Centros urbanos com até 50 mil pessoas, conectados por estradas de quatro pistas e calçadas. Ou enormes aldeias com montes em forma de pirâmide de até 20 metros de altura, sobre os quais eram construídos templos e casas, ligados a outros montes por canais e plataformas. Tudo isso rodeado de trincheiras de até quatro metros de profundidade, como fossos de castelos.
E no meio da Floresta Amazônica que conhecemos hoje. Só que aproximadamente em 1490. Já pensou?
O navegador Cristóvão Colombo chegou à América em 12 de outubro de 1492. E chamou isso de descobrimento? Mas descobriu o quê?
Eu sou Camilla Costa, da BBC News Brasil em Londres e vou falar nesse vídeo sobre o que sabemos hoje sobre como realmente era o continente americano antes da chegada dos europeus. A tarefa não é fácil. Primeiro, com a chegada dos europeus, boa parte das centenas dos chamados povos originários foram dizimados por doenças trazidas de além-mar.
Em alguns casos, e isso eu nunca aprendi na escola, elas chegavam através dos rios ou de animais, até mesmo antes do contato direto desses povos com colonizadores. Isso, por si só, já fez com que alguns dos primeiros relatos escritos sobre o continente não mostrassem exatamente como ele era antes daquele choque. Em outros casos, a natureza das sociedades que desapareceram, ou da ocupação que aconteceu depois, fez com que fosse mais difícil ter evidências arqueológicas abundantes sobre elas.
E além disso, ainda existe a narrativa dos colonizadores. Na época, para justificar a colonização, muitos dos exploradores e observadores contribuíram para construir a ideia de que o continente tinha poucas pessoas, povos nômades e pouco sofisticados. Mas hoje sabemos que não era assim.
Nos últimos anos, arqueólogos e antropólogos têm descoberto cada vez mais detalhes sobre a complexidade, a diversidade e o tamanho dos povos americanos nativos. Esses estudiosos acreditam que é a hora de reconhecermos também as contribuições e lições que eles deram e ainda podem dar ao mundo. Sim, antes que seja tarde demais.
Um exemplo disso são os povos da Amazônia. Hoje se estima que, por volta de 1492, a América do Sul abrigasse cerca de 25 milhões de pessoas, entre 8 e 10 milhões delas só na região amazônica. E eles não eram só povos nômades, muitos estavam estabelecidos em grandes centros.
Mas não eram cidades de pedra, como as dos incas, maias ou mexicas. Segundo os arqueólogos, na região onde hoje é o Parque Indígena do Xingu, por exemplo, havia um tipo de urbanismo diferente, único, em que as áreas onde as pessoas viviam se misturavam à floresta. Quase como o que hoje chamaríamos de cidades-jardim.
Tudo, claro, sustentável e que não resiste ao tempo deixando vestígios arqueológicos. Nessas cidades viviam milhares, e para isso precisavam da floresta não só para comer, mas também para construir suas casas, roupas, objetos. Os especialistas também estão percebendo que os indígenas não apenas colhiam o que havia nas árvores.
Eles também as mudavam de lugar segundo as suas necessidades. Isso quer dizer que partes da floresta amazônica não são intocadas como imaginamos. Elas foram transformadas com destreza pelos nativos, que fertilizaram o solo para hortas, cultivaram pomares de espécies específicas de frutas e outras árvores.
Tudo isso sem desmatar a floresta e, na verdade, a tornando mais resistente a eventos climáticos. Um exemplo disso é um castanhal de cerca de 500 anos de idade encontrado num sítio arqueológico no Pará. Ele se estende por quilômetros, mas para a quase exatos 500 metros da beira do rio, o que, segundo os especialistas, é uma das mostras de que houve trabalho humano para a plantação e a manutenção das árvores.
Na Amazônia boliviana, na fronteira com o Brasil, as culturas dos Llanos de Moxos construíam plataformas de cultivo elevadas de até 30 metros de largura e centenas de metros de comprimento. Sem falar nas enormes trincheiras que circundavam suas aldeias de até 240 hectares para defendê-los ainda não se sabe de que nem de quem. Tudo isso mostra que naquela região havia populações grandes e organizadas, porque era preciso mobilizar a mão de obra pra construções tão monumentais.
A diferença é que não eram monumentos de pedra, como estamos acostumados a pensar. E, sim, de terra. Por isso, alguns desapareceram, outros foram engolidos pela floresta.
Mas muitos ainda estão lá para serem encontrados. A Amazônia é uma das áreas que tem trazido mais revelações arqueológicas sobre a história pré-colombiana do continente, mas não é a única que tem histórias fascinantes. Atualmente, se estima que na América como um todo, de norte a sul, viviam até 60 milhões de pessoas, que falavam cerca de 1.
200 idiomas diferentes, por volta de 1492, quando Colombo chegou. É muita gente! Quase o mesmo número de pessoas que viviam na mesma época na Europa.
