A vida, a obra e os contextos de Dante Alighieri (#38)

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Admirável Mundo Livro
Um vídeo sobre os livros, a vida e os tempos de Dante Alighieri, o criador da "Divina Comédia", por ...
Video Transcript:
Este não é Dante / Esta é uma foto de Dante / Este  é um filme onde um ator finge ser Dante / Este é um filme com Dante no papel de Dante / Este  é um homem que sonha com Dante. / Este é um homem chamado Dante que não é Dante / Este  é um homem que pensa ser Dante / Este é um homem que todos salvo Dante pensam ser Dante /  Este é um homem que todos salvo ele mesmo pensam ser Dante / Esse é um homem que ninguém  pensa ser Dante salvo Dante. Este é Dante [VINHETA DE ABERTURA] Sejam bem-vindos, leitores de todo universo, eu  sou Carlos André Moreira, este é o seu Admirável Mundo Livro e hoje nós vamos fazer um pequeno  desvio da nossa trajetória habitual para falar de Clássico com "C" maiúsculo.
Hoje nós vamos  tratar aqui de um escritor que é considerado um dos grandes, senão o maior poeta da Idade Média  europeia e é tido unanimemente como o inventor da língua italiana como língua literária. Nós vamos  falar de Dante Alighieri, cuja morte em 1321 está completando o 700 anos neste nosso 2021. Apesar da sua inegável importância para a literatura italiana e universal, Dante é um  personagem sobre cujos detalhes biográficos temos muito poucas certezas e informações confirmadas. 
Muito do que sabemos sobre sua vida precisa ser escavado em leituras minuciosas em algumas de suas  obras como "Vida Nova", "Convívio" ou mesmo "A Divina Comédia". Sua própria data de nascimento,  por exemplo. Sabe-se que ele nasceu no ano de 1265, mas o dia exato é uma incógnita.
Pode ter  sido em maio, pode ter sido em junho. Florença, seu local de nascimento, não era uma cidade  italiana aos moldes contemporâneos. Era, sim, uma república, uma espécie de comuna-Estado na  Itália fragmentada de então.
Muitas dessas cidades haviam florescido devido à grande prosperidade  que a Itália vivia durante esse período como uma rota direta entre a Europa, o Oriente sarraceno e  o norte da África. Espelhando essa circunstância, Florença, na Toscana, onde Dante nasceu, era  uma espécie de entreposto quase obrigatório em qualquer deslocamento que se fizesse entre o  norte e o sul da Itália. Essa é a razão pela qual, durante o período em que Dante viveu em Florença,  ela atingiu seu apogeu em termos de comércio, em termos de cultura e de modelo político. 
Dante nasceu entre os Alighieri, uma família da pequena nobreza Florentina. Digamos que eles  eram uma família com posses, com propriedades, com um certo status e uma certa reputação social  mas não chegavam a ser uma das grandes influentes famílias da cidade. Homem de ação política  que participou inclusive da administração de sua cidade, Dante também teve experiência  militar, lutando em uma das inúmeras guerras que assolavam a Itália do período.
Ele também foi  membro do Conselho de Administração de Florença e, em 1300, foi eleito para um mandato como prior  da cidade. Foi essa ação política, inclusive, a responsável pela queda em desgraça de Dante.  Os últimos 20 anos de sua vida foram passados em um exílio perambulando pela Itália. 
Ele morreu em 1321, na cidade de Ravena, sempre tentando voltar a Florença onde ele não  podia mais pôr os pés porque, devido a algumas questões políticas das quais nós vamos falar, ele  estava condenado à morte se fosse novamente visto nas ruas de Florença. A desgraça política de Dante  é mais um efeito colateral de uma disputa que, na época, já tinha décadas de idade e que opunha  dois partidos políticos em Florença: os guelfos e gibelinos. Os guelfos defendiam que, embora fosse  uma república autônoma, Florença devia aliança e obediência ao chefe supremo da cristandade:  o Papa em Roma.
Já os gibelinos acreditavam que a verdadeira lealdade da cidade era devida ao  imperador do Sacro Império Romano-Germânico – que, na época de Dante inclusive, passava por uma  disputa sucessória que enfraqueceu bastante o seu partido na cidade. Ao longo de várias escaramuças  civis que tiveram lugar na Florença do século XIII, guelfos e gibelinos alternadamente tomaram  o controle da cidade para impor retaliações cruéis e bastante brutais contra os seus adversários  derrotados na guerra civil: várias execuções, sentenças de morte, destruição de propriedades.  E toda vez que um deles retomava a cidade, devolvia na mesma moeda, numa escalada de vingança  e violência que o próprio Dante viria a considerar talvez o grande problema da cidade.
