HISTÓRIA REAL DESTA AVÓ 👵💔 NO VELÓRIO DO MEU PAI, MEU IRMÃO E 2 AMIGOS ABUSARAM DE MIM E DA MÃE...

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Memórias da Vovó
Conheça a história dessa vovó, moradora no interior do Brasil. Sua história é um exemplo de inspiraç...
Video Transcript:
Quando o sangue daqueles que deveriam me proteger manchou minhas próprias mãos, entendi que a vida não é esse romance bonito que contam por aí, mas uma sucessão de momentos brutais que testam até onde podemos suportar antes de quebrar ou de nos transformar em algo que nunca imaginamos ser. Antes de começar essa história que carreguei em silêncio por décadas, quero pedir a você que está me assistindo agora, se inscreva no canal, deixe seu like nesse vídeo e comente de qual cidade está me ouvindo. Cada comentário de vocês é um abraço no coração desta velha senhora que
precisa, mais do que nunca compartilhar o que guardou por tanto tempo. Chamo Aparecida Josefa dos Santos, mas todo mundo aqui em Garanhuns, esse pedacinho de Pernambuco, onde o frio da serra faz a gente acreditar que não está no Nordeste, me conhece como dona Cida pracinha. Tenho 79 anos nas costas curvadas pelo tempo, os dedos nodosos pelo reumatismo, a visão já não tão boa quanto antes, e uma pequena loja de artesanato que virou mais ponto de encontro das senhoras da cidade do que negócio propriamente dito. Nasci em 1946, numa casa de taipa coberta de palha na
zona rural de Garanhuns, tão longe da cidade que parecia outro mundo. Uma casa simples, de chão batido, sem água encanada, sem luz elétrica, mas que nos meus primeiros anos de vida ainda era um lar. Não tínhamos muito, mas tínhamos uns aos outros. Meu pai, José Ferreira, conhecido por todos como Zé Mateiro, minha mãe Sebastiana, que todo mundo chamava de dona Tiana, e meus três irmãos. O mais velho, Antônio, tinha 10 anos a mais que eu e já parecia um homem quando eu ainda era uma menina de tranças. Os outros dois, Pedro e João, eram mais
próximos da minha idade. Éramos uma família como tantas outras daquela região. Pobres, trabalhadores, lutando dia após dia contra a seca, contra a fome, contra o esquecimento de um país que mal sabia que existíamos. Meu pai era um homem simples, não sabia ler nem escrever, mas conhecia a terra como ninguém. Sabia exatamente quando plantar cada semente, onde encontrar água, mesmo nos tempos mais secos, como curar uma rez doente apenas com ervas do mato. Era respeitado na região por essa sabedoria que não vinha dos livros, mas da vida. trabalhava como meeiro na fazenda do coronel Jerônimo, um
dos homens mais poderosos da região. Em troca de um pedaço de terra para cultivar, entregava metade de tudo que colhia. Era uma vida dura, de sol a sol, mas meu pai nunca reclamava. "É o que temos, minha filha", ele dizia quando eu, ainda criança, questionava por tínhamos tão pouco enquanto o coronel tinha tanto. Mamãe trabalhava tanto quanto ele, talvez até mais. Acordava antes do sol nascer para acender o fogão à lenha, preparar o café, a farinha, o feijão, que seria nossa comida durante o dia. Depois ia para a roça ajudar meu pai, voltava para preparar
o almoço, cuidava da casa, lavava roupa no riacho e ainda encontrava tempo para nos ensinar o que sabia, contar até 100, reconhecer as letras, os nomes das plantas que curavam e das que matavam. Meus irmãos mais novos seguiam o caminho do pai, aprendendo a trabalhar na terra desde cedo, ajudando na roça, assim que conseguiam carregar um balde d'água ou espantar passarinhos das plantações. Pedro tinha o jeito calmo do meu pai, sempre observando, falando pouco, pensando muito. João era mais alegre, gostava de contar histórias, de inventar brincadeiras, mesmo depois de um dia inteiro de trabalho duro.
Antônio, o mais velho, era diferente. Tinha herdado a altura e a força física do meu pai, mas não a sua gentileza. Desde cedo, mostrava um temperamento difícil, explosivo, imprevisível, com uma raiva que parecia sempre prestes a transbordar. Mamãe dizia que tinha nascido assim, com o sangue quente, e que não era culpa dele. Papai tentava controlá-lo como podia, mas mesmo ele tinha um certo receio quando Antônio entrava em seus acessos de fúria. Aos 18 anos, Antônio já tinha brigas famosas na região. Voltava para casa com os nós dos dedos esfolados, às vezes com o rosto machucado,
mas sempre com um sorriso estranho que me dava arrepios. começou a andar com um grupo de rapazes da fazenda vizinha, todos com a mesma fama de encrenqueiros. Mamãe chorava escondida, preocupada com o rumo que ele estava tomando. Papai tentava conversar, mas Antônio apenas ouvia em silêncio, os olhos fixos em algum ponto distante, como se não estivesse realmente ali. Foi nessa época que notei a maneira como ele olhava para as moças da região. Não era o olhar de admiração que os outros rapazes tinham, era algo mais sombrio, mais ameaçador. Lembro de uma vez na festa de
São João da comunidade quando ele observava Maria do Carmo, filha do seu Joaquim. Havia algo tão intenso, tão perturbador naquele olhar, que me fez ficar ao lado dela a noite toda, inventando desculpas para não deixá-la sozinha. Duas semanas depois, Maria do Carmo apareceu machucada com o vestido rasgado depois de voltar da feira. nunca falou o que aconteceu, mas deixou de ir às festas, deixou de sorrir e meses depois sua família se mudou para longe dali. Eu tinha 13 anos, então, e, embora não entendesse completamente o que estava acontecendo, sentia um medo instintivo do meu próprio
irmão. Evitava ficar sozinha com ele, sempre procurava estar perto de mamãe ou de meus outros irmãos quando ele estava por perto. Havia algo em seus olhos quando me olhava que me fazia sentir como um passarinho diante de uma cobra. paralisada, aterrorizada, pressentindo o perigo, mas incapaz de fugir. Meu pai percebeu essas mudanças em casa, a tensão crescente, o medo silencioso que mamãe e eu compartilhávamos. Começou a manter Antônio ocupado com trabalhos mais pesados, mais distantes de casa, como se tentasse mantê-lo longe de nós. Por um tempo, isso pareceu funcionar. A vida seguia seu curso difícil,
mas previsível. as colheitas, as secas, as raras chuvas que traziam esperança, as festas da comunidade que traziam um pouco de alegria em meio à dureza do cotidiano. Até que numa manhã de agosto de 1962, tudo mudou. Papai acordou com uma dor forte no peito, mal conseguia respirar. Mamãe o deitou na cama, mandou Pedro buscar o curandeiro na comunidade vizinha, mas quando ele chegou, já era tarde demais. Meu pai, aquele homem forte que parecia capaz de aguentar qualquer coisa, tinha partido sem nem se despedir. Meus queridos que estão me acompanhando até aqui, vocês não imaginam a
dor de perder alguém assim, de repente, sem aviso. Principalmente quando essa pessoa é o esteio da casa, o protetor, aquele que mantinha tudo e todos em equilíbrio. que você já perdeu alguém importante na sua vida. Deixa nos comentários de qual cidade está me assistindo. Seu apoio neste momento em que revivo essas memórias tão dolorosas significa muito para esta velha senhora. O velório foi organizado na nossa própria casa, como era costume. Os vizinhos ajudaram a preparar o corpo, a construir o caixão simples de madeira, a arrumar a sala para receber as pessoas que viriam prestar suas
últimas homenagens. Colocaram o caixão sobre duas cadeiras no meio da sala, acenderam velas nas quatro pontas e a casa logo se encheu de gente. Parentes distantes, vizinhos, conhecidos da fazenda e das comunidades próximas. Mamãe estava arrasada, mas mantinha a dignidade que sempre teve. Vestida de preto, sentada ao lado do caixão, recebia os pêames com um aceno de cabeça, os olhos vermelhos mais secos, como se já não tivesse mais lágrimas para derramar. Eu ficava ao lado dela, segurando sua mão, sentindo que de alguma forma os papéis tinham se invertido. Agora era eu quem precisava protegê-la. Meus
irmãos mais novos, Pedro e João, estavam perdidos, confusos com aquela situação que não conseguiam compreender completamente. Antônio, por outro lado, parecia estranho. Não demonstrava tristeza, não chorava como os outros. Ficava num canto da sala, observando tudo com um olhar distante, bebendo cachaça que alguém tinha trazido para esquentar o corpo durante a vigília, como diziam. A noite foi longa. As pessoas contavam histórias sobre meu pai, rezavam, cantavam velhos benditos que falavam da passagem para o outro mundo. As crianças mais novas acabaram dormindo nos cantos. Os mais velhos se revesavam na vigília. Por volta da meia-noite, muitas
pessoas já tinham ido embora, prometendo voltar pela manhã para o enterro. Só ficaram alguns parentes mais próximos que dormitavam nas cadeiras encostadas nas paredes. Foi quando notei Antônio conversando com seus dois amigos inseparáveis, Damião e Tião, rapazes da fazenda vizinha, que tinham a mesma fama de encrenqueiros que ele. Os três bebiam e conversavam em voz baixa, olhando de vez em quando para onde mamãe e eu estávamos. Havia algo naqueles olhares que me deixou inquieta, com um frio na barriga que não era apenas pelo luto. Por volta das 2as da manhã, Antônio se aproximou de mamãe.
"Mãe, a senhora precisa descansar um pouco", ele disse com uma gentileza que não era comum nele. "Vai deitar um pouco no quarto? Eu fico aqui velando o pai." Mamãe, exausta pelo sofrimento e pelas horas de vigília, hesitou por um momento, mas acabou concordando. Olhou para mim. Vai com sua mãe, menina, ordenou Antônio antes que ela pudesse falar. Ela não deve ficar sozinha numa hora dessas. Acompanhei mamãe até o quarto, sentindo os olhos de Antônio e seus amigos nos seguindo. Aquele frio na barriga aumentou, mas não conseguia entender porquê. era meu irmão. Afinal, por mais difícil
que fosse seu temperamento, por mais medo que eu tivesse dele às vezes, era sangue do meu sangue. O que poderia acontecer? O quarto era pequeno, com apenas uma cama de casal onde meus pais dormiam. Não havia muito espaço, mas me deitei ao lado de mamãe, que parecia ter envelhecido 10 anos em um único dia. Ela segurou minha mão, como fazia quando eu era pequena e tinha medo de tempestades. "Vai passar, minha filha", ela sussurrou, "Mais para si mesma do que para mim. Tudo nessa vida passa. Não sei quanto tempo se passou antes que a porta
do quarto se abrisse. Talvez eu tenha cochilado, exausta pelo dia emocional. A luz fraca de um lampião iluminou o quarto e vi Antônio parado na porta com seus dois amigos logo atrás. Havia algo em seus olhos que nunca tinha visto antes. Um brilho que não era de tristeza nem de raiva, mas de algo mais primitivo, mais assustador. "O que foi, Antônio?", perguntou mamãe, sentando-se na cama. "Nada não, mãe", ele respondeu, entrando no quarto e fechando a porta atrás de si. Damião e Tião entraram logo depois, bloqueando a saída. Só viemos ver se vocês estão bem.