Sabemos que na América do Norte, por exemplo, os povos costumavam se organizar em estruturas menos monumentais, só que mais igualitárias. Alguns formavam confederações, se juntavam para se ajudarem mutuamente e colocavam restrições ao poder das autoridades. É o caso dos Haudenosaunee, uma confederação de cinco nações regidas por um governo com leis aprovadas por um conselho em que homens e mulheres tinham poder de decisão, inclusive sobre as guerras.
Na prática, era como uma democracia sem partidos. Isso impressionou os europeus que, quando chegaram à América, ainda viviam sob monarquias absolutistas em sociedades extremamente desiguais. Ou as culturas Pueblo, em que diferentes povos, que eram politicamente independentes, abrigavam uns aos outros em períodos de seca ou fome.
E formavam comunidades multiculturais temporárias. Claro que existiam impérios e dominação, inclusive violenta. Na Mesoamérica, os tarascos e os mexicas eram arqui-inimigos.
Mas não era um sistema tão diferente do que se via na Europa na mesma época. O que sim, era diferente era a organização de cidades como Tenochtitlán, a capital mexica, ou asteca, que era maior do que Paris, e provavelmente mais limpa. Tinha água potável, banheiros públicos, coleta de excrementos.
Tudo isso sendo construída sobre um lago, com um sistema de canais que foi construído ao longo do tempo para evitar que ela fosse inundada com frequência. E com mais de 30 palácios, um zoológico do imperador Moctezuma, templos, bairros com escolas próprias e muito mais. Quando os europeus destruíram o sistema de canais da cidade e o substituíram pelo seu próprio, transformando-a na Cidade do México, ela passou a ter enchentes mais constantes e surtos de tifo.
Pouco abaixo dali, os maias eram os matemáticos e astrônomos mais avançados do continente. Eles não eram os únicos povos a dominar a matemática e a astronomia, quase todas as sociedades conhecidas tinham calendários astronômicos, por exemplo. Mas os maias deram ao mundo algo que não existia: o símbolo matemático do zero.
Pode parecer pouco, mas pare para pensar que já era o século 15. A ideia do zero já existia e era usada, mas o símbolo do zero facilitava escrever números maiores e calcular com eles. Era assim que os maias podiam ter um sistema complexo de calendários, que misturava crenças religiosas, o ano solar de 365 dias e outros fenômenos astronômicos como os ciclos de Vênus, da Lua e de outros planetas com enorme precisão.
Sem falar no fato de que eles foram apenas um dos quatro povos da humanidade -- isso mesmo, quatro -- a desenvolverem um sistema de escrita de maneira independente. E mesmo os que não tinham a escrita tinham seus próprios sistemas eficientes de armazenamento de informação. Era o caso de impérios com múltiplos idiomas como o mexica, que usava um sistema de hieróglifos.
E do poderoso Império Inca, na América do Sul, que, apesar de impor seu idioma, o quechua, usava o sistema de quipus, cordões de lã em que se fazia nós de tipos e tamanhos diferentes para registrar a informação. Os incas, aliás, tinham o maior império do mundo em extensão quando os europeus chegaram ao continente. Eu não fazia mínima ideia disso antes dessa pesquisa.
Era uma expansão só comparável ao Império Romano e mantida com um sistema administrativo impressionante, que incluía muitas obras públicas como estradas e pontes, além de censos precisos de população e produtos. Tudo armazenado com esses nós em cordas de lã. E nós ainda nem falamos da dieta.
Da América veio o milho, uma criação mesoamericana que revolucionou a alimentação humana e se tornou um componente essencial na dieta mundial. E quando eu digo criação, é porque, segundo os cientistas, o milho não poderia ter existido sem a intervenção humana. Ele é fruto de manipulação genética ocorrida há milhares de anos e já tinha se espalhado por todo o continente, com milhares de variedades também inventadas em cada região, quando os europeus chegaram -- mesmo que não houvesse rotas diretas de comércio.
Por outro lado, os americanos domesticaram a batata, o tomate, o abacate, as abóboras, a mandioca. E a dieta europeia incorporou tudo isso. Isso mesmo, a batata foi levada dos indígenas para a mesa europeia!
E o tomate também. Diferentemente do que ocorria na Europa, não havia evidência de períodos de fome prolongada entre os americanos, apesar de que existia, sim, seca e outros fenômenos naturais que eventualmente provocavam escassez temporária de alimentos. Isso quer dizer que a América era o paraíso completo antes dos europeus?
Claro que não. Era um lugar muito diverso e complexo, que também tinha desigualdade e brutalidade, como outras partes do mundo. Mas era também um continente onde as pessoas tinham encontrado seu próprio caminho para viver e adaptar-se ao seu ambiente.
E o que os cientistas mostram, cada vez mais é que, ao contrário da narrativa colonial que persiste ate hoje, não precisavam ser “civilizados” por outros povos. O conhecimento que os americanos nativos tinham contribuiu imensamente para o mundo que vivemos hoje. E ainda pode contribuir.
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