Dante era  de uma família ligada aos guelfos e, portanto, ele foi um desses partidários do Papa durante  a sua Juventude. Porém, quando Dante estava atuando politicamente no comando de Florença, ali  na segunda metade do século XIII, os gibelinos já haviam sido derrotados há muito tempo – em 1266  eles foram basicamente expulsos e exilados em sua maioria – e os guelfos controlavam a política da  cidade já há muitos anos. Como costuma acontecer muito com facções que tomam o poder pela força,  no entanto, ao longo dos anos os guelfos foram desenvolvendo um racha incontornável que começou  como uma rixa familiar e depois terminou com a divisão do partido entre os guelfos negros e os  guelfos brancos, sendo que os guelfos brancos, ironicamente, foram assumindo uma posição com  relação ao Papa cada vez mais próxima da dos seus antigos Inimigos gibelinos.
Eles achavam  que o papo estava se metendo demais na política da cidade. Já os guelfos negros eram aqueles  totalmente favoráveis ao Papa e que utilizaram essa aproximação com o papado para retomar o poder  na cidade e garantir a hegemonia. A verdadeira origem dessas duas subfacções é uma rixa familiar  entre duas das famílias mais importantes de Florença na época, Cerchi e os Donatti. 
Embora os Donati, líderes da facção negra, fossem aparentados a Dante por casamento, uma  vez que a sua esposa Gemma Donati era da família, Dante, durante o seu período de ação política,  tinha uma visão muito mais aparentada com a dos guelfos brancos. Ávido por ter mais controle sobre  a política de Florença, o Papa Bonifácio VIII, em 1302, enviou um exército para pacificar a  região dos conflitos entre guelfos brancos e negros. Na verdade, era um Esquadrão enviado com  a missão determinada de tomar o poder na cidade, garantir a influência papal na comuna  e pôr no poder os aliados papais, os guelfos negros.
Processado por corrupção e má  administração durante o seu período como Prior, Dante foi condenado ao pagamento de uma  multa estratosférica que, por não ser paga, foi convertida em uma sentença de morte da  qual ele apenas escapou porque à época ainda estava em Roma, para onde havia ido como chefe  de uma delegação diplomática que havia tentado impedir a invasão do papa, sem sucesso. Foi nesse  exílio de duas décadas que Dante escreveu a parte mais significativa de sua obra: o ensaio  político "Da Monarquia", com a sua visão do que deveria ser um governo ideal; o tratado  filosófico-linguístico-filológico "De Vulgari Eloquentia", que é uma defesa do italiano como  uma língua com potencial literário; e "Convívio", uma obra inacabada na qual ele pretendia  apresentar uma espécie de tratado poético por meio da análise de algumas canções que ele mesmo  havia composto. Foi esse também o período em que ele lapidou e concluiu aquela que é considerada  uma das grandes obras do espírito humano e a sua obra-prima "A Divina Comédia".
Antes disso, ele  já havia composto vários poemas de amor esparsos e havia publicado um livro que é um misto de volume  de poemas e livro de memórias chamado "Vida Nova", no qual ele narra seus primeiros anos,  a sua formação e a forma como conheceu aquela que viria a ser a musa durante toda a  sua obra, a dama italiana Beatriz Portinari. Em "Vida Nova", Dante conta que conheceu Beatriz  em uma festa religiosa oferecida na casa dos Portinari, na qual ele a viu no meio de outras  crianças. Ele teria uns 10 anos, nove anos e ela teria uns nove ou oito, seria um ano mais nova do  que ele.
Dante declara aí que foi tomado por uma paixão avassaladora ainda que platônica, da qual  dá prova o fato de que Beatriz viria a voltar como uma personagem fundamental em sua obra ao longo  de toda sua carreira literária. A questão é que, para analisar essa que é provavelmente uma das  histórias de amor mais conhecidas do Ocidente, é preciso despir um pouco as nossas lentes  contemporâneas e examinar com o contexto da época. O fato é que a Beatriz que aparece nos livros  é mais uma ideia idealizada e perfeita de uma mulher que Dante não conheceu na vida real a não  ser muito vagamente.
Não há nenhum registro de que tenha havido um romance ou um compromisso formal  que seja entre Dante e Beatriz. Eles apenas eram tinha a mesma idade, conviviam na mesma cidade e,  por Dante ser de uma família muito mais modesta, quando Beatriz foi dada em noivado, ainda na  infância, obviamente não teria sido para nenhum dos Alighieri e sim para alguma outra família de  status equivalente. De acordo com o que o próprio Dante conta em "Vida Noda", ele só trocou palavras  com Beatriz uma única vez em sua vida, em 1283, em uma determinada ocasião quando ele andava pela rua  e encontrou com ela vindo no sentido contrário, acompanhada de duas damas de companhia.