Foi nesse momento que entendi que algo terrível estava prestes a acontecer. O olhar que trocaram, o jeito como se posicionaram no quarto, a maneira como Antônio sorriu, um sorriso que nunca vou esquecer enquanto viver. Agora o homem da casa sou eu. Ele disse, dando um passo em nossa direção. E tem umas coisas que precisam mudar por aqui. Minha mãe se levantou, colocando-se entre mim e eles. Mesmo em seu momento de maior fragilidade, seu instinto de proteção falou mais alto. O que pensa que está fazendo, Antônio? Ela perguntou, a voz firme, apesar do medo que devia
estar sentindo. Seu pai ainda não esfriou no caixão e você já não conseguiu terminar a frase. O tapa que Antônio desferiu foi tão forte que a fez cair de volta na cama ao meu lado. Gritei, tentando me levantar para ajudá-la, mas Damião já estava sobre mim, segurando meus braços com força, enquanto Tião segurava as pernas da minha mãe. Agora vocês vão aprender quem manda aqui", disse Antônio. E havia uma satisfação doentia em sua voz que me gelou até os ossos. O que aconteceu naquele quarto, naquela noite em que deveríamos estar velando meu pai, é algo
que nunca consegui contar a ninguém. Como colocar em palavras a violência, a humilhação, a dor física e emocional que sofremos nas mãos daqueles que deveriam nos proteger? Como descrever o som dos soluços abafados da minha mãe, tentando não gritar para não acordar meus irmãos mais novos no quarto ao lado? Como falar dos meus próprios gritos silenciados pela mão suja de Damião sobre minha boca? Horas que pareceram uma eternidade, um pesadelo do qual não conseguíamos acordar. E quando finalmente acabou, quando eles saíram do quarto rindo e coxixando entre si, ficamos ali, mamãe e eu, abraçadas, tremendo,
chorando em silêncio, incapazes de olhar uma para a outra, de falar sobre o que tinha acontecido. "Eles vão voltar", sussurrou mamãe depois de muito tempo, a voz tão baixa que mal pude ouvir. "Iso foi só o começo." E ela estava certa. Aquela noite foi apenas o início do nosso inferno particular. Um inferno que duraria anos, que mudaria para sempre quem éramos, que nos forçaria a tomar decisões que nunca imaginamos ser capazes de tomar. Mas naquela noite, deitada naquela cama, sentindo o cheiro de suor e cachaça que eles tinham deixado no ar, ouvindo os soluços contidos
da minha mãe, fiz uma promessa silenciosa. Uma promessa que manteria em segredo por anos, mas que nunca esqueci. Eles pagariam pelo que fizeram. De um jeito ou de outro, um dia eles pagariam. Amanhã chegou com uma crueldade particular naquele dia. O sol entrou pelas frestas da janela de madeira, como se nada tivesse acontecido, como se o mundo continuasse o mesmo. Mas nada estava igual. Tudo tinha mudado naquela noite, de uma maneira que nem minha mãe conseguíamos ainda compreender completamente. Levantamos em silêncio, evitando olhar uma para a outra. Doía mover o corpo, doía respirar, doía existir,
mas tínhamos um enterro para enfrentar, aparências para manter, um último a Deus para dar ao homem que, sem saber, tinha sido nossa única proteção contra o mal que vivia sob o mesmo teto. As pessoas começaram a chegar cedo para acompanhar o cortejo até o pequeno cemitério da comunidade. Antônio e seus amigos atuaram como se nada tivesse acontecido. Meu irmão até chorou na frente de todos quando fecharam o caixão. Lágrimas falsas que me deram mais nojo do que tristeza. O enterro foi como tantos outros naquela região. Simples, rápido, sob o sol forte que castigava as costas
já castigadas pelo trabalho. As pessoas jogaram flores sobre o caixão, rezaram, nos abraçaram, oferecendo palavras de conforto que não conseguiam nos alcançar. Estávamos além do conforto, além das palavras, além da compreensão de quem não tinha passado pelo que passamos. Voltamos para casa em silêncio. Uma casa que já não era mais um lar, mas uma prisão onde nossos carcereiros eram nosso próprio sangue. Uma casa onde o pesadelo não tinha acabado com o amanhecer, mas apenas começado, e duraria muito mais tempo do que podíamos suportar. Os dias que se seguiram ao enterro do meu pai foram como
viver num pesadelo em câmera lenta. A casa onde cresci, que já era pequena e apertada, tornou-se uma jaula, onde eu e minha mãe éramos animais acuados, sempre vigilantes, sempre com medo. Antônio assumiu o lugar do meu pai na roça, negociando com o coronel Jerônimo, para continuar o trabalho como meieo. à frente dos outros, se comportava como o filho responsável que tinha assumido o sustento da família após a morte repentina do pai. Mas dentro de casa era outra pessoa completamente diferente. As primeiras semanas foram as piores. Ele e seus amigos voltavam para casa bêbados quase todas
as noites. Mamãe tentava manter meus irmãos mais novos protegidos, mandando-os dormir cedo na casa de uma tia que morava por perto, inventando desculpas sobre ajudar com trabalhos na roça. Mas Pedro, que já tinha 12 anos, começava a desconfiar que algo estava errado. via os machucados na minha mãe. Notava o jeito como eu me encolhia quando Antônio entrava em um cômodo. "O que está acontecendo, Cida?", ele me perguntou uma tarde, enquanto apanhávamos lenha perto do riacho, longe dos ouvidos de qualquer um. "Por que mamãe sempre está chorando? Por que você nunca mais sorriu desde que papai
morreu?" Não consegui responder. Como explicar para uma criança o horror que vivíamos? Como colocar em palavras o inimaginável? Apenas abracei meu irmão, segurando as lágrimas que ameaçavam cair, e murmurei que tudo ficaria bem, que era apenas a tristeza pela morte do nosso pai, que logo passaria. Mas não passou. A situação só piorou com o tempo. Como minha mãe havia previsto, aquela primeira noite foi apenas o começo. Antônio parecia sentir prazer em nos humilhar, em nos submeter à sua vontade, em nos lembrar constantemente, que agora era ele quem mandava. Damião e Tião eram presenças constantes, participando
da crueldade, transformando o nosso sofrimento em algum tipo de entretenimento doo. O pior de tudo era a vergonha. a vergonha que nos impedia de pedir ajuda, de contar para alguém o que estava acontecendo dentro das quatro paredes daquela casa. Na roça, nas comunidades rurais como a nossa naquela época havia coisas que simplesmente não se falavam, segredos que se mantinham enterrados por gerações. "Se alguém souber, Sida, vão nos culpar", dizia minha mãe quando, desesperada, sugeri fugir, pedir ajuda à polícia, ao padre, a algum vizinho. "Vão dizer que provocamos, que é nossa culpa. É assim que as
coisas funcionam." E ela estava certa. Eu já tinha idade suficiente para entender como o mundo tratava mulheres como nós. Tinha visto como olhavam para Maria do Carmo depois do que aconteceu com ela. Como sussurravam que devia ter provocado que moça direita não anda sozinha. Tinha ouvido histórias de outras mulheres que tentaram denunciar abusos e acabaram sendo ainda mais maltratadas, às vezes até expulsas de suas comunidades. Então nos calamos, suportamos, sobrevivemos dia após dia, noite após noite, como quem aguenta uma tempestade interminável, esperando que em algum momento ela passe, mesmo sem acreditar realmente que isso aconteceria.
Meus irmãos mais novos, Pedro e João, percebiam que algo estava errado, mas não compreendiam o quê. eram poupados do pior, pois Antônio e seus amigos esperavam que estivessem longe ou dormindo. Mesmo assim, cresciam num ambiente de tensão constante, vendo sua mãe e irmã definhando física e emocionalmente, testemunhando brigas e violências que, mesmo sem entender completamente, iam moldando sua visão do mundo e de si mesmos. Mamãe tentava protegê-los como podia. Nos raros momentos em que Antônio saía para trabalhar sem seus comparsas, conseguíamos respirar um pouco, recuperar um fragmento de normalidade. Nesses momentos, ela ensinava aos meninos
o que podia a ler, a contar, a respeitar as mulheres, a ser diferentes do irmão mais velho. "Vocês são como o pai de vocês", ela dizia a eles. "Tem o coração dele, a bondade dele. Nunca esqueçam disso." Para mim, ela reservava conversas diferentes, sempre em sussurros, sempre quando tínhamos certeza de que estávamos sozinhas. "Um dia isso vai acabar, minha filha", ela prometia, segurando minhas mãos entre as suas. "Um dia vamos encontrar um jeito de sair daqui, de recomeçar em outro lugar. Mas até lá temos que ser fortes, temos que sobreviver". Era essa promessa que me
mantinha viva nos dias mais sombrios. a esperança de que algum dia encontraríamos uma saída, de que haveria uma vida além daquele inferno, um futuro onde pudéssemos respirar sem medo, dormir sem terror, viver sem a constante ameaça pairando sobre nossas cabeças. Meus queridos, sei que essa história é difícil de ouvir. Às vezes, quando conto, vejo nos olhos de quem escuta aquele brilho de incredulidade, como se pensassem: "Isso não pode ser verdade". Coisas assim não acontecem, mas acontecem sim. Aconteceram comigo, com minha mãe e acontecem até hoje com tantas mulheres e meninas por esse Brasil afora. Se
você está ouvindo isso e se identifica, saiba que não está sozinha. Deixe nos comentários de qual cidade está me assistindo. Seu testemunho, mesmo anônimo, pode dar forças a outra pessoa que está passando pelo mesmo. A situação perdurou por quase do anos. Dois anos que pareceram uma eternidade, onde cada dia era uma batalha para manter a sanidade, para não sucumbir completamente ao desespero. Eu tinha 16 anos quando as coisas começaram a mudar. Não porque Antônio ou seus amigos tivessem se tornado menos cruéis, mas porque algo dentro de mim e de minha mãe começou a se transformar.
