel do achamento destas Terras de Santa Cruz. Claro,  como costuma acontecer, escrito por um navegador europeu e direcionado a um outro europeu, o  rei de Portugal, esse documento pesa muito a mão na ideia do índio como uma espécie de  figura exótica, entre o depravado e edênico, que foi encontrado nestas terras até então  desconhecidas pelos europeus.
Caminha lança a esses desconhecidos um olhar que é ao mesmo tempo  fascinado e de alguma reprovação Ele dá muita atenção, por exemplo, ao corpo indígena nu exposto  com liberalidade; fala que os índios têm corpos rijos, firmes, que são bem feitos de corpo e que  não cobrem as suas vergonhas. Caminha encerra sua narrativa sobre o que viu e sobre o comportamento  dos índios com uma espécie de duplicidade algo desonesta que vai marcar o contato dos brancos  com os habitantes originais ao longo de toda a história. Ele mesmo fala que os habitantes desta  terra são de uma inocência inacreditável mas termina elencando avidamente todos os recursos  naturais à disposição naquela nova terra que os portugueses estão reclamando para si e dizendo  que a grande vantagem da colonização daquele espaço será salvar em Cristo as almas dessa  pobre gente.
Esse misto declarado de um olhar interessado em "salvar" as almas dos indígenas  ao mesmo tempo em que graciosamente explora os recursos naturais do território vai ser a marca de  muitas das obras escritas por viajantes europeus nos primeiros séculos da história brasileira. O  Padre Manoel da Nóbrega, por exemplo, um jesuíta, escreve entre os anos 1556 e 1557, enquanto está  residindo no território da Bahia, o "Diálogo sobre a conversão dos gentios", um texto escrito em  forma de diálogo entre dois frades que discutem se é possível converter os indígenas à fé cristã  e, sendo possível, qual a melhor abordagem para que essa conversão seja feita. Embora esse  texto tenha se tornado tão popular que ajudou inclusive a estabelecer os parâmetros de atuação  dos Jesuítas que vieram ao Brasil para tentar esse tipo de conversão, ele também não deixa de ser um  olhar muito agressivo com relação aos habitantes indígenas, comentando que eles são rudes, brutais  e que não têm outras preocupações na vida a não ser comer, beber e matar em guerras.
Vinte  anos depois, em 1576 Pero de Magalhães Gândavo, amigo e interlocutor de Camões, vai escrever  o seu "História da província de Santa Cruz", que na verdade é a compilação de dois tratados  que ele já havia publicado a respeito da paisagem tanto humana quanto geográfica do Continente de  Santa Cruz. É nessa série de observações sobre a Terra Brasileira que aparece com muita força  aquele estereótipo ofensivo do índio preguiçoso impróprio para o trabalho que vai inclusive ser  imposto como verdade na educação do Brasil pelos próximos quatro séculos. Em seu texto, Gândavo  qualifica os habitantes originais do Brasil como desonestos, agressivos, desagradecidos. 
Repetindo a ideia feita de Manoel da Nóbrega, argumenta que eles não têm outras preocupações  que não comer, beber e matar gente – e que são ao mesmo tempo dados a sensualidade. Como lembra  o crítico Alcir Pécora em um texto publicado em 2019 numa edição da revista Estudos  Avançados, mesmo a figura mais, digamos, benevolente e adepta a reconhecer os direitos dos  índios de um Padre António Vieira, por exemplo, está atuando aí no âmbito de uma discussão que  se dá dentro do cristianismo e que Pécora define como a Segunda Escolástica da teologia cristã, a  respeito de como vai se processar a incorporação dos habitantes indígenas ao Cristianismo. Esse  pensamento parte da ideia de que há um direito natural de que os missionários, sejam eles  Jesuítas ou de outras ordens do cristianismo, venham pregar a fé cristã entre os índios, e que  aqueles índios que se recusarem a ouvir a mensagem ou que de alguma forma atrapalhem o trabalho dos  Missionários estão pedindo por uma guerra.
Vem a ser esse, portanto, o enquadramento de boa parte  da visão colonial a respeito do indígena: uma figura ao mesmo tempo exótica e incompreensível,  que vive numa espécie de ignorância bárbara e que, portanto, deve ser catequizada e trazida para  a população crista mesmo que na base da força, ou deve ser eliminada se a sua recusa for  definitiva. Esse tipo de mentalidade só vai mudar de figura depois que o Brasil se separa e se torna  Independente de Portugal, e a intelectualidade do nascente país precisa se voltar para o passado do  Brasil na busca de algum mito fundador que garanta uma espécie de identidade exclusivamente  brasileira, separada dos Portugueses, e que providencie uma espécie de molde para a  construção de um país. É por isso que, na segunda metade do século XIX, há a explosão da chamada  literatura indianista no Brasil, representada por livros como "Iracema", "O Guarani!