Ela teria  feito a ele um "cumprimento gentil" – o que, traduzido nas circunstâncias de hoje, não deve  ter sido mais do que um "oi, tudo bem? " mas que, para ele, foi o bastante para mergulhá-lo em uma  febre de paixão cujo resultado foi ele ter ido para casa e tido um sonho extremamente revelador  e extremamente erótico com Beatriz. Ele sonhou que seu quarto foi tomado por uma névoa vermelha e ele  foi então abordado por uma figura majestosa que era o próprio Amor, carregando nos braços Beatriz  seminua, coberta apenas com um pano vermelho, e que em um determinado momento essa  figura misteriosa entrega o próprio coração de Dante em chamas para que Beatriz o  devore e se declara senhor de Dante a partir dali.
Dante demarca esse momento como aquele em  que ele tomou o sonho com uma espécie de profecia e se lançou à escrita dos poemas amorosos que ele  dedicaria a Beatriz. É assim que Dante se aproxima de outros jovens poetas como ele, que incluem  Guido Cavalcanti e Lapo Gianni, e esse grupo, que vem a ser conhecido como Fedele d'amore,  os "apóstolos do amor", os "vassalos do amor", vai mudar definitivamente muito do que seria  a língua italiana a partir dali. Durante os anos de vida e de produção literária de Dante, já  haviam florescido as chamadas "línguas românicas", o u seja, aquelas línguas e dialetos secundários  que haviam sido produzidos pela fermentação e pela contaminação do latim popular com  dialetos regionais – e que deram origem a essas línguas neolatinas que nós conhecemos  hoje na modernidade: francês, italiano, romeno, espanhol e mesmo o nosso português.
Contudo  nesse período em que Dante trabalhou e escreveu, a língua latina literária ainda era a língua de  cultura, a língua da elite artística e a língua da elite científica. O próprio Dante, quando tem  que escrever um tratado para circular no meio científico, "De Vulgari Eloquentia", usa o latim.  Esse, inclusive, é um livro que no centro aloja um paradoxo, porque é um ensaio redigido em latim  para defender o potencial literário e artístico da língua popular, vulgar, o italiano toscano,  variação que Dante usava para escrever seus poemas dedicados a um público mais amplo.
E Dante prova  a sua afirmação de que o italiano tinha força poética ao conceber e realizar aquela que é uma  das maiores obras do Ocidente, "A Divina Comédia". Dante não deu ao seu livro o nome de "Divina  Comédia", ele o chamou apenas de comédia utilizando aí o sentido mais comum que a palavra  tinha no período medieval, o de uma história que começa mal e termina bem, ou de uma história  tem final feliz. Quem vai apor esse "Divina" à obra é um dos seus primeiros admiradores e um dos  seus primeiros biógrafos, Giovanni Boccaccio, ele mesmo, o autor do "Decamerão", e que foi um dos  grandes defensores de Dante durante sua vida.
A "Comédia" é um longo poema no qual Dante descreve  um sonho alegórico. Ele se vê numa floresta escura e ameaçadora que representa os vícios do mundo  e chega à conclusão de que a sua vida havia se desviado do "reto caminho". Tentando sair dessa  floresta, ele encontra uma montanha, mas ele não consegue escalar porque é impedido por alguns  animais mitológicos, Quando ele já se dispõe a desistir e a voltar para a floresta, aparece  diante dele o poeta romano Virgílio, que se propõe a ser o seu guia em uma jornada espiritual que  passa pelo Centro da Terra em direção ao Inferno, vai parar no Purgatório, onde Virgílio o entrega  aos cuidados da amada Beatriz que será a sua guia no Paraíso em direção a divindade.
No  momento em que Dante encontra a divindade, ele também encontra a salvação de sua alma. Com  seu substrato religioso-espiritual, a comédia também é um exemplo de como Dante era um seguidor  do tomismo de São Tomás de Aquino e portanto, por vias indiretas, também devedor do pensamento  filosófico de Aristóteles. A própria maneira como Dante orquestra a geografia e a cosmologia do seu  Paraíso, do seu Infernos e do seu Purgatório deve muito à visão astronômica de Aristóteles. 