Foi depois de uma noite particularmente brutal, quando Tião e Damião tinham bebido mais que o costume, e Antônio estava em um de seus piores momentos. Eles já tinham ido embora, deixando-nos quebradas, como sempre faziam. Mamãe e eu estávamos sentadas à mesa da cozinha no escuro, sem forças para acender o lampião, sem vontade de ver os novos machucados uma da outra. Não aguento mais", sussurrei, surpresa com a minha própria voz depois de horas de silêncio. "Prefiro morrer a continuar assim. Esperei que ela dissesse o que sempre dizia, que tínhamos que ser fortes, que um dia encontraríamos
uma saída, que por enquanto, precisávamos sobreviver, mas dessa vez foi diferente. "Eu também não aguento mais, minha filha", ela respondeu. E havia uma nova resolução em sua voz, algo que não escutava desde que meu pai estava vivo. "E não vamos morrer. Eles é que vão." Olhei para ela, tentando enxergar seu rosto na penumbra. Não podia acreditar no que tinha ouvido. Minha mãe, sempre tão resignada, sempre tão conformada com o destino que nos fora imposto, estava sugerindo algo que nunca tinha passado pela minha cabeça. Como? Perguntei. Minha voz apenas um sopro. Não sei ainda, ela respondeu.
Mas vamos encontrar um jeito. Eles não vão continuar fazendo isso com a gente. Não vão continuar fazendo isso com meus filhos. Naquela noite, algo mudou entre nós. Não éramos mais apenas vítimas, esperando que o horror acabasse por si só. Estávamos decididas a fazer alguma coisa, a tomar o controle de nossas vidas de volta, mesmo que isso significasse cruzar limites que nunca pensamos em cruzar. Nos dias que se seguiram, observamos, prestamos atenção aos horários, aos hábitos, aos momentos de vulnerabilidade. Antônio e seus amigos eram fortes, violentos, impiedosos, mas tinham pontos fracos. A bebida os deixava descuidados,
a arrogância os fazia subestimar duas mulheres que consideravam completamente subjugadas. Começamos a planejar em segredo, nos raros momentos em que conseguíamos conversar sem serem ouvidas. Era um plano simples, nascido do desespero e da determinação de quem não tinha mais nada a perder. Não podemos contar para Pedro e João", disse minha mãe. "Eles são jovens demais para carregar esse fardo." Concordei. Meus irmãos estavam sofrendo bastante, apenas por testemunhar a situação, sem compreender completamente o que estava acontecendo. Não podíamos envolvê-los ainda mais. Não podíamos fazer deles cúmplices do que estávamos planejando. O plano foi tomando forma aos
poucos, cada detalhe cuidadosamente pensado nas longas noites de insônia, nos momentos roubados entre os afazeres domésticos. Era arriscado, era perigoso, era nossa única esperança. A oportunidade surgiu numa noite de festa na comunidade vizinha. Era São João e todos estavam reunidos em torno da fogueira, comendo, bebendo, dançando, celebrando como se não houvesse amanhã. Antônio, como sempre, estava com Damião e Tião, os três já alterados pela cachaça desde cedo. "Hoje", sussurrou minha mãe quando eles saíram para a festa, deixando-nos em casa com a ordem de ter comida quente e esperando quando voltassem. Tem que ser hoje. Mandamos
Pedro e João para a casa da tia com a desculpa de que eles também mereciam participar um pouco da festa. Na verdade, queríamos eles longe do que estava para acontecer. Preparamos tudo conforme o combinado. A comida que eles exigiam, feijão, arroz, um guisado de carne que tínhamos guardado para ocasiões especiais, a mesa posta como eles gostavam, as garrafas de cachaça à vista, prontas para continuar a bebedeira que já tinham começado na festa. E o mais importante, a mandioca brava, ralada e misturada discretamente ao guisado. Uma quantidade pequena o suficiente para não ser percebida no sabor,
grande o suficiente para fazer o que precisava ser feito. A mandioca brava era algo que todas as mulheres da região conheciam e temiam. Se não for preparada corretamente, libera um veneno poderoso. Minha mãe sabia exatamente quanto usar, como usar. Tinha aprendido com sua própria mãe, que tinha aprendido com a mãe dela antes. É conhecimento de mulher, ela me explicou enquanto preparávamos. Passado de geração em geração para momentos como esse. Enquanto esperávamos, o medo e a determinação lutavam dentro de mim. O que estávamos prestes a fazer era irreversível, era criminoso. Era também naquele momento a única
forma que víamos de escapar do inferno em que vivíamos. Eles chegaram depois da meia-noite, bêbados como esperávamos, barulhentos, exigindo comida, impondo sua presença como sempre faziam. Sentaram-se à mesa, serviram-se generosamente do guisado, elogiaram o sabor entre goles de cachaça e piadas grosseiras. Mamãe e eu observávamos de longe, em silêncio, esperando. Não sentimos culpa, não sentimos hesitação, apenas um estranho distanciamento, como se estivéssemos assistindo a uma cena que não nos dizia respeito. Os primeiros sintomas apareceram rápido. Suor excessivo, náusea, desorientação. Eles não entenderam o que estava acontecendo. Acreditaram que era apenas o excesso de bebida. Quando
perceberam que algo estava errado, já era tarde demais. Assistimos impassíveis, enquanto eles se contorciam, gritavam, imploravam por ajuda. Não movemos um dedo naquele momento. Não éramos mais a mãe amorosa e a filha obediente. Éramos vingadoras, executoras de uma sentença que eles mesmos tinham assinado com seus atos. Quando finalmente ficaram imóveis, quando o último suspiro saiu de seus corpos, olhamos uma para a outra. Não havia necessidade de palavras. O que tinha que ser feito foi feito. O que viria depois enfrentaríamos juntas. Limpamos tudo, a mesa, os pratos, a cozinha inteira. Arrastamos os corpos para fora da
casa, até uma área mais afastada, onde o solo era mais macio. Cavamos durante horas, sob a luz fraca da lua, nossas mãos sangrando com o esforço, nossos corpos exaustos, mas nossas mentes estranhamente calmas. Os enterramos fundo, lado a lado, numa cova sem marcas, sem ornamentos, sem orações. Não havia lugar para eles no céu. Não havia lugar para eles em nossas memórias futuras, apenas no silêncio da terra que agora os cobria. Voltamos para casa antes do amanhecer. Limpamos a nós mesmas, queimamos as roupas sujas, espalhamos as cinzas pelo quintal. Quando meus irmãos voltaram na manhã seguinte,
encontraram a casa limpa e silenciosa, como se nada tivesse acontecido. "Onde está Antônio?", perguntou Pedro, notando a ausência do irmão mais velho. "Foi para a cidade com os amigos", respondeu minha mãe sem hesitar. "Disse que conseguiu um trabalho melhor por lá", ninguém questionou. Era comum que jovens da roça partissem para tentar a sorte nas cidades grandes. Muitos nunca voltavam. Fosse por terem encontrado uma vida melhor. Fosse por terem encontrado apenas mais miséria. No início, ainda havia perguntas esporádicas. Algum vizinho que estranhava não ter visto os três rapazes, alguém que perguntava se tinham mandado notícias. Com
o tempo, as perguntas cessaram. Pessoas desapareciam no sertão o tempo todo, engolidas pela seca, pela pobreza, pela distância. Mamãe e eu nunca falamos sobre o que aconteceu naquela noite. Não havia necessidade. Era um segredo que carregávamos juntas, um fardo que dividíamos, uma linha invisível que atravessamos sem possibilidade de retorno. A vida continuou, diferente, mas continuou. Assumimos o trabalho na roça, eu e mamãe, junto com meus irmãos, que já estavam crescendo. Era duro, mas era honesto. A ausência de Antônio e seus amigos era como tirar um peso esmagador de nossas costas. Voltamos a respirar, a dormir
sem medo, a existir sem a sombra constante do terror. As cicatrizes físicas foram sarando com o tempo. As outras, as invisíveis, essas nunca desapareceram completamente. Estavam ali sob a superfície, lembrando-nos do preço que pagamos por nossa liberdade, do limite que cruzamos para sobreviver. Foram anos difíceis, mas de uma dificuldade diferente. A luta contra a pobreza, contra a seca, contra o esquecimento. Isso era familiar, era o que sempre conhecemos. Não era mais a luta contra o monstro dentro de casa, contra o terror das noites sem fim, contra a humilhação que corroía a nossa alma. Pouco a
pouco, fomos reconstruindo o que Antônio tinha destruído. A confiança, a segurança, a capacidade de olhar para o futuro e ver algo além do medo. Não foi fácil, não foi rápido, mas aconteceu. Fomos sobreviventes em mais de um sentido, mais fortes do que jamais imaginamos ser. E por trás de tudo, sempre presente, mas nunca mencionado, estava aquele segredo. Aquela noite, aquela cova sem nome na terra vermelha do sertão, o preço que pagamos pela nossa libertação. 5 anos se passaram desde aquela noite. 5 anos de um silêncio pesado que mamãe e eu carregávamos como um pacto secreto.