" e  "Ubirajara", de José de Alencar, "I-Juca Pirama" de Gonçalves Dias ou "A Confederação  dos Tamoios", de Gonçalves de Magalhães. O fato de que a maioria dessas histórias situa o índio  em alguma espécie de momento mítico do passado, sem relação com o presente no qual as obras  estão sendo escritas, também acaba tendo um efeito colateral danoso, uma vez que aprofunda um  sentimento de invisibilidade com relação ao índio: o índio já foi o nosso antepassado glorioso, não  necessariamente ele existe no nosso presente. Embora tivessem intenções declaradamente muito  diferentes, não deixa de ser um pouco isso o que fazem também os autores do modernismo paulista da  década de 1920, no momento em que se apropriam de elementos da cultura indígena para demarcar a  diferença do seu movimento de modernização da literatura nacional dos parâmetros antigos  pautados pelo gosto europeu.
O Manifesto de Oswald de Andrade que demarca boa parte das  intenções estéticas e políticas do grupo é um manifesto "antropofágico" e mesmo a principal obra  desse ciclo, o "Macunaíma", de Mário de Andrade, parte de uma ideia inegavelmente bem-intencionada  mas que não deixa de significar algo meio sinistro. Macunaíma é, em tese, síntese do  brasileiro, é um personagem que, negro e índio, torna-se branco ao fim da narrativa, numa  síntese que não deixa de representar uma espécie de assimilação e apagamento da cultura  e da identidade negra e indígena que estava ali na origem. Em um artigo de 2017, a pesquisadora  Rubelise da Cunha, da FURG, data dos anos 1960 um momento em que a literatura brasileira rompe  com muito desses moldes e desses estereótipos e tenta lançar à cultura indígena como parte da  história brasileira um olhar mais abrangente, menos carregado de estereótipos – ou ao menos que  tenta ser menos carregado de estereótipos – e que se compromete a tentar apresentar por um  outro viés a história do Brasil, dando um pouco mais de voz a esse personagem indígena. 
"Quarup", por exemplo, que é de 1967, escrito por Antonio Callado, narra o despertar político  da geração que se tornou adulta entre a renúncia de Jânio Quadros e o advento do golpe militar  de 1964. A figura arquetípica do padre Nando é um jovem sacerdote que, em crise de fé, primeiro  ele abandona a igreja instituída, torna-se alguém confuso entre a experimentação dos Sentidos e a  busca por essa fé e acaba reencontrando-se numa viagem transformadora ao Xingu e no contato com as  populações indígenas, Já Darcy Ribeiro, em 1976, no romance "Maíra", vai lançar mão de toda a sua  experiência como antropólogo com vasta produção e trabalho em campo para criar a narrativa dupla  de uma mulher, uma jovem branca que vive entre os índios, e um jovem índio que, criado entre os  brancos, em um seminário europeu, tenta voltar para sua aldeia, a aldeia dos Mairuns, e assumir a  sua identidade como um daqueles índios – sem muito sucesso. Há vários exemplares também na literatura  mais recente, como é o caso de "Habitante irreal", de Paulo Scott, publicado em 2011, e o muito  recente "A morte e o meteoro", de Joca Terron, publicado em 2019.
A questão é que todas essas  obras são escritas por autores não indígenas, embora todas tenham um olhar mais atento a nuances  e com um ouvido um pouco mais afinado para tentar evitar estereótipos por demais ofensivos. Como  as sociedades originais do Brasil eram compostas de culturas eminentemente orais, o choque entre  elas e a cultura da história escrita europeia facilitou de algum modo o apagamento dessa  cultura indígena nos registros que chegaram até nós. Está aí também a raiz desse peculiar  fenômeno brasileiro em que pretensos vikings de Sorocaba e templários de praça de alimentação  em Toledo, no Paraná, cultuam Sagas escandinavas ou o ciclo arturiano mas não têm a menor ideia  de nada a respeito da cosmogonia tupi-guarani, por exemplo.
Assim, só há pouco tempo começaram a  surgir olhares sobre a cultura indígena escritos por indígenas. Como lembra a pesquisadora de  origem indígena Graça Graúna em um livro de 2013, "Contrapontos da literatura de origem indígena no  Brasil", a literatura produzida por esses autores raramente, quase nunca é dissociada de alguma  atividade de conscientização e militância política de resistência da própria cultura indígena. E por  isso também são livros que rejeitam classificações muito rígidas entre ficção, não-ficção, e  mesmo entre diferentes gêneros: memória, ficção, romance, poesia.