Aristóteles imaginava o universo como uma série de órbitas circulares umas em contato com  as outras, cada uma impelida pelo movimento da órbita anterior em um giro perpétuo até chegar ao  movimento original provocado por um motor imóvel. E Dante descreve em seu livro que o Paraíso, o  Inferno e o Purgatório se organizam em nove níveis concêntricos, nove círculos que orbitam ao redor  do outro. No Paraíso, Dante ainda coloca um décimo nível que estaria situado fora da existência e que  seria, digamos, a Morada de Deus – Deus que também é apresentado como três círculos, representando  cada um deles uma pessoa da Santíssima Trindade.
O número três, aliás, pode ser considerado uma  chave matemática esotérica para a composição da obra. Não apenas ela se divide em três partes,  Inferno, Purgatório e Paraíso, como cada uma dessas três partes é dividida em 33 cantos e  os cantos são, por sua vez, compostos de poemas organizados no que se chamava de "terza rima", ou  seja: estrofes de três versos cada uma, em que o primeiro e o terceiro verso de cada estrofe rima  com o segundo da anterior e assim sucessivamente, fazendo com que cada bloco de versos enganche  no outro num arranjo bastante dinâmico e que produz uma ideia de muito movimento. Dante afirma na "Divina Comédia" que começou a sua viagem "no meio do caminho desta vida", o  que seria, dada a idade média do período, algo em torno de 35 anos.
Trinta e cinco anos Dante  tinha exatamente em 1300, ano que marca não apenas o apogeu de sua atividade política  como um dos priores de Florença como também o famoso Jubileu da cristandade convocado pelo Papa  Bonifácio VIII. Essa, inclusive, é uma das coisas notáveis na forma como Dante constrói "A Divina  Comédia". Embora ela seja, no final das contas, uma longa jornada de amadurecimento espiritual e  de iluminação, também é um exemplar magnífico de revanche histórica.
Dante assume para si um  papel que, nas palavras de Elias Canetti na sua obra "Sobre os Escritores", talvez fosse  impossível para um escritor contemporâneo: o de um juiz Implacável. O seu livro é uma  grande vingança histórica na qual seus principais desafetos são colocados em pontos diferentes do  Inferno pagando por diferentes pecados que muitas vezes são reflexos das traições e dos malfeitos  que Dante considerava que essas pessoas haviam feito a ele. O próprio já citado o Papa Bonifácio  VIII, que Dante considerava talvez o seu maior adversário por ter nele o principal responsável  pela sua desgraça e pelo seu degredo, na época em que a história se passa, 1300, ainda estava  vivo, mas Dante dá um jeito de que determinados personagens que aparecem e que conversam com  ele ao longo da narrativa antecipem de forma profética que Bonifácio vai acabar sim no Inferno  ardendo no fogo e pagando pelo pecado da simonia.
Esses encontros que Dante vai ter  com os mortos, figuras históricas, figuras reais tanto da história de Florença quanto  até mesmo da história do Ocidente no seu tempo, se transformam em uma espécie de grande súmula de  todo o conhecimento acumulado pela Idade Média até ali, o que é uma das coisas que tornam esse livro  também uma espécie de grande façanha intelectual. Como lembra Harold Bloom no seu "O Cânone  Ocidental", "A Divina Comédia" talvez seja uma das grandes ousadias já perpetradas por um autor  em qualquer época. Ele não apenas se torna o juiz post-mortem de boa parte dos seus contemporâneos e  de muitos dos seus notáveis antepassados como ele também transforma uma mulher que anteriormente  era objeto de um desejo amoroso, Beatriz, numa espécie de Anjo de salvação, fundamental para  a redenção da sua alma.
E o interessante é que, embora disfarçado de uma história de redenção,  esse ajuste de contas não apenas funcionou como representou um triunfo maiúsculo menos de uma  geração depois, porque Dante, após a sua morte, não demorou muito a se tornar um dos poetas mais  reconhecidos de seu tempo. Ele é uma joia da literatura há 700 anos. É mais ou menos como se  Dante se avolumasse no horizonte literário como aquela montanha que ele tenta escalar sem sucesso  no início da "Divina Comédia".
Os leitores que o acompanharem vão ultrapassar essa montanha, assim  como ele, com um mergulho muito profundo nos mais baixos da experiência humana e com o enlevo de  conhecer algumas das suas mais elevadas aspirações Gente, muito obrigado pela sua atenção,  obrigado pela sua audiência. Este foi o seu Admirável Mundo Livro de hoje,  fugindo um pouco daquele padrão de sempre, a gente decidiu dar uma pirada e ir buscar  inspiração nos clássicos, porque isso é algo que a gente também tá a fim de fazer aqui na  Admirável Mundo Livro de quando em quando. Espero que vocês tenham gostado, se você curte  o trabalho, curta os nossos vídeos, compartilhe, considere se inscrever no canal e fazer circular a  informação de que o Admirável Mundo Livro existe.
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