Ninguém nunca descobriu o que aconteceu com Antônio, Damião e Tião. Algumas pessoas da comunidade chegaram a comentar que tinham ouvido falar que estavam trabalhando em São Paulo. Outros diziam que tinham ido para o garimpo no Pará. Histórias que alimentávamos discretamente, sem confirmar nem negar, deixando que tomassem vida própria e substituíssem a verdade que só nós duas conhecíamos. Naqueles 5 anos, muita coisa mudou. Pedro, que tinha 12 anos quando tudo aconteceu, agora estava com 17, quase um homem feito, forte e determinado como nosso pai. João, com 15 era mais sonhador. Falava em estudar, em sair da
roça um dia, em conhecer o mundo além daqueles morros. Eles cresceram sem a sombra de Antônio, sem o veneno de seu ódio e violência, contaminando suas almas jovens. E isso era uma vitória silenciosa que mamãe e eu celebrávamos cada dia. Trabalhávamos duro na roça, os quatro juntos. Não era fácil. Nunca foi fácil a vida do sertanejo, mas havia uma paz que antes não conhecíamos. À noite, sentados ao redor da mesa simples de madeira que meu pai tinha feito anos antes, conversávamos, ríamos, às vezes, compartilhávamos o pouco que tínhamos com uma gratidão que só quem já
esteve no fundo do poço consegue sentir. Eu tinha 21 anos e mesmo jovem já carregava mais experiências dolorosas do que muita gente acumula numa vida inteira. Os pesadelos ainda vinham, menos frequentes com o passar do tempo, mas ainda vividos. ainda capazes de me fazer acordar suando frio, sufocando um grito para não alarmar o resto da casa. Mamãe também tinha os dela, eu sabia. Às vezes a encontrava sentada sozinha na cozinha no meio da noite, olhando para o nada, as mãos trêmulas segurando uma xícara de chá a muito fria. Nunca falávamos sobre aqueles tempos, sobre o
que tínhamos passado, sobre o que tínhamos feito. Era como se tivéssemos feito um acordo tácito de enterrar aquelas memórias junto com os corpos daqueles que tanto nos fizeram sofrer. Mas mesmo enterradas, elas estavam lá como raízes profundas de uma árvore venenosa, invisíveis na superfície, mas ainda vivas, ainda influenciando tudo ao seu redor. Foi no sétimo aniversário da morte do meu pai e, consequentemente próximo à data do que tínhamos feito, que as coisas começaram a mudar novamente. Estávamos todos na sala depois do jantar, quando ouvimos batidas fortes na porta. Não era comum receber visitas àquela hora,
muito menos daquele jeito. E imediatamente senti um frio no estômago, um presságio de que algo não estava certo. Pedro, já assumindo o papel do homem da casa, foi atender. Era o filho mais velho do seu Manuel, nosso vizinho mais próximo, ofegante e agitado. "Tem gente perguntando pelo Antônio na venda do Zé Pequeno", ele disse, sem nem entrar direito. "Dois homens que ninguém conhece por aqui." parentes do Damião e do Tião, pelo que entendi. Senti o sangue gelar nas veias. Em 5 anos, nunca tínhamos enfrentado uma situação assim. Olhei para minha mãe, que tinha empalidecido visivelmente,
mas mantinha a compostura diante dos meninos. Devem ser primos deles. Ela disse com uma calma que eu sabia ser apenas de superfície. Antônio escreveu ano passado dizendo que estava trabalhando com eles em São Paulo. Amanhã vou até à venda falar com esses homens. Pedro e João pareceram aceitar a explicação, mas eu conhecia a minha mãe bem demais para não perceber o terror escondido por trás de seus olhos. Assim que os meninos foram dormir, nos encontramos na cozinha falando em sussurros, apesar da casa silenciosa. Eles vieram procurar mãe disse a voz trêmula. Depois de tanto tempo,
era de se esperar. Ela respondeu, surpreendendo-me com sua lucidez. Mais cedo ou mais tarde, alguém ia estranhar, alguém ia querer saber, especialmente a família do Damião, que era mais chegada. E agora? Perguntei, sentindo o pânico crescer. Se descobrirem, se souberem o que fizemos, não vão descobrir. Ela cortou a voz firme. Não tem como provar nada. O que fizemos está bem enterrado, você sabe disso. Mas eu não estava tão segura. Olhei pela janela pequena da cozinha, para a escuridão lá fora, para aquele pedaço de terra distante, onde anos antes tínhamos enterrado nosso segredo junto com nossos
torturadores. E se alguém tivesse visto? E se alguém soubesse? E se esses homens não fossem apenas parentes preocupados, mas pessoas que já suspeitavam de algo, precisamos nos preparar para o pior", disse finalmente, voltando a olhar para minha mãe. "Se eles descobrirem, se vierem atrás de nós?" Não precisei terminar a frase. Mamãe entendeu perfeitamente o que eu queria dizer. Tínhamos cruzado uma linha anos atrás, uma linha que a maioria das pessoas nunca imagina cruzar. E se fosse necessário, cruzaríamos novamente. Amanhã vou à venda. Ela decidiu. Vou falar com esses homens, descobrir o que realmente querem. Enquanto
isso, você fica em casa com os meninos. Se eu não voltar até o meio-dia. Nem pense nisso. Interrompi, horrorizada com a possibilidade. Vamos juntas. Sempre enfrentamos tudo juntas. Ela hesitou, depois concordou com um aceno de cabeça. Passamos o resto da noite planejando, pensando em todas as possibilidades, em todos os cenários. Se fossem apenas parentes preocupados, manteríamos a história que tínhamos criado. Antônio, Damião e Tião tinham ido para São Paulo, depois para o Garimpo. Mandavam notícias raramente. A última carta tinha sido havia mais de um ano. Mas se suspeitassem de algo, se perguntassem demais, se tentassem
nos intimidar. Bem, não éramos mais as mesmas mulheres frágeis e assustadas de anos atrás. Tínhamos endurecido. Tínhamos aprendido que às vezes a única saída é criar sua própria porta, mesmo que isso signifique derrubar paredes que a maioria das pessoas jamais ousaria tocar. Meus queridos que estão me acompanhando, vocês já sentiram aquele medo profundo, aquele pavor que chega até os ossos quando percebe que um segredo terrível pode ser descoberto? É como estar na beira de um abismo, sentindo o chão desmoronar sob seus pés, sabendo que a qualquer momento pode cair no vazio. Se você já sentiu
algo parecido, comenta aí de que cidade está me assistindo. É reconfortante saber que não estou sozinha nessas memórias tão pesadas. Na manhã seguinte, vestimos nossas melhores roupas, que ainda assim eram muito simples, e fomos até a venda do Zé Pequeno. Caminhamos em silêncio, cada uma perdida em seus próprios pensamentos, preparando-se para o que estava por vir. A venda ficava a cerca de 40 minutos de caminhada da nossa casa, na beira da estrada de terra que levava à cidade. Quando chegamos, vi imediatamente quem deveriam ser os tais homens. Estavam sentados em um banco do lado de
fora da venda. bebendo cachaça, apesar do horário, olhando ao redor com aquela desconfiança típica de quem não é do lugar. Um deles era mais velho, devia ter uns 50 anos, cabelos grisalhos, rosto marcado pelo sol e pelo tempo. O outro era mais jovem, talvez uns 30, e havia algo em seu olhar que me lembrou imediatamente da Mião. O mesmo brilho malicioso, a mesma arrogância mal disfarçada. Engoli o medo que subiu pela garganta e segui minha mãe, que caminhava decidida em direção a eles. Zé Pequeno, o dono da venda, nos viu chegando e fez um gesto
discreto com a cabeça, indicando os homens, confirmando que eram eles que estavam procurando por Antônio. "Bom dia", minha mãe cumprimentou, a voz surpreendentemente firme. Soube que estão procurando por meu filho Antônio. Os homens nos olharam de cima a baixo, avaliando-nos com uma curiosidade que me deixou inquieta. O mais velho se levantou, estendendo a mão para minha mãe. Jerônimo Santana, ele se apresentou. Tio do Damião, e esse é meu filho, Juvenal. Mamãe apertou a mão dele brevemente, depois voltou a cruzar os braços sobre o peito, uma postura defensiva que não passou despercebida. Sebastiana Ferreira, ela disse,
"E essa é minha filha Aparecida". Seu filho saiu com o meu sobrinho e o Tião faz quanto tempo mesmo? Perguntou Jerônimo, os olhos fixos no rosto da minha mãe, procurando qualquer sinal de nervosismo ou mentira. Vai fazer seis anos em dezembro. Mamãe respondeu sem hesitar, mantendo a história que tínhamos combinado. Foram para São Paulo, depois para o garimpo no Pará. Mandaram notícias algumas vezes. A última foi quando, Cida? Ano passado. Respondi entrando no jogo. Uma carta bem curta, só dizendo que estavam bem, que tinham encontrado trabalho numa fazenda grande por lá. Jerônimo e Juvenal trocaram
um olhar que não consegui decifrar. Havia desconfiança ali, mas também algo mais, algo que me deixou ainda mais alerta. Estranho, disse Juvenal falando pela primeira vez. Porque nós também recebemos uma carta do Damião ano passado, mas ele dizia que estava vindo visitar a família, que tinha saudades, que queria ver todo mundo. A carta chegou em maio. Esperamos, esperamos. E ele nunca apareceu. Senti o chão desaparecer sob meus pés. Uma carta. Como poderia haver uma carta se Damião estava morto, enterrado num canto esquecido da nossa propriedade há 5 anos. Olhei rapidamente para minha mãe, que mantinha
a expressão controlada. Mas vi um músculo se contrair em seu rosto, um sinal minúsculo de tensão que só eu, que a conhecia tão bem, poderia notar. "Isso é muito estranho", ela disse. A voz ainda calma, mas com uma nota de preocupação que não estava lá antes. A carta que recebemos não mencionava nada sobre voltar. Talvez tenham mudado de ideia no último momento, ou talvez não terminou a frase, deixando no ar a insinuação de que algo poderia ter acontecido com eles no caminho. Era uma jogada arriscada, mas necessária diante daquela revelação inesperada. Ou talvez, disse Jerônimo,
dando um passo em nossa direção. Alguém esteja mentindo sobre o paradeiro deles. Houve um momento de tensão tão palpável que parecia que podíamos cortá-la com uma faca. Os olhos de Jerônimo, duros e desconfiados, fixos nos da minha mãe, Juvenal, se levantando lentamente, a mão descansando casualmente perto da cintura, onde podia ver o cabo de uma faca. Minha mãe, imóvel como uma estátua, o rosto uma máscara de dignidade ofendida e eu, sentindo o coração bater tão forte que tinha certeza que todos podiam ouvir. O que exatamente está insinuando seu Jerônimo?, perguntou mamãe. A voz agora com
uma dureza que combinava com a do homem à sua frente. Ele não respondeu imediatamente. Nos estudou por mais alguns segundos, como se tentasse ler a verdade em nossos rostos, em nossa postura, em nosso medo mal disfarçado. "Nada", disse finalmente, recuando um passo. "Não estou insinuando nada. Só estamos preocupados com nosso menino, como a senhora deve entender. Minha mãe assentiu, a tensão em seus ombros diminuindo ligeiramente. Claro que entendo. Também estou preocupada com Antônio. Já faz tempo que não temos notícias. Se souberem de algo, por favor, nos avisem. Com certeza, respondeu Jerônimo. Mas havia um tom
em sua voz que não combinava com suas palavras. E a senhora também, se tiver notícias. Concordamos, trocamos algumas palavras de despedida e nos afastamos. Andamos em silêncio até estarmos longe o suficiente da venda, fora do alcance dos olhos e ouvidos de Jerônimo e Juvenal. Só então mamãe parou, encostando-se em uma árvore à beira da estrada, o rosto finalmente mostrando o terror que tinha escondido tão bem. A carta? Sussurrei ainda sem acreditar. Como pode haver uma carta? Alguém escreveu por eles?" Ela respondeu a voz baixa, olhando ao redor para ter certeza de que estávamos realmente sozinhas.