A escritora e ativista  nascida no Rio Eliane Potiguara, por exemplo, cria em 1989 uma história alternativa do Brasil  pelo ponto de vista do indígena em "A Terra é a mãe do índio" que é um livro que ao mesmo tempo  é um ensaio histórico mas também é uma espécie de cartilha de conscientização educacional –  inclusive com a presença de desenhos e cartuns, por exemplo. Em outro de seus livros.  Metade cara, metade máscara, por exemplo, Eliane Potiguara vai fazer um relato que é o  mesmo tempo autobiográfico e mesclado com ensaio, há também poesias, e é um texto muito forte a  respeito dos desafios da resistência indígena e da luta dos indígenas pelos Direitos  Humanos.
Essa mudança na perspectiva da narração da História brasileira feita por Eliane  Potiguara vai também ser feita pelo escritor Kaká Waré, no livro "A terra dos mil povos:  a história do Brasil contada por um índio", no qual ele realmente reconstitui toda a  narrativa canônica da história brasileira, mas invertendo a polarização e mostrando como  essa história é contada pelo ponto de vista indígena. Como diria Millôr Fernandes a respeito  de outro assunto, mas que também é correlato: a História do Brasil é bem diferente quando  é contada no Paraguai – a História do Brasil é bem diferente quando é contada por um índio.  Também é frequente na literatura produzida pelos escritores indígenas o tom de alerta a respeito da  voracidade da atual cultura de consumo capitalista e o quanto ela leva ao esgotamento de recursos  naturais, pondo em risco a própria sobrevivência humana no planeta.
Este é um assunto que permeia,  por exemplo, livros de dois dos principais intelectuais indígenas do Brasil contemporâneo:  Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Em seus livros bem curtos, pequenos livretos publicados  há pouco tempo pela Companhia das Letras, "O amanhã não está à venda" e "Ideias para adiar  o fim do mundo", Ailton Krenak faz uma reflexão a respeito de que tipo dia e mudanças de mentalidade  deverão ser realizadas para impedir que o consumo desarvorado e fora de controle leve ao esgotamento  dos recursos naturais para todos. Já no por outro lado bem extenso "A queda do céu", Davi Kopenawa  apresenta a visão de mundo dos Yanomami e alerta para o quanto o contato não solicitado e muitas  vezes invasivo com os brancos tem sido prejudicial para a própria sobrevivência dos yanomami enquanto  tribo e enquanto.
Um dos mais prolíficos autores de origem indígena no Brasil é Daniel Munduruku,  que já escreveu meia centena de livros, muitos deles versando sobre um tema comum: a fratura na  identidade dos índios mais aculturados e o quanto o índio que já vive numa sociedade em contato  maior com os brancos têm dificuldade não apenas para se reconhecer como índio mas também para  ser aceito nessa comunidade em que o racismo e o preconceito dos brancos é brutal e anulador. É  o que Munduruku vai contar, por exemplo, em livros de inspiração autobiográfica, como "Memórias de  índio" e "Meu vô Apolinário", no qual ele partilha a sua própria experiência de alguém que foi vítima  do preconceito dos brancos desde a infância e que, por meio do contato, com esse avô Apolinário,  um indígena munduruku com uma rica vivência da sua cultura e do seu povo, de alguma forma o  ajuda a retraçar o caminho até a sua identidade. Embora seja constantemente invisibilizada, não  seja discutida por muitos críticos, não frequente páginas de jornal, essa literatura de origem  indígena da qual nós apresentamos aqui alguns desses autores é muito mais ampla do que esse  breve apanhado que trouxemos para vocês apenas como ponto de partida para quem quiser se debruçar  um pouco mais sobre essa literatura produzida pelos habitantes originais do Brasil.
Até porque  essa é uma literatura fundamental para que a gente possa discutir o ponto em que estamos no Brasil.  Porque nós não temos como discutir o ponto a que o Brasil chegou sem considerar a visão e as opiniões  de quem já estava aqui muito antes dele começar. Gente esse foi o seu Admirável Mundo livro desse  dia 19 de abril em que a gente aproveitou essa data para trazer um pouco dessa literatura que  tem sido tão pouco conhecida pela maioria.
Muito obrigado pela atenção de vocês, obrigado novamente  pela audiência, se gostaram do conteúdo deixe o seu joinha porque isso nos ajuda a fazer o canal  crescer e boas leituras até a próxima semana.
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