Ou eles estão mentindo, tentando nos pegar em contradição. Ambas as possibilidades eram aterrorizantes. Se alguém tinha escrito a carta, significava que sabia o que tinha acontecido e estava jogando um jogo cruel conosco. Se estavam mentindo para nos testar, significava que já suspeitavam de algo e estavam apenas procurando confirmação. Eles vão voltar", disse sentindo o mesmo medo que tinha sentido anos atrás quando Antônio e seus amigos entraram no quarto durante o velório do meu pai. "Não vão desistir tão fácil." "Não, não vão", concordou mamãe, endireitando-se, a determinação voltando ao seu rosto. Mas nós também não. Voltamos
para casa em silêncio, cada passo nos levando mais fundo em pensamentos sombrios, em planos que nunca imaginamos que teríamos que fazer. A sensação era de estar revivendo um pesadelo, de estar voltando aqueles dias de terror constante, de medo paralisante. Mas havia uma diferença crucial. Não éramos mais vítimas em defesas. Tínhamos provado a nós mesmas, da maneira mais brutal possível, que éramos capazes de lutar, de sobreviver, de fazer o impensável quando necessário. Em casa, contamos uma versão editada para Pedro e João, que parentes de Damião e Tião estavam procurando por notícias, que estavam preocupados, que talvez
viessem nos visitar para saber mais. Não mencionamos a carta, não mencionamos as acusações veladas, não deixamos transparecer o medo que sentíamos. Naquela noite, depois que todos foram dormir, mamãe e eu nos encontramos novamente na cozinha. O plano que elaboramos era simples e terrível ao mesmo tempo. Se Jerônimo e Juvenal voltassem, se nos ameaçassem, se tentassem expor o que suspeitavam? Bem, o sertão era um lugar onde pessoas desapareciam o tempo todo. Dois a mais não fariam diferença. É horrível pensar assim, sussurrei, sentindo o peso da decisão que estávamos tomando. Seriam mais dois, mais duas vidas. Não
é o que queremos, respondeu mamãe, segurando minhas mãos entre as suas. é o que pode ser necessário para proteger a nós mesmas, para proteger seus irmãos, para proteger o futuro que conseguimos construir depois de tanto sofrimento. Eu sabia que ela estava certa. Não tínhamos escolhido esse caminho. Ele tinha sido imposto a nós pela crueldade de Antônio e seus amigos, pela sociedade que fechava os olhos para o sofrimento de mulheres como nós, pelo sistema que nos deixava completamente desamparadas. Tínhamos feito o que precisava ser feito para sobreviver e, se fosse necessário, faríamos novamente. Durante os dias
que se seguiram, vivemos em constante estado de alerta. Cada som na noite nos fazia pular da cama. Cada estranho na estrada nos deixava em pânico. Cada olhar dos vizinhos parecia carregado de suspeitas não ditas. Mantínhamos facas escondidas em vários lugares da casa. Continuávamos a planejar, a nos preparar para o pior. Mas Jerônimo e Juvenal não voltaram. Não imediatamente deixaram passar uma semana, depois duas, talvez acreditando que o tempo nos deixaria mais relaxadas, menos vigilantes. Estavam enganados. Cada dia que passava apenas aumentava nossa paranoia, nossa certeza de que viriam, nossa determinação de estar prontas quando isso
acontecesse. Estávamos preparadas para enfrentar homens, para lutar contra acusações, para defender nosso terrível segredo com tudo que tínhamos, o que não esperávamos, o que nunca poderíamos ter previsto, era a forma como nosso passado voltaria para nos assombrar, não pelas mãos de estranhos sedentos por vingança, mas pelo meio mais improvável e devastador possível. Foi numa tarde de sábado, quase um mês depois do encontro na venda, que tudo veio à tona. Estávamos todos em casa. Mamãe preparando o jantar, eu ajudando com os legumes, Pedro consertando uma ferramenta quebrada, João lendo um livro emprestado do filho do professor.
Uma cena de normalidade doméstica que tinha se tornado preciosa para nós depois de tantos anos de terror. O sol começava a se pôr quando ouvimos batidas na porta. Não eram batidas fortes e agressivas, como tínhamos imaginado em nossos pesadelos, mas suaves, quase hesitantes. Ainda assim, trocamos um olhar alarmado. Mamãe e eu peguei discretamente a faca que estava usando para cortar os legumes, escondendo-a nas dobras da saia. Foi Pedro quem atendeu, como sempre. Ouvimos sua exclamação de surpresa, depois sua voz animada chamando por mamãe. Perplexas, fomos até a porta. E lá, parado na soleira, magro e
abatido, mas inconfundivelmente vivo, estava Tião. O choque paralisou meu corpo inteiro. Ali, diante de nós, estava Tião, mais magro, mais velho, com cicatrizes visíveis no rosto, mas inegavelmente vivo. Como era possível? Eu mesma tinha visto seu corpo sem vida, tinha ajudado a arrastá-lo para a cova, tinha jogado terra sobre ele. Senti o mundo girar ao meu redor. As paredes da casa pareceram se fechar sobre mim. Pedro estava animado, abraçando aquele que considerava um amigo mais velho, que tinha retornado depois de tantos anos. João, que mal se lembrava dele, mantinha distância, observando com curiosidade. Mamãe estava
ainda mais pálida do que eu devia estar, mas mantinha a compostura com uma força que nunca entendi de onde vinha. "Tião!", ela exclamou com uma naturalidade que me espantou. "Depois de tanto tempo, entre, entre." Ele entrou mancando, apoiando-se numa bengala improvisada. Quando passou por mim, seus olhos encontraram os meus por um instante. Não havia ódio neles, como eu esperaria. Não havia acusação. Havia algo diferente, algo que não consegui identificar imediatamente. "Onde estão Antônio e Damião?", perguntou Pedro enquanto o ajudava a sentar-se à mesa. "Vieram com você?", Tião hesitou, olhando rapidamente para mim e para mamãe
antes de responder. "Não, não vieram", disse finalmente. "É uma longa história. Estamos todos ansiosos para ouvir", disse mamãe colocando uma caneca de café na frente dele. "Mas primeiro descanse um pouco. A viagem deve ter sido longa." Enquanto Pedro e João bombardeavam Tião com perguntas sobre a cidade grande, sobre as aventuras que tinha vivido, sobre o que tinha visto nesses anos todos, mamãe e eu trocávamos olhares tensos, como ele tinha sobrevivido, como tinha voltado e, mais importante, o que diria aos meninos quando a noite caiu e o jantar foi servido, sentia-me como se estivesse vivendo um
pesadelo acordada. Comemos em silêncio, interrompido apenas pelas perguntas ocasionais dos meninos e pelas respostas curtas de Tião. Ele comia devagar, como se cada movimento fosse doloroso. "Os meninos precisam dormir", disse mamãe finalmente, quando a refeição acabou. "Amanhã vocês conversam mais." Pedro e João protestaram, mas ela foi firme. Relutantes, foram para o quarto, deixando nós três sozinhos na cozinha. O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de perguntas não feitas, de acusações não pronunciadas, de um medo tão denso que parecia dificultar a respiração. "Como você?" Comecei incapaz de completar a pergunta. Sobrevivi? Ele completou, a voz
rouca. Por pouco. A mandioca deve ter comido menos que os outros. Ou talvez meu corpo reagiu diferente. Fiquei doente, muito doente. Achei que ia morrer. Acho que vocês também acharam. Vimos você parar de respirar, disse mamãe a voz baixa, controlada. Vimos seus olhos vazios. Quase morri, ele confirmou. Mas quando vocês me enterraram, ainda havia um fio de vida em mim, fraco, mas estava lá. estremecia ao imaginar o horror. Ele, parcialmente consciente, sendo arrastado, jogado numa cova, coberto de terra. "Como conseguiu sair?", perguntei sem conseguir imaginar como alguém no estado em que o vimos estaria forte
o suficiente para cavar seu caminho para fora de uma sepultura. "Alguém me salvou", ele disse, olhando para as próprias mãos. "Um caçador que passava com seus cachorros. Os cachorros sentiram algo, começaram a cavar. Ele me encontrou ainda vivo, embora mal. Mamãe e eu trocamos olhares assustados. Alguém sabia? Alguém tinha testemunhado nosso crime? Quem? Perguntou mamãe. A voz trêmula pela primeira vez naquela noite. Quem te salvou? Um homem que não era daqui. Estava apenas de passagem. Tinha seu próprio passado para esconder, pelo que entendi. Não fez perguntas, não contou para ninguém. me levou para longe, cuidou
de mim até eu me recuperar o suficiente. E Antônio? Damião? Perguntei, mesmo já sabendo a resposta. Mortos respondeu simplesmente. O veneno funcionou perfeitamente neles. Quando o caçador me encontrou, já era tarde demais para eles. Outro silêncio pesado se instalou entre nós. A pergunta que martelava em minha mente finalmente escapou pelos meus lábios. Por que voltou? Ele me olhou longamente antes de responder. Não para me vingar se é o que está pensando disse finalmente. Embora tenha pensado nisso por muito tempo. No começo, quando estava me recuperando, o ódio era a única coisa que me mantinha vivo.
Planejava voltar, contar para todo mundo o que vocês tinham feito, ver vocês na cadeia, ou pior. Senti meu coração acelerar. Era isso. Então, ele tinha voltado para nos expor, para nos denunciar, para destruir a vida que tínhamos reconstruído com tanto esforço. Então, por que não fez isso ainda?, perguntou mamãe, a voz agora firme. Por que essa conversa? Por que não foi direto à polícia? Porque entendi? Ele respondeu simplesmente, "Com o tempo, quando a raiva diminuiu, quando pude pensar claramente de novo, entendi o que tínhamos feito com vocês, o que eu tinha feito, o que Antônio
e Damião tinham feito. Suas palavras me pegaram de surpresa. De todas as coisas que esperava ouvir, essa confissão não era uma delas. Vi outras mulheres sofrendo o mesmo", continuou ele. "Na cidade, nos lugares por onde passei, mulheres abusadas, agredidas, tratadas como se não fossem gente. E sempre havia homens como nós, como eu era, rindo, bebendo, tratando tudo como uma grande brincadeira. Lágrimas silenciosas escorriam pelo meu rosto. Não eram lágrimas de medo, nem de arrependimento, mas de uma emoção que não conseguia nomear. Ver aquele homem, um dos que tinha causado tanto sofrimento, falando assim, reconhecendo o
que tinha feito, era algo que nunca pensei que aconteceria. "Mudei, ele continuou, ou pelo menos estou tentando. Não sou mais aquele tião. Talvez precisasse quase morrer para entender o que estava fazendo com os outros. Passei os últimos anos tentando consertar o que podia, ajudando mulheres a escapar de situações como a de vocês. Não é muito, não é o suficiente, mas é algo. Minha mãe, que raramente demonstrava a emoção, estava chorando agora. Um choro silencioso, contido, mas real. Vim para pedir perdão ele disse, olhando para cada uma de nós. Não para receber. Sei que o que
fizemos é imperdoável. Vim para que soubessem que entendo porque fizeram o que fizeram, que não as culpo, que se eu estivesse no lugar de vocês, teria feito o mesmo. Meus queridos que continuam comigo nesta jornada dolorosa, vocês já passaram por um momento assim em que algo que você acreditava ser absoluto, preto no branco, certo e errado, de repente se revela muito mais complexo? em que a pessoa que você via como monstro se revela humana, com arrependimentos, com capacidade de mudança. Se já viveu algo parecido, deixa nos comentários de qual cidade está me assistindo. É um
conforto saber que não estou sozinha ao reviver essas memórias tão pesadas. Vou embora amanhã, continuou Tian. Não pretendia ficar. Só queria que soubessem que estou vivo, mas que o segredo de vocês está seguro comigo. Jerônimo e Juvenal, eles suspeitam, mas não sabem. Não tem provas e nunca terão. Como sabe deles? Perguntei, surpresa de que ele soubesse sobre a visita do tio e do primo de Damião. Tenho amigos na região respondeu vagamente. Pessoas que me informam. Soube que estavam procurando. Soube que vieram até vocês. Por isso decidi vir agora para que entendessem que não precisam temer.
Mamãe se levantou, pegou um frasco de cachaça que guardávamos para remédios e serviu um pouco para cada um de nós. Bebemos em silêncio, absorvendo a estranheza daquela situação. éramos três pessoas unidas por um crime, por um segredo, por um passado que nunca poderíamos apagar, mas que de alguma forma tinha nos transformado. "Onde vai ficar esta noite?", perguntou mamãe finalmente. "Na casa do velho Manuel", respondeu Tiã. Ele não sabe de nada. Acha que sou apenas um conhecido de vocês que está de passagem. A senti aliviada de que ele não ficaria sob nosso teto. Apesar de suas
palavras, apesar de acreditar em seu arrependimento, não conseguiria dormir, sabendo que ele estava na mesma casa. Quando ele se levantou para partir, mamãe fez algo que me surpreendeu. Segurou a mão dele brevemente, um gesto que não era de afeto nem de perdão, mas de reconhecimento. Um reconhecimento silencioso do que tinha acontecido, do que todos tínhamos feito, do que nunca poderíamos mudar. "O que vai dizer aos meninos?", perguntei, de repente preocupada com a história que ele contaria a meus irmãos. A verdade, ele respondeu, ou parte dela, que Antônio e Damião morreram na cidade de doença, que
tenho vivido por aí, trabalhando onde posso, nada sobre o que aconteceu aquela noite. Eles não precisam saber. Concordei, grata por ele entender que meus irmãos precisavam ser poupados dessa história terrível. Eles tinham crescido sem a sombra de Antônio. Tinham construído suas próprias identidades, seus próprios valores. Revelar a verdade agora só traria sofrimento desnecessário. Tião cumpriu sua palavra. Na manhã seguinte, contou aos meninos uma versão sanitizada de sua história. Como tinha ido para São Paulo com Antônio e Damião, como os dois tinham adoecido e morrido, como ele tinha sobrevivido trabalhando em diferentes lugares, aprendendo diferentes ofícios.
Pedro e João ouviram fascinados fazendo perguntas, absorvendo cada detalhe daquela história que em sua inocência acreditavam ser totalmente verdadeira. Quando Tião partiu depois do almoço, prometendo escrever uma promessa que, no fundo, sabíamos que não seria cumprida, senti um peso estranho se levantar dos meus ombros. Não era perdão. Nunca poderia perdoar completamente o que ele e os outros tinham feito conosco. Mas era algo parecido com paz. A paz de saber que nosso segredo estava seguro, que poderíamos continuar vivendo a vida que tínhamos construído com tanto esforço e sacrifício. Naquela noite, quando todos já dormiam, mamãe e
eu nos encontramos novamente na cozinha como tantas vezes antes. Sentamos em silêncio por um longo tempo, cada uma perdida em seus próprios pensamentos. "Acha que ele realmente mudou?", Perguntei finalmente. Não sei respondeu mamãe honestamente. Talvez as pessoas podem mudar quando enfrentam algo que as força a olhar realmente para si mesmas. Como nós mudamos, completei. Ela assentiu. Como nós mudamos, porque era verdade. Não éramos mais as mesmas mulheres de antes. A violência que tínhamos sofrido, a violência que tínhamos cometido em resposta tinha nos transformado, nos endurecido em alguns aspectos, nos tornado mais compassivas em outros, mais
cautelosas, mais conscientes do que os seres humanos são capazes de fazer, tanto de mal quanto de bem. Nos dias que se seguiram, esperamos ansiosamente por notícias de que Jerônimo e Juvenal tinham retornado, de que estavam fazendo mais perguntas, de que suspeitavam de algo. Mas nada aconteceu. Seja o que for que Tião tenha dito ou feito, pareceu acalmá-los ou afastá-los. Nunca mais ouvimos falar deles. A vida continuou seu curso. Pedro, aos 19 anos, começou a namorar a filha do professor, uma moça doce e inteligente que parecia iluminar a casa quando vinha nos visitar. João, aos 17
insistia cada vez mais em seu sonho de estudar, de ir para a cidade, de encontrar um caminho diferente do trabalho na roça. Mamãe envelhecia lentamente, mas mantinha a mesma força, a mesma determinação que sempre teve. E eu eu tinha 23 anos, uma idade em que muitas moças da região já estavam casadas com filhos. Mas minha experiência tinha me moldado de forma diferente. Não conseguia me ver naquele papel tradicional. Não conseguia confiar facilmente, especialmente em homens. Os poucos pretendentes que apareceram foram gentilmente afastados para a frustração de mamãe que sonhava com netos. Mas em segredo no
meu coração havia outro sonho tomando forma. Um sonho inspirado ironicamente pelas palavras de Tião, sobre ajudar outras mulheres. Se ele, que tinha sido parte do problema, podia mudar e tentar fazer algo positivo, o que eu poderia fazer? Eu que tinha vivido na pele o que tantas outras mulheres sofriam silenciosamente. Foi nesse período que comecei a me aproximar mais das mulheres da comunidade. Não apenas das senhoras mais velhas que mamãe conhecia há anos, mas das moças da minha idade, das recém-casadas, das que tinham acabado de ter filhos. Conversei, escutei, observei e o que vi me partiu
o coração. Em muitas delas reconheci o mesmo olhar que via no espelho durante aqueles anos terríveis. O mesmo medo disfarçado, a mesma vergonha, a mesma resignação diante do insuportável. "O que anda fazendo com essas mulheres?", perguntou mamãe uma noite depois que eu tinha passado à tarde com Maria da Luz, uma jovem de 20 anos que todos sabiam que apanhava do marido. Conversando, respondi simplesmente, escutando. Ela me olhou longamente, como se pudesse ver através de mim, ler meus pensamentos, entender meus planos antes mesmo que eu os compreendesse completamente. "Tenha cuidado", disse finalmente. "Este mundo não gosta
de mulheres que fazem perguntas que causam problemas." Sei disso, respondi, mas também sei que algumas perguntas precisam ser feitas, que alguns problemas precisam ser causados. Ela sorriu então, um sorriso raro e genuíno que iluminou seu rosto cansado. Você é forte, minha filha. Sempre foi mais forte do que eu. Não, mãe discordei, segurando suas mãos calejadas. Sou forte porque você me ensinou a ser. Porque vi em você um exemplo de como sobreviver às piores tempestades sem perder a dignidade, sem perder a humanidade. Naquela noite, algo mudou entre nós. O segredo que compartilhávamos, que tinha sido um
fardo por tanto tempo, se transformou em algo diferente. Não mais apenas um crime que tínhamos cometido juntas, mas um testemunho da nossa resistência, da nossa recusa em aceitar um destino que outros tinham decidido para nós. Não era orgulho. Nunca poderíamos nos orgulhar de tirar vidas, mesmo que tenham sido as vidas daqueles que nos machucaram tão profundamente. Mas era uma espécie de aceitação, de compreensão de que nossas escolhas, por mais terríveis que fossem, tinham sido feitas em um contexto onde todas as outras portas estavam fechadas. Nas semanas e meses que se seguiram, comecei a agir de
forma mais deliberada. Ensinei mulheres a ler e escrever em pequenas reuniões disfarçadas de encontros para costura ou estudo da Bíblia. Compartilhei conhecimentos de ervas e remédios que mamãe tinha me ensinado, incluindo formas de evitar gravidezes indesejadas. Um conhecimento poderoso e proibido que passava de mulher para mulher a gerações. Mais importante, criei um espaço onde mulheres podiam falar, podiam compartilhar suas histórias, podiam encontrar consolo e força umas nas outras. Um espaço onde não eram julgadas, onde não eram culpadas por seu próprio sofrimento, onde eram vistas como seres humanos completos, com direito à dignidade, ao respeito, à
segurança. Era um trabalho perigoso, um trabalho que desafiava as estruturas mais profundas daquela sociedade rural daquele tempo. Recebia olhares de desconfiança, ameaças veladas, comentários maldosos. Aquela Cida que nunca casou, que fica botando ideias na cabeça das mulheres, diziam alguns. Mas continuei porque sabia que estava fazendo algo importante, algo necessário. Pedro e João me apoiavam, cada um à sua maneira. Pedro, agora noivo, tinha se tornado um homem diferente do que Antônio tinha sido. Gentil, respeitoso, incapaz de levantar a mão para uma mulher. João, com seus livros e sonhos, falava em um mundo onde as coisas seriam
diferentes, onde mulheres e homens seriam iguais. Eu sorria ao ouvi-lo, pensando que talvez com jovens como ele esse mundo realmente fosse possível um dia. Mamãe observava tudo com aquela mistura de preocupação e orgulho que só as mães conseguem sentir. Às vezes me ajudava oferecendo sua casa para as reuniões, compartilhando sua sabedoria com as mais jovens. Outras vezes me alertava para os perigos, para os limites que eu estava testando, mas nunca me impediu, nunca me pediu para parar. Ela entendia, melhor do que ninguém, o que me motivava. Um ano depois da visita de Tião, quando o
medo de sermos descobertas já tinha diminuído consideravelmente, recebemos notícias dele, não diretamente, mas através de um viajante que passou pela região e trouxe um recado. Tian tinha se estabelecido no Piauí, estava trabalhando como parteiro, uma ocupação tradicionalmente feminina, mas que ele tinha assumido após aprender com uma velha senhora do sertão. Estava bem, pensava em nós. esperava que estivéssemos em paz. A notícia me pegou de surpresa, despertando emoções contraditórias. Nunca poderia esquecer o que ele tinha feito, o sofrimento que tinha causado, mas também não podia negar que suas palavras naquela noite tinham plantado uma semente em
mim, tinham ajudado a dar forma ao trabalho que agora realizava. Era uma conexão estranha, complexa, perturbadora em muitos aspectos, mas real. Nossos caminhos são estranhos, não é?", comentou mamãe quando ouviu a notícia. "Nunca sabemos onde vão dar. Nunca sabemos quem vai cruzá-los". Era verdade. Quando olhava para trás, para a menina assustada que tinha sido, para a jovem desesperada que tinha ajudado a cometer um crime terrível, mal podia acreditar na mulher que tinha me tornado. Uma mulher que carregava um segredo pesado, uma culpa que nunca desapareceria completamente, mas também uma missão, um propósito, uma determinação de
usar minha própria experiência de dor para tentar aliviar a dor de outras. Não era redenção. Algumas coisas não podem ser redimidas. Era transformação. A transformação de uma vítima em sobrevivente, de uma sobrevivente em lutadora, de uma lutadora em agente de mudança. Uma mudança pequena, local, quase invisível aos olhos do mundo, mas real e significativa para aquelas cujas vidas tocava. O acerto de contas que tínhamos servido naquela noite distante, com mandioca brava e determinação nascida do desespero, não tinha sido o fim da história, como acreditei por tanto tempo. Tinha sido apenas o começo, o começo de
um longo e difícil caminho de cura, de aprendizado, de crescimento, que continuaria pelo resto das nossas vidas. Aquela noite tinha me ensinado o que as mulheres são capazes de fazer quando empurradas além dos limites do suportável. As noites que se seguiram me ensinaram o que as mulheres são capazes de criar quando se apoiam mutuamente, quando compartilham conhecimento, quando transformam sua dor em propósito, sua raiva em ação, seu medo em coragem. E essa, meus queridos, é talvez a lição mais importante que posso compartilhar com vocês hoje. Os anos passaram como as águas do rio que corta
nossas terras, às vezes calmos, às vezes revoltos, mas sempre seguindo em frente. Aquele encontro com Tião tinha sido o último capítulo de uma história que achei que nunca teria fim. Depois dele, nunca mais tivemos notícias diretas de Jerônimo ou Juvenal. Era como se nossas vidas finalmente tivessem sido libertadas das correntes do passado. Pedro casou com a filha do professor, como todos já esperavam. Uma cerimônia simples na pequena capela da comunidade, seguida de uma festa no terreiro da nossa casa, com música, comida e dança até o amanhecer. Foi a primeira vez em muitos anos que vi
mamãe dançar rindo como uma moça, os olhos brilhando com uma alegria que pensei que ela nunca mais seria capaz de sentir. Dois anos depois desse casamento, em 1975, João conseguiu o que tanto sonhava, uma vaga na escola da cidade, com direito à moradia e alimentação. tinha conseguido uma bolsa através de um padre italiano que passou pela região, ficou impressionado com sua inteligência e o indicou para um programa educacional. Foi difícil vê-lo partir, mas sabíamos que era o melhor para ele, que merecia aquela oportunidade de escapar da dureza do sertão. Ficamos então só eu e mamãe
na casa da roça, duas mulheres que tinham sobrevivido ao pior que a vida poderia oferecer, que carregavam um segredo pesado, mas que agora finalmente podiam respirar sem medo. Continuamos trabalhando a terra, cuidando da pequena criação de galinhas e cabritos, vivendo de forma simples, mas digna. Meu trabalho com as mulheres da comunidade seguiu crescendo, se expandindo, tocando cada vez mais vidas. Já não era apenas um grupo informal que se reunia para conversar e aprender. Tínhamos nos organizado, criado uma associação que defendia os direitos das mulheres da região, que oferecia abrigo para aquelas que precisavam escapar da
violência, que ensinava ofícios que permitiam independência financeira. Nunca pensei que veria isso no meu tempo de vida", dizia a mamãe observando um grupo de mulheres reunidas em nossa casa, discutindo abertamente sobre questões que anos antes seriam impensáveis de serem mencionadas em público. Eu tinha 30 anos, então, e contra todas as expectativas para uma mulher solteira do interior naquela época, tinha me tornado uma espécie de liderança, de referência. As pessoas me procuravam não apenas por conselhos ou ajuda, mas para resolver conflitos, para intermediar situações difíceis, para falar em nome daquelas que não tinham voz. Meus queridos
que ainda estão comigo, vocês conseguem imaginar a transformação de uma menina aterrorizada, abusada, silenciada, para uma mulher forte, respeitada, capaz de fazer a diferença na vida de outras? É uma jornada que ainda me espanta quando olho para trás. Deixe nos comentários de qual cidade você está me assistindo. Seu apoio, seus comentários aquecem o coração desta velha que ainda se surpreende com os caminhos que a vida nos leva. Foi nesse período que a vida nos trouxe outro giro inesperado. João, que estudava na cidade há quase três anos, voltou para uma visita trazendo notícias surpreendentes. Tinha conseguido
um emprego em uma grande loja na capital, Recife, e queria que fôssemos morar com ele na cidade? Perguntou uma mãe incrédula. Deixar a roça tudo que conhecemos? Sim, mãe! insistiu ele animado. A vida é diferente lá. Tem oportunidades que nunca teríamos aqui. Sida poderia continuar seus estudos, quem sabe, até ir para a faculdade. A ideia parecia absurda. Eu, com meus 30 anos, voltando a estudar, indo para a universidade como uma jovem de 18 e mamãe deixando a terra onde tinha vivido toda a sua vida, onde tinha enterrado não apenas meu pai, mas também os fantasmas
que nos atormentaram por tanto tempo. Mas a semente tinha sido plantada. Nas semanas que se seguiram à partida de João, a ideia cresceu, ganhou forma, se tornou uma possibilidade real. A vida na roça estava cada vez mais difícil. A seca castigava a região há anos, as colheitas eram cada vez mais magras, o futuro parecia incerto. "E o nosso trabalho aqui?", perguntei à mamãe uma noite enquanto discutíamos a proposta de João. "As mulheres, a associação, tudo que construímos?" Ela me olhou com aquela sabedoria que só os anos e o sofrimento conseguem dar. O trabalho que começou
aqui pode continuar em outros lugares", disse simplesmente. "A semente já foi plantada, outras vão continuar o que você começou." E tinham continuado. Realmente, Maria da Luz, aquela jovem que antes apanhava do marido, tinha se tornado uma líder em sua própria comunidade. Teresa do Zé Preto, que todos achavam que nunca se recuperaria depois que o marido a abandonou com cinco filhos pequenos. Agora ensinava outras mulheres a fazer bordados que vendiam para lojas na cidade. Tantas histórias de transformação, de mulheres que tinham encontrado sua voz, sua força. Depois de meses de hesitação, de dúvidas, de planejamento, finalmente
tomamos nossa decisão. Venderíamos a pequena propriedade, os animais, quase tudo que possuíamos e iríamos para Recife. Era um salto no escuro, um risco enorme, mas também uma oportunidade de recomeçar verdadeiramente, deixar para trás não apenas o lugar, mas as memórias, o peso do passado. A despedida foi difícil. as mulheres com quem trabalhei por anos, as famílias que conhecíamos desde sempre, a terra que tinha sido testemunha silenciosa de tantos momentos, tantos terríveis quantos de alegria. No nosso último dia na roça, fui sozinha até aquele pedaço distante de terra, onde anos antes tínhamos enterrado nossos torturadores, nosso
segredo, parte de nossas almas. O local era irreconhecível. Agora, a natureza tinha reclamado seu domínio, cobrindo tudo com vegetação densa, apagando qualquer vestígio do que havia acontecido ali. Fiquei um tempo em silêncio, deixando as memórias virem, a dor, o medo, mas também a sensação de libertação, de justiça brutal que tinha se seguido. "Fica em paz", sussurrei, sem saber exatamente se falava com os mortos ou comigo mesma. "Fica em paz. Recife era um outro mundo comparado ao nosso sertão. Edifícios altos, ruas movimentadas, carros, ônibus, pessoas de todos os tipos, sotaques, cores. Nos primeiros meses, mamãe e
eu nos sentíamos completamente perdidas, desorientadas por tanta novidade, tanto barulho, tanta agitação. Morávamos em um pequeno apartamento no bairro de Santo Antônio, não muito longe da loja onde João trabalhava. Era um espaço apertado, sem o quintal amplo a que estávamos acostumadas, sem o silêncio da noite na roça, sem o céu estrelado que nos cobria desde sempre, mas tinha água encanada, luz elétrica, um banheiro dentro de casa, luxos que nunca tínhamos conhecido. Aos poucos, como plantas transplantadas para um novo solo, fomos nos adaptando, criando raízes nesse ambiente diferente. Mamãe encontrou emprego como cozinheira em uma pensão,
onde seu conhecimento de comida caseira do sertão era valorizado. Eu consegui um trabalho como auxiliar em uma creche, cuidando de crianças cujas mães precisavam trabalhar. E mais surpreendente ainda, segui o conselho de João e voltei a estudar. Primeiro o supletivo para completar o ensino básico que tinha sido interrompido tantos anos antes. Depois, incentivada pelos professores que viam em mim uma determinação em comum, comecei a me preparar para o vestibular. Psicologia, respondi quando me perguntaram que curso pretendia fazer. Quero entender a mente humana. Como as pessoas lidam com trauma, como superamos as piores experiências. Era um
sonho ambicioso, quase impossível para uma mulher da minha idade, com meu histórico, minha origem, mas tinha aprendido da maneira mais dura que a vida é feita de impossíveis que se tornam realidade, tanto os terríveis quanto os maravilhosos. Em 1980, aos 34 anos, contra todas as probabilidades, entrei na Universidade Federal de Pernambuco no curso de psicologia. era de longe a aluna mais velha da turma. A maioria dos meus colegas poderia ser meus filhos se eu tivesse seguido o caminho normal para uma mulher da minha geração e região. "Nunca é tarde para recomeçar", dizia a professora de
psicologia do desenvolvimento quando me via desanimada diante da montanha de conteúdo para absorver, das dificuldades de acompanhar o ritmo dos mais jovens, da sensação constante de não pertencer realmente àquele mundo acadêmico. No meu segundo ano de faculdade, mamãe adoeceu. No início, parecia apenas uma gripe forte, daquelas comuns no inverno úmido de Recife, tão diferente do clima seco do sertão a que estávamos acostumadas. Mas foi piorando, se transformando em uma pneumonia grave que a internação hospitalar e os antibióticos não conseguiam controlar. "Fique tranquila, minha filha", ela dizia, segurando minha mão no hospital, a voz fraca, mas
ainda carregada. daquela coragem que sempre admirei. Já vivi mais do que esperava. Já vi você e seus irmãos encaminhados na vida. Já vi você encontrar seu propósito, sua força. Não fala assim, mãe! Implorava, sentindo as lágrimas que não conseguia controlar. Ainda tem muita vida pela frente, muita coisa para ver, para viver. Ela apenas sorria. Aquele sorriso sereno que tinha aprendido a mostrar mesmo nos momentos mais difíceis. No fundo, ambas sabíamos a verdade. Seu corpo cansado de tantas lutas, de tanto trabalho duro, de tantos sofrimentos, estava chegando ao limite. Numa noite chuvosa de julho, com o
som das gotas batendo contra a janela do hospital, mamãe partiu suavemente, sem drama, sem sofrimento aparente. segurei sua mão até o último momento, como ela tinha segurado a minha tantas vezes ao longo da vida, me protegendo, me fortalecendo, me ensinando a sobreviver em um mundo que parecia determinado a nos destruir. O funeral foi simples, como ela gostaria. Pedro veio com a esposa e os dois filhos pequenos. João estava lá com sua noiva, uma moça da cidade que mamãe nunca chegou a conhecer, algumas vizinhas da pensão onde ela trabalhava, algumas colegas minhas da faculdade, amigos de
João, um grupo pequeno, mas sincero em seu luto por uma mulher cuja história verdadeira, cuja força real poucos realmente conheciam. Enterramos mamãe em um cemitério na periferia de Recife, longe da terra onde ela nasceu, cresceu, sofreu, sobreviveu. Enquanto via o caixão descer a terra, pensei na outra cova, naquela noite distante, em outro enterro que tinha sido tão diferente deste, mas que estava conectado a ele por linhas invisíveis de causa e efeito, de escolhas desesperadas, de consequências que se estendiam através dos anos. Agora é só você quem sabe", disse João no caminho de volta quando estávamos
sozinhos no ônibus. "Só você que carrega a história toda." Olhei para ele surpresa. "Que história? Mamãe nunca contou." Ele respondeu, olhando pela janela para a cidade cinzenta sob a chuva. "Mas eu vi coisas. Ouvi coisas. Era criança, mas não era bobo. Sei que aconteceu algo naquela noite. Sei que vocês fizeram o que precisavam fazer. Senti um frio percorrer minha espinha. Depois de tanto tempo, depois de tanto cuidado para preservar o segredo, para proteger meus irmãos daquela verdade terrível, ele sabia, talvez não todos os detalhes, mas o suficiente. João, não precisa dizer nada. Ele me interrompeu,
finalmente me olhando nos olhos. Nunca precisei saber exatamente o que aconteceu. Sei que vocês não tiveram escolha. Sei que fizeram o que fizeram para nos proteger, para sobreviver. Nunca julguei, nunca questionei. As lágrimas voltaram com força, embaçando minha visão. Não eram lágrimas apenas de dor pela perda recente, mas de alívio, de um peso sendo parcialmente levantado depois de tantos anos. Pedro sabe? Perguntei. A voz quase um sussurro. Acho que suspeita, mas nunca falamos sobre isso. Algumas verdades são pesadas demais para compartilhar, mesmo entre irmãos. Assenti grata pela sabedoria daquele rapaz que quando tudo aconteceu era
apenas uma criança. Grata por seu silêncio, por sua compreensão, por seu amor que transcendia julgamentos. Os meses seguintes foram um exercício de reconstrução, de seguir em frente, mesmo quando parecia impossível. Continuei na faculdade, apesar da dor, apesar da dificuldade de conciliar estudos e trabalho agora que não tinha mais a ajuda financeira de mamãe. As noites eram as piores, sozinha no pequeno apartamento, que agora parecia grande demais, sem a presença reconfortante que sempre tinha sido meu porto seguro. Foi durante esse período que comecei a escrever. Não um diário exatamente, mas um registro da nossa história, das
nossas lutas, das nossas vitórias e derrotas. Não para publicação, não para que outros lessem, mas para mim mesma, para organizar meus pensamentos, para entender o caminho que tinha percorrido, para honrar a memória de mamãe. A escrita cura dizia minha professora de psicologia clínica. Transformar experiências em palavras é uma forma de dar sentido ao caos, de integrar o trauma à nossa narrativa de vida, sem permitir que ele nos defina completamente. E estava certa. Página após página, noite após noite, fui desenterrando memórias, sentimentos, reflexões que tinha mantido enterrados por tantos anos. O processo era doloroso. Às vezes
me deixava exausta, incapaz de dormir depois de reviver momentos tão intensos, mas também era libertador, clarificador, curativo de uma maneira que nunca tinha experimentado antes. Me formei em psicologia em 1985, aos 39 anos. João estava lá orgulhoso, como se fosse ele mesmo recebendo o diploma. Pedro não pôde vir. Sua esposa estava nos últimos dias de gravidez do terceiro filho, mas mandou um telegrama de felicitações que guardo até hoje. Era um momento de triunfo, de realização de um sonho que nem sabia que tinha até poucos anos antes. Comecei a trabalhar em uma clínica comunitária, atendendo pessoas
de baixa renda que normalmente não teriam acesso a tratamento psicológico. Especializei-me em trauma, em violência doméstica, em ajudar mulheres e crianças que tinham passado por experiências semelhantes às minhas. Não era um trabalho fácil. Cada história que ouvia ecoava com minhas próprias memórias. Reabria cicatrizes que nunca fechavam completamente. Mas era o trabalho certo para mim. Para cada mulher que conseguia ajudar a encontrar sua voz, sua força, sua capacidade de reconstruir a vida depois de experiências devastadoras, sentia que estava honrando o legado de mamãe, a jornada que tínhamos percorrido juntas. Nos anos que se seguiram, continuei meu
trabalho clínico, mas também voltei a estudar. Fiz especialização, mestrado, publiquei artigos sobre trauma e resiliência, que eram em parte reflexões disfarçadas sobre minha própria experiência. Me tornei uma referência no meu campo, convidada para dar palestras, para treinar novos profissionais, para ajudar a desenvolver políticas públicas voltadas à proteção de mulheres e crianças. Em 1994, um evento inesperado trouxe o passado de volta, mas de uma forma que nunca poderia ter previsto. Estava dando uma palestra em um congresso em Salvador, quando na sessão de perguntas um homem idoso se levantou no fundo da sala. "Professora Aparecida", ele disse.
A voz trêmula com idade, mas ainda reconhecível. Não sei se lembra de mim, Tião de Garanhuns. Senti o mundo parar por um instante. Ali estava ele, quase irreconhecível. Mais de 30 anos tinham se passado desde nosso último encontro. Um homem velho agora, cabelos brancos, rosto marcado pelo tempo, apoiado em uma bengala que não era mais improvisada, mas ainda necessária. Depois da palestra, nos encontramos no café do hotel. A conversa foi estranha. desconfortável no início, mas gradualmente se transformou em algo mais próximo de um diálogo entre velhos conhecidos, unidos por um passado complexo e doloroso. Ele
tinha continuado o seu trabalho como parteiro no Piauí. Tinha ajudado a fundar uma casa de parto que agora era referência na região. Tinha se casado com uma professora local. Tinha dois filhos adotivos, vários netos, uma vida comum, normal, construída sobre os escombros de um passado que estava longe de ser comum ou normal. "Nunca esqueci", ele disse, olhando para a xícara de café em suas mãos enrugadas. "Nunca esqueci o que fiz. O que fizemos naquela noite do velório depois? Nunca esqueci. Nem eu, respondi honestamente. Mas parece que ambos escolhemos o mesmo caminho depois, não é? Ele
continuou agora me olhando nos olhos. Tentar consertar o que estava quebrado, não em nós mesmos. Algumas coisas não têm conserto, mas no mundo ao nosso redor. Tentar fazer algum bem para compensar o mal que fizemos ou que sofremos. Havia uma verdade profunda em suas palavras, uma compreensão que só poderia vir de alguém que tinha caminhado por estradas semelhantes, mesmo que a partir de posições opostas. Nos despedimos depois de algumas horas, sabendo que provavelmente nunca mais nos veríamos. Não éramos amigos, nunca poderíamos ser depois de tudo, mas também não éramos mais inimigos. Éramos sobreviventes de uma
história compartilhada, testemunhas de um passado que tinha moldado quem nos tornamos. para o bem e para o mal. Quando voltei para Recife, depois desse encontro inesperado, senti uma estranha sensação de encerramento, como se um ciclo que começou naquela noite terrível do velório do meu pai finalmente tivesse se completado. Não significava que as cicatrizes tinham desaparecido, que as memórias não doíam mais, que o peso do que tínhamos feito tinha sido levantado, mas significava que tinha encontrado uma forma de viver com esse peso, de integrar essa história, a minha identidade, sem permitir que ela me definisse completamente.
Os anos continuaram passando. Pedro perdeu a esposa para o câncer, mas encontrou conforto nos filhos e netos. João construiu uma carreira bem-sucedida em Recife, agora dono da loja, onde um dia foi apenas um jovem empregado. Eu continuei meu trabalho clínico, acadêmico e social, tocando cada vez mais vidas, expandindo os limites do que achava possível fazer. Aos 60 anos, decidi voltar para Garanhuns, não para a roça. Aquele lugar não existia mais. tinha sido engolido pelo avanço da cidade, transformado em um bairro residencial, onde ninguém conhecia ou se lembrava da história que tinha acontecido ali décadas antes.
Mas para a cidade em si, para suas ruas familiares, seu clima ameno, seu ritmo de vida que combinava com minha energia agora diminuída. Comprei uma casinha perto da praça central, abri uma pequena loja de artesanato que se tornou mais um ponto de encontro do que um negócio propriamente dito. As mulheres da região, filhas e netas daquelas com quem trabalhei tantos anos antes, traziam seus bordados, suas rendas, seus trabalhos para vender. E no processo traziam também suas histórias, suas alegrias e preocupações, suas lutas e vitórias. As coisas tinham mudado desde meus tempos de juventude. As mulheres
agora falavam mais abertamente sobre suas experiências, tinham mais recursos, mais opções, mais apoio. A violência não tinha desaparecido. nunca desaparecerá completamente enquanto vivermos em uma sociedade que ainda carrega tantos traços de patriarcado, de desigualdade, mas havia mais esperança, mais possibilidades de escape, de resistência, de transformação. E agora, aos 79 anos, sentada nesta cadeira de balanço na varanda da minha loja, olhando para a praça onde crianças brincam e jovens namoram, compartilho minha história com vocês. Não toda a história. Alguns detalhes são pesados demais para serem ditos em voz alta. Alguns segredos vão comigo para o túmulo,
mas o suficiente para que entendam a jornada, o caminho das cinzas às estrelas que percorria ao longo de uma vida que começou na dor, mas que encontrou propósito, significado, até mesmo alegria. Meus queridos, antes de encerrar esta história, quero pedir mais uma vez, deixem seu like, se inscrevam no canal e, principalmente entrem no nosso grupo de WhatsApp. O link está na descrição logo abaixo. Lá compartilhamos diariamente histórias reais de outras senhoras que, como eu, carregam cicatrizes invisíveis, mas encontraram seu caminho de volta à luz. Cada história compartilhada é uma mão estendida a alguém que pode
estar passando pelo mesmo agora, sentindo-se sozinha como eu me senti naquele quarto tantos anos atrás. A vida é feita de escolhas, algumas impossíveis, algumas terríveis, algumas libertadoras. O importante não é nunca cair, nunca falhar, nunca atravessar limites que acreditávamos intransponíveis. O importante é o que fazemos depois, como reconstruímos, como transformamos cinzas em algo novo, algo belo, algo significativo. cinzas do meu passado, das cinzas do que fui e do que fizeram comigo, consegui encontrar meu caminho até as estrelas, aquelas que brilham no céu noturno de Garanhuns, mas também aquelas que brilham dentro de nós quando encontramos
nosso propósito, nossa força, nossa capacidade de transformar dor em cura, trauma em sabedoria, desespero em esperança. E essa jornada, meus queridos, é a verdadeira vingança. Não aquela que planejamos numa noite escura, movidas pelo desespero e pela raiva, mas a que construímos dia após dia, ano após ano, a vingança de viver bem, de amar profundamente, de ajudar outros a encontrar seu próprio caminho para fora da escuridão. é Aparecida Josefa dos Santos, dona Cida da pracinha para vocês, despedindo-se com gratidão por terem me acompanhado até aqui, por terem ouvido minha história com tanto respeito e carinho. Que
Deus abençoe cada um de vocês e que nunca lhes falte força para transformar suas próprias cinzas em estrelas. M